sexta-feira, 15 de abril de 2011

A «hermenêutica da continuidade», segundo o Papa Bento XVI (2005)

Graças a um amigo da Capella, chegamos a um discurso em que o Santo Padre nos
orienta sobre a justa interpretação dos documentos conciliares, cuja leitura já aqui
temos oferecido, juntamente com outros documentos magisteriais pertinentes
à música sacra anteriores e posteriores ao Concílio
.
Bento XVI começa por recordar o defunto Papa Wojtyla, o seu testemunho e os seus
ensinamentos, o seu zelo para com a Eucaristia e o Sínodo a ela devoto, bem como
as Jornadas Mundiais da Juventude do ano de então, e dedica-se então a explicar que
"silenciosamente mas de modo cada vez mais visível, [a hermenêutica da
continuidade] produziu e produz frutos".

DISCURSO DO PAPA BENTO XVI AOS CARDEAIS, ARCEBISPOS E PRELADOS DA CÚRIA ROMANA NA APRESENTAÇÃO DOS VOTOS DE NATAL


Senhores Cardeais 
Venerados Irmãos 
no Episcopado e no Presbiterado 
Queridos irmãos e irmãs



"Expergiscere, homo: quia pro te Deus factus est homo." Desperta, homem, porque por ti Deus se fez homem (Santo Agostinho, Sermões, 185). Com este convite de Santo Agostinho, a captar o sentido autêntico do Natal de Cristo, dou início ao meu encontro convosco, prezados colaboradores da Cúria Romana, já em proximidade das festividades natalícias. Dirijo a cada um a minha saudação mais cordial, agradecendo-vos os sentimentos de devoção e de afecto, de que se fez intérprete eficaz o Cardeal Decano, a quem dirijo o meu pensamento reconhecido. Deus fez-se homem por nós: esta é a mensagem que todos os anos, da silenciosa gruta de Belém, se difunde até aos recantos mais longínquos da terra. O Natal é festa de luz e de paz, é dia de enlevo interior e de alegria que se propaga no universo, porque "Deus se fez homem". Da humilde gruta de Belém, o Filho eterno de Deus, que se tornou Criancinha, dirige-se a cada um de nós: interpela-nos, convida-nos a renascer nele para que, com Ele, possamos viver eternamente na comunhão da Santíssima Trindade.

Com o coração repleto da alegria que deriva desta consciência, voltemos com o pensamento às vicissitudes do ano que chegou ao seu ocaso. Precedem-nos grandes acontecimentos, que assinalaram profundamente a vida da Igreja. Em primeiro lugar, penso na partida do nosso amado Santo Padre João Paulo II, precedida por um longo caminho de sofrimento e de gradual perda da palavra. Nenhum Papa nos deixou uma quantidade de textos igual à que ele nos legou; precedentemente, nenhum Papa pôde visitar, como ele, o mundo inteiro e falar de modo directo aos homens de todos os continentes. Mas no final coube-lhe um caminho de sofrimento e de silêncio. Permanecem inesquecíveis para nós as imagens do Domingo de Ramos quando, com um ramo de oliveira na mão e marcado pela dor, ele estava à janela e nos dava a bênção do Senhor, prestes a encaminhar-se rumo à Cruz. Depois, a imagem do momento em que, na sua capela particular, com o Crucifixo na mão, participava na Via-Sacra no Coliseu, onde muitas vezes tinha presidido à procissão, carregando ele mesmo a Cruz. Enfim, a bênção silenciosa do Domingo de Páscoa em que, através da dor, víamos resplandecer a promessa da ressurreição, da vida eterna.

O Santo Padre, com as suas palavras e as suas obras, deu-nos grandes coisas; mas não menos importante é a lição que nos deu da cátedra do sofrimento e do silêncio. No seu último livro"Memória e Identidade" (Rizzoli, 2005), deixou-nos uma interpretação do sofrimento que não é uma teoria teológica ou filosófica, mas um fruto amadurecido ao longo do seu caminho pessoal de sofrimento, por ele percorrido com a ajuda da fé no Senhor crucificado. Esta interpretação, que ele tinha elaborado na fé e que dava sentido ao seu sofrimento vivido em comunhão com o do Senhor, falava através da sua dor silenciosa, transformando-a numa grande mensagem. Tanto no início, como uma vez mais no final do mencionado livro, o Papa mostra-se profundamente sensibilizado pelo espectáculo do poder do mal que, no século recém-terminado, nos é concedido experimentar de modo dramático. Diz textualmente: "Não foi um mal de pequenas dimensões... Foi um mal de proporções gigantescas, um mal que se valeu das estruturas estatais para realizar uma obra nefasta, um mal edificado como sistema" (pág. 198). O mal é porventura invencível? É a última verdadeira potência da história? Por causa da experiência do mal, para o Papa Wojtyla a questão da redenção tornou-se a interrogação essencial e central da sua vida e do seu pensar como cristão. Existe um limite contra o qual o poder do mal se infrange? Sim, existe, responde o Papa neste seu livro, como também na sua Encíclica sobre a redenção. O poder que põe um limite ao mal é a misericórdia divina. À violência, à ostentação do mal, opõe-se na história como "o totalmente outro" de Deus, como o próprio poder de Deus a misericórdia divina. O cordeiro é mais forte do que o dragão, poderíamos dizer com o Apocalipse.

No final do livro, na consideração retrospectiva do atentado de 13 de Maio de 1981 e também com base na experiência do seu caminho com Deus e com o mundo, João Paulo II aprofundou ulteriormente esta resposta. O limite do poder do mal, a potência que, em última análise, o derrota é - assim ele nos diz - o sofrimento de Deus, o sofrimento do Filho na Cruz: "O sofrimento de Deus crucificado não é apenas uma forma de sofrimento ao lado das demais... Cristo, sofrendo por todos nós, conferiu um novo sentido ao sofrimento, introduziu-o numa nova dimensão, numa nova ordem: a do amor (...). A paixão de Cristo na Cruz deu um sentido radicalmente novo ao sofrimento, transformou-o a partir de dentro (...). É o sofrimento que arde e consome o mal com a chama do amor... Cada sofrimento humano, cada dor, cada enfermidade encerra uma promessa de salvação (...). O mal (...) existe no mundo também para despertar em nós o amor, que é dom de si, (...) a quem é visitado pelo sofrimento (...). Cristo é o Redentor do mundo: Fomos curados pelas suas chagas (Is 53, 5)" (pág. 198 ss.). Tudo isto não é simplesmente douta teologia, mas expressão de uma fé vivida e amadurecida no sofrimento. Certamente, nós devemos fazer tudo para atenuar o sofrimento e impedir a injustiça que provoca o sofrimento dos inocentes. Todavia, devemos também fazer tudo para que os homens possam descobrir o sentido do sofrimento, para serem assim capazes de aceitar o próprio sofrimento e de o unir ao sofrimento de Cristo. Deste modo, ele funde-se juntamente com o amor redentor e, por conseguinte, torna-se uma força contra o mal do mundo. A resposta que o mundo inteiro deu à morte do Papa foi uma impressionante manifestação de reconhecimento pelo facto de que ele, no seu ministério, se ofereceu totalmente a Deus pelo mundo; um agradecimento pelo facto de que ele, num mundo repleto de ódio e de violência, nos ensinou novamente o amar e o sofrer ao serviço dos outros; mostrou-nos, por assim dizer, ao vivo o Redentor, a redenção, e deu-nos a certeza de que, de facto, o mal não tem a última palavra no mundo.

Agora gostaria de mencionar, embora brevemente, outros dois acontecimentos, começados ainda pelo Papa João Paulo II: trata-se da Jornada Mundial da Juventude em Colónia e do Sínodo dos Bispos sobre a Eucaristia, que encerrou também o Ano da Eucaristia, inaugurado pelo Papa João Paulo II.
A Jornada Mundial da Juventude permaneceu, na memória de todos aqueles que estavam presentes, como um grande dom. Mais de um milhão de jovens reuniram-se na Cidade de Colónia, situada às margens do rio Reno, e nas cidades vizinhas para juntos ouvir a Palavra de Deus e rezar, para receber os sacramentos da Reconciliação e da Eucaristia, para juntos cantar e festejar, para rejubilar pela existência e para adorar e receber o Senhor eucarístico durante os grandes encontros do Sábado à noite e do Domingo. Durante todos aqueles dias reinava simplesmente a alegria.

Prescindindo dos serviços de ordem, a polícia nada teve para fazer: o Senhor tinha reunido a sua família, superando sensivelmente todas as fronteiras e barreiras e, na grande comunhão entre nós, nos tinha feito experimentar a sua presença. O mote escolhido para aquelas jornadas "Viemos adorá-lo" continha duas grandes imagens que, desde o início, favoreceram a justa abordagem. Em primeiro lugar, havia a imagem da peregrinação, a imagem do homem que, olhando para além dos seus interesses e da sua vida quotidiana, se coloca em busca do seu destino essencial, da verdade, da vida justa, de Deus. Esta imagem do homem a caminho rumo à meta da vida encerrava em si mais duas indicações claras. Antes de mais, havia o convite a não ver o mundo que nos circunda, somente como a matéria-prima com que nós podemos fazer algo, mas a procurar descobrir nele a "caligrafia do Criador", a razão criadora e o amor de que o mundo nasceu e de que o universo nos fala, se nos tornamos atentos, se os nossos sentidos interiores despertam e adquirem perceptividade para as dimensões mais profundas da realidade. Como segundo elemento acrescentava-se, depois, o convite a colocarmo-nos à escuta da revelação histórica, a única que nos pode oferecer a chave de leitura para o mistério silencioso da criação, indicando-nos concretamente o caminho rumo ao verdadeiro Senhor do mundo e da história, que se esconde na pobreza do estábulo de Belém. A outra imagem contida no mote da Jornada Mundial da Juventude era o homem em adoração: "Viemos adorá-Lo". Antes de cada actividade e de cada mudança do mundo deve haver a adoração. Só ela nos torna verdadeiramente livres; somente ela nos oferece os critérios para o nosso agir. Precisamente num mundo em que, de modo progressivo, definham os critérios de orientação e existe a ameaça que cada um faça de si mesmo o próprio critério, é fundamental ressaltar a adoração. Para todos aqueles que estavam presentes, permanece inesquecível o silêncio intenso daquele milhão de jovens, um silêncio que unia e confortava todos nós, quando o Senhor no Sacramento era colocado sobre o altar. Conservemos no coração as imagens de Colónia: elas são uma indicação que continua a agir. Sem mencionar nomes individuais, nesta ocasião gostaria de agradecer a todos aqueles que tornaram possível a Jornada Mundial da Juventude; mas sobretudo, juntos, demos graças ao Senhor, porque em última análise somente Ele poderia conceder-nos tais jornadas do modo como as vivemos.

A palavra "adoração" leva-nos ao segundo grande acontecimento, sobre o qual gostaria de falar: o Sínodo dos Bispos e o Ano da Eucaristia. O Papa João Paulo II, com a Encíclica Ecclesia de Eucharistia com a Carta Apostólica Mane nobiscum Domine, já nos tinha oferecido as indicações essenciais e, ao mesmo tempo, com a sua experiência pessoal da fé eucarística, tinha concretizado o ensinamento da Igreja. Além disso, a Congregação para o Culto Divino, em estreita ligação com a Encíclica, tinha publicado a Instrução Redemptionis sacramentum, como ajuda práctica para a justa realização da Constituição conciliar sobre a liturgia e da reforma litúrgica. Para além de tudo isto, era verdadeiramente possível dizer algo de novo, desenvolver ulteriormente o conjunto da doutrina? Foi precisamente esta a grande experiência do Sínodo quando, nas contribuições dos Padres, se viu reflectir a riqueza da vida eucarística da Igreja de hoje e se manifestou a inexauribilidade da sua fé eucarística. Aquilo que os Padres pensaram e expressaram deverá ser apresentado, em estreita ligação com as Propositiones do Sínodo, num documento pós-sinodal. Aqui, gostaria apenas de salientar mais uma vez aquele ponto que, há pouco, já recordámos no contexto da Jornada Mundial da Juventude: a adoração do Senhor ressuscitado, presente na Eucaristia com a carne e o sangue, com o corpo e a alma, com a divindade e a humanidade. É comovedor para mim, ver como em toda a parte na Igreja se está a despertar a alegria da adoração eucarística e como se manifestam os seus frutos. No período da reforma litúrgica, muitas vezes a Missa e a adoração fora dela eram vistas como que em contraste entre si: o Pão eucarístico não nos teria sido dado para ser contemplado, mas para ser comido, segundo uma objecção então difusa. Na experiência de oração da Igreja já se manifestou a falta de sentido de tal contraposição. Já Agostinho disse: "...nemo autem illam carnem manducat, nisi prius adoraverit;... peccemus non adorando Ninguém come esta carne, sem antes a adorar;... pecaríamos, se não a adorássemos" (cf. Enarr. in Ps 98, 9, CCL XXXIX, 1385). De facto, não é que na Eucaristia nós simplesmente recebamos uma coisa qualquer. Ela é o encontro e a unificação de pessoas; porém a pessoa que vem ao nosso encontro e deseja unir-Se a nós é o Filho de Deus.

Tal unificação sòmente pode realizar-se segundo o modo de adoração. Receber a Eucaristia significa adorar Aquele que recebemos. Precisamente assim e somente assim nos tornamos um só com Ele. Por isso, o desenvolvimento da adoração eucarística, como se formou durante a Idade Média, era a consequência mais coerente do próprio mistério eucarístico: somente na adoração pode amadurecer um acolhimento profundo e verdadeiro. E é precisamente neste acto pessoal de encontro com o Senhor que, depois, amadurece também a missão social que está encerrada na Eucaristia e que deseja romper as barreiras não apenas entre o Senhor e nós, mas inclusive e sobretudo as barreiras que nos separam uns dos outros.

O último acontecimento deste ano, sobre o qual gostaria de me deter nesta ocasião, é a celebração do encerramento do Concílio Vaticano II, há quarenta anos. Tal memória suscita a interrogação: qual foi o resultado do Concílio? Foi recebido de modo correcto? O que é que, na recepção do Concílio, foi bom, e o que foi insuficiente ou errado? O que ainda deve ser feito? Ninguém pode negar que, em vastas partes da Igreja, a recepção do Concílio teve lugar de modo bastante difícil, mesmo que não se deseje aplicar àquilo que aconteceu nestes anos a descrição que o grande Doutor da Igreja, São Basílio, faz da situação da Igreja depois do Concílio de Niceia: ele compara-a com uma batalha naval na escuridão da tempestade, dizendo entre outras coisas: "O grito rouco daqueles que, pela discórdia, se levantam uns contra os outros, os palavreados incompreensíveis e o ruído confuso dos clamores ininterruptos já encheram quase toda a Igreja falsificando, por excesso ou por defeito, a recta doutrina da fé..." (De Spiritu Sancto, XXX, 77; PG 32, 213 A; Sch 17 bis, pág. 524). Não queremos aplicar exactamente esta descrição dramática à situação do pós-Concílio, todavia alguma coisa do que aconteceu se reflecte nele. Surge a pergunta: por que a recepção do Concílio, em grandes partes da Igreja, até agora teve lugar de modo tão difícil? Pois bem, tudo depende da justa interpretação do Concílio ou como diríamos hoje da sua correcta hermenêutica, da justa chave de leitura e de aplicação. Os problemas da recepção derivaram do facto de que duas hermenêuticas contrárias se embateram e disputaram entre si. Uma causou confusão, a outra, silenciosamente mas de modo cada vez mais visível, produziu e produz frutos. Por um lado, existe uma interpretação que gostaria de definir "hermenêutica da descontinuidade e da ruptura"; não raro, ela pôde valer-se da simpatia dos mass media e também de uma parte da teologia moderna. Por outro lado, há a "hermenêutica da reforma", da renovação na continuidade do único sujeito-Igreja, que o Senhor nos concedeu; é um sujeito que cresce no tempo e se desenvolve, permanecendo porém sempre o mesmo, único sujeito do Povo de Deus a caminho. A hermenêutica da descontinuidade corre o risco de terminar numa ruptura entre a Igreja pré-conciliar e a Igreja pós-conciliar. Ela afirma que os textos do Concílio como tais ainda não seriam a verdadeira expressão do espírito do Concílio.

Seriam o resultado de compromissos em que, para alcançar a unanimidade, foi necessário arrastar atrás de si e confirmar muitas coisas antigas, já inúteis. Contudo, não é nestes compromissos que se revelaria o verdadeiro espírito do Concílio mas, ao contrário, nos impulsos rumo ao novo, subjacentes aos textos: somente eles representariam o verdadeiro espírito do Concílio, e partindo deles e em conformidade com eles, seria necessário progredir. Precisamente porque os textos reflectiriam apenas de modo imperfeito o verdadeiro espírito do Concílio e a sua novidade, seria preciso ir corajosamente para além dos textos, deixando espaço à novidade em que se expressaria a intenção mais profunda, embora ainda indistinta, do Concílio. Em síntese: seria necessário seguir não os textos do Concílio, mas o seu espírito. Deste modo, obviamente, permanece uma vasta margem para a pergunta sobre o modo como, então, se define este espírito e, por conseguinte, se concede espaço a toda a inconstância. Assim, porém, confunde-se na origem a natureza de um Concílio como tal. Deste modo, ele é considerado como uma espécie de Constituinte, que elimina uma constituição velha e cria outra nova. Mas a Constituinte tem necessidade de um mandante e, depois, de uma confirmação por parte do mandante, ou seja, do povo ao qual a constituição deve servir.
Os Padres não tinham tal mandato e ninguém lhos tinha dado; ninguém, afinal, podia dá-lo porque a constituição essencial da Igreja vem do Senhor e nos foi dada para que pudéssemos chegar à vida eterna e, partindo desta perspectiva, conseguimos iluminar também a vida no tempo e o próprio tempo. Os Bispos, pelo Sacramento que receberam, são fiduciários do dom do Senhor. Somos "administradores dos mistérios de Deus" (1 Cor 4, 1); como tais devem ser vistos como "fiéis e sábios" (cf. Lc 12, 41-48). Isto significa que devem administrar o dom do Senhor de modo justo, para que não fiquem ocultos no esconderijo, para que tragam frutos e o Senhor, no final, possa dizer ao administrador: "Porque foste fiel no pouco, dar-te-ei autoridade no muito" (cf. Mt 25, 14-30; Lc 19, 11-27). Nestas parábolas evangélicas exprime-se a dinâmica da fidelidade, que interessa no serviço do Senhor, e nelas também se torna evidente, como num Concílio dinâmica e fidelidade devam tornar-se uma só coisa.

À hermenêutica da descontinuidade opõe-se a hermenêutica da reforma, como antes as apresentou o Papa João XXIII no seu discurso de abertura do Concílio em 11 de Outubro de 1962 e, posteriormente o Papa Paulo VI no discurso de encerramento a 7 de Dezembro de 1965. Desejo citar aqui somente as palavras tão conhecidas de João XXIII, nas quais esta hermenêutica é expressa inequivocavelmente quando diz que o Concílio "quer transmitir a doutrina pura e íntegra sem atenuações nem desvios" e continua: "O nosso dever não é somente guardar este tesouro precioso, como se nos preocupássemos unicamente pela antiguidade, mas dedicarmo-nos com diligente vontade e sem temor a esta obra, que a nossa época exige (...). É necessário que esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e apresentada de modo que corresponda às exigências do nosso tempo. De facto, uma coisa é o depósito da fé, isto é, as verdades contidas na nossa veneranda doutrina, e outra coisa é o modo com o qual elas são enunciadas, conservando nelas, porém, o mesmo sentido e o mesmo resultado" (S. Oec. Conc. Vat. II Constitutiones Decreta Declarationes, 1974, pp. 863-865). É claro que este cuidado de exprimir no modo novo uma determinada verdade exige uma nova reflexão sobre ela e uma nova relação vital com a mesma; é claro também que a nova palavra pode maturar somente se nasce de uma compreensão consciente da verdade expressa e que, por outro lado, a reflexão sobre a fé exige igualmente que se viva esta fé. Neste sentido o programa proposto pelo Papa João XXIII era extremamente exigente, como também é exigente e dinâmica a síntese de fidelidade. Porém, onde quer que esta interpretação tenha sido a orientação que guiou a recepção do Concílio, cresceu uma nova vida e amadureceram novos frutos. Quarenta anos depois do Concílio podemos realçar que o positivo é muito maior e mais vivo do que não podia parecer na agitação por volta do ano de 1968. Hoje vemos que a boa semente, mesmo desenvolvendo-se lentamente, cresce todavia, e cresce também assim a nossa profunda gratidão pela obra realizada pelo Concílio.

Paulo VI, no seu discurso de conclusão do Concílio, indicou ainda uma específica motivação pela qual uma hermenêutica da descontinuidade poderia parecer convincente. No grande debate sobre o homem, que distingue o tempo moderno, o Concílio devia dedicar-se de modo particular ao tema da antropologia. Devia interrogar-se sobre a relação entre a Igreja e a sua fé, de um lado, e o homem e o mundo de hoje, de outro (ibid., pp. 1066ss.). A questão torna-se ainda mais clara, se em vez do termo genérico de "mundo de hoje" escolhêssemos outro mais exacto: o Concílio devia determinar de modo novo a relação entre a Igreja e a era moderna. Esta relação tinha tido um início muito problemático com o processo a Galileu. Rompeu-se depois totalmente, quando Kant definou a "religião no contexto da pura razão" e quando, na fase radical da revolução francesa, se difundiu uma imagem do Estado e do homem que para a Igreja e para a fé praticamente não desejava conceder qualquer espaço. O conflito da fé da Igreja com o liberalismo radical e também com as ciências naturais que pretendiam envolver com os seus conhecimentos toda a realidade até aos seus extremos, propondo-se insistentemente de tornar supérflua a "hipótese de Deus", tinha provocado no Século XIX, sob Pio IX, por parte da Igreja ásperas e radicais condenações de tal espírito da era moderna. Portanto, aparentemente não havia mais qualquer espaço aberto para uma compreensão positiva e frutuosa, e eram igualmente drásticas as rejeições por parte daqueles que se sentiam os representantes da era moderna. Enquanto isso, porém, também a era moderna conheceu desdobramentos. Percebia-se que a revolução americana tinha oferecido um modelo de Estado moderno diferente daquele teorizado pelas tendências radicais originadas na segunda fase da revolução francesa. As ciências naturais começavam, de modo sempre mais claro, a reflectir sobre o próprio limite, imposto pelo seu próprio método que, mesmo realizando coisas grandiosas, todavia não era capaz de compreender a globalidade da realidade. Assim ambas as partes começavam progressivamente a abrir-se uma à outra. No período entre as duas guerras mundiais, e ainda mais depois da segunda, homens de Estado católicos demonstraram que pode existir um Estado laico moderno, que porém não é neutro em relação aos valores, mas vive haurindo das grandes fontes éticas abertas pelo cristianismo. A doutrina social católica, pouco a pouco desenvolveu-se e tornou-se um modelo importante entre o liberalismo radical e a teoria marxista do Estado. As ciências naturais, que sem reserva professaram um método próprio no qual Deus não tinha acesso, percebiam cada vez mais claramente que este método não compreendia a totalidade da realidade e abriam portanto novamente as portas a Deus, sabendo que a realidade é maior do que o método naturalista e daquilo que ele possa abranger. Poder-se-ia dizer que se formaram três círculos de perguntas, que agora no momento do Vaticano II, esperavam uma resposta. Antes de mais, era preciso definir de modo novo a relação entre fé e ciências modernas; isto dizia respeito, finalmente, não apenas às ciências naturais mas também à ciência histórica pois, numa determinada escola, o método histórico-crítico reclamava para si a última palavra na interpretação da Bíblia e, pretendendo a plena exclusividade para a sua compreensão das Sagradas Escrituras, opunha-se em pontos importantes da interpretação que a fé da Igreja tinha elaborado. Em segundo lugar, era preciso definir de modo novo a relação entre a Igreja e o Estado moderno, que abria espaço aos cidadãos de várias religiões e ideologias, comportando-se em relação a estas religiões de modo imparcial e assumindo simplesmente a responsabilidade por uma convivência ordenada e tolerante entre os cidadãos e pela sua liberdade de exercer a própria religião. A isto, em terceiro lugar, estava ligado de modo geral o problema da tolerância religiosa uma questão que exigia uma nova definição sobre a relação entre a fé cristã e as religiões do mundo. Em particular, diante dos recentes crimes do regime nacional-socialista e, em geral, num olhar retrospectivo a uma longa e difícil história, era preciso avaliar e definir de modo novo a relação entre a Igreja e a fé de Israel.
São todos temas de grande importância os grandes temas da segunda parte do Concílio sobre os quais não é possível deter-se mais amplamente neste contexto. É claro que em todos estes sectores, que no seu conjunto formam um único problema, podia emergir alguma forma de descontinuidade e que, em certo sentido, se manifestava de facto uma descontinuidade, na qual, todavia, feitas as diversas distinções entre as situações históricas concretas e as suas exigências, resultava não abandonada a continuidade nos princípios – facto que facilmente escapa a uma primeira percepção. É exactamente neste conjunto de continuidade e descontinuidade a diversos níveis que consiste a natureza da verdadeira reforma. Neste processo de novidade na continuidade deveríamos aprender a compreender mais concretamente do que antes que as decisões da Igreja em relação às coisas contingentes por exemplo, certas formas concretas de liberalismo ou de interpretação liberal da Bíblia deveriam necessariamente ser essas mesmas acidentais, justamente porque referidas a uma determinada realidade em si mesma mutável. Era preciso aprender a reconhecer que, em tais decisões, sòmente os princípios exprimem o aspecto duradouro, permanecendo subjacente e motivando a decisão a partir de dentro. Não são, por sua vez, igualmente permanentes as formas concretas, que dependem da situação histórica e podem portanto ser submetidas a mutações.

Assim as decisões de fundo podem permanecer válidas, enquanto as formas da sua aplicação a estes novos podem mudar. Assim, por exemplo, se a liberdade religiosa fôr considerada como expressão da incapacidade do homem para encontrar a verdade e, consequentemente, se torna canonização do relativismo, consequentemente ela, por necessidade social, eleva-se de modo impróprio a nível metafísico e está privada do seu verdadeiro sentido, com a consequência de não poder ser aceite por quem crê que o homem é capaz de conhecer a verdade de Deus e, com base na dignidade interior da verdade, está ligado a tal conhecimento. Uma coisa completamente diversa é, porém, considerar a liberdade de religião como uma necessidade derivante da convivência humana, aliás, como uma consequência intrínseca da verdade que não pode ser imposta do exterior, mas deve ser feita pelo próprio homem sòmente mediante o processo do convencimento.

O Concílio Vaticano II, com o Decreto sobre a liberdade religiosa, reconhecendo e fazendo seu um princípio essencial do Estado moderno, recuperou novamente o património mais profundo da Igreja. Ela pode ser consciente de encontrar-se assim em plena sintonia com o ensinamento do próprio Jesus (cf. Mt 22, 21) como também com a Igreja dos mártires, com os mártires de todos os tempos. A Igreja antiga, com naturalidade, rezou pelos imperadores e pelos responsáveis políticos considerando isso seu dever (cf. 1 Tm 2, 2); porém, enquanto rezava pelos imperadores, recusou-se adorá-los, e com isto rejeitou claramente a religião do Estado. Os mártires da Igreja primitiva morreram pela sua fé naquele Deus que Se revelou em Jesus Cristo, e exactamente por isso, morreram também pela liberdade de consciência e pela liberdade de profissão da própria fé uma profissão que por nenhum Estado pode ser imposta, porém pode ser realizada sòmente com a graça de Deus, na liberdade da consciência. Uma Igreja missionária que, como se sabe, insiste em anunciar a sua mensagem a todos os povos, deve empenhar-se pela liberdade da fé. Ela deseja transmitir o dom da verdade que existe para todos e, enquanto isso, assegura aos povos e aos seus governos que não quer destruir a sua identidade e as suas culturas, mas leva-lhes uma resposta que, no seu íntimo, esperam uma resposta com que a multiplicidade das culturas não se perde, ao contrário crescem a unidade entre os homens e também a paz entre os povos.

O Concílio Vaticano II, com a nova definição da relação entre a fé da Igreja e determinados elementos essenciais do pensamento moderno, reviu – ou melhor, corrigiu – algumas decisões históricas, mas nesta aparente descontinuidade, manteve e aprofundou a sua íntima natureza e a sua verdadeira identidade. A Igreja, quer antes quer depois do Concílio, é a mesma Igreja una, santa, católica e apostólica peregrina nos tempos; ela prossegue "a sua peregrinação entre as perseguições do mundo e as consolações de Deus", anunciando a morte do Senhor até que Ele venha (cf. Lumen gentium, 8). Quem pensava que com este "sim" fundamental para a era moderna se dissipassem todas as tensões e a "abertura ao mundo" assim realizada transformasse tudo em pura harmonia, tinha subestimado as tensões internas e também as contradições da mesma era moderna; tinha subestimado a perigosa fragilidade da natureza humana que em todos os períodos da história e em cada constelação histórica é uma ameaça para o caminho do homem. Estes perigos, com as novas possibilidades e com o novo poder do homem sobre a matéria e sobre si mesmo, não desapareceram, mas assumem novas dimensões: um olhar sobre a história actual demonstra-o claramente. Também no nosso tempo a Igreja permanece um "sinal de contradição" (Lc 2, 34) não sem motivo o Papa João Paulo II, ainda Cardeal, tinha dado este título aos Exercícios Espirituais pregados em 1976 ao Papa Paulo VI e à Cúria Romana. Não podia ser intenção do Concílio abolir esta contradição do Evangelho em relação aos perigos e aos erros do homem. Era, porém realmente a sua intenção deixar de lado contradições erróneas ou supérfluas, para apresentar a este nosso mundo a exigência do Evangelho em toda a sua grandeza e pureza. O passo dado pelo Concílio em direcção à era moderna, que de modo tão impreciso foi apresentado como "abertura ao mundo" pertence definitivamente ao perene problema da relação entre fé e razão, que se apresenta sempre de novas formas. A situação que o Concílio devia enfrentar é comparável aos acontecimentos das épocas precedentes. São Pedro, na sua primeira Carta, tinha exortado os cristãos a estar sempre prontos a responder (apo-logia) a quem quer que perguntasse o logos, a razão da sua esperança (3, 15). Isto significava que a fé bíblica devia entrar em debate e em relação com a cultura grega e aprender a reconhecer mediante a interpretação a linha de distinção, mas igualmente o contacto e a afinidade entre elas na única razão dada por Deus.

Quando no século XIII, através dos filósofos judeus e árabes, o pensamento aristotélico entrou em contacto com a cristandade medieval formada na tradição platónica, e que fé e razão correram o risco de entrar em contradição inconciliável, foi sobretuto S. Tomás de Aquino a mediar o novo encontro entre fé e filosofia aristotélica, colocando assim a fé em uma relação positiva com a forma de razão dominante no seu tempo. O difícil debate entre a razão moderna e a fé cristã que, num primeiro momento, com o processo a Galileu, iniciou de modo negativo, certamente conheceu muitas fases, mas com o Concílio Vaticano II chegou a hora em que se requeria uma ampla reflexão. O seu conteúdo, nos textos conciliares, foi traçado seguramente em linhas gerais, mas com isto determinou a direcção essencial, de modo que o diálogo entre razão e fé, hoje particularmente importante, com base no Vaticano II encontrou a sua orientação. Agora este diálogo precisa desenvolver-se com grande abertura mental, mas igualmente com aquela clareza de discernimento dos espíritos que o mundo justificadamente espera de nós neste exacto momento. Assim podemos hoje, com gratidão, dirigir o nosso olhar ao Concílio Vaticano II: se o lemos e recebemos guiados por uma justa hermenêutica, ele pode ser e tornar-se cada vez mais uma grande força para a sempre necessária renovação da Igreja.

Finalmente, devo talvez ainda recordar o dia 19 de Abril deste ano, em que o Colégio Cardinalício com o meu susto não pequeno, me elegeu sucessor do Papa João Paulo II, sucessor de São Pedro na cátedra de Bispo de Roma. Uma tarefa assim estava totalmente fora daquilo que eu jamais poderia imaginar como minha vocação. Assim, foi sòmente com um grande acto de confiança em Deus que pude dizer na obediência o meu "sim" a esta escolha. Como então, hoje peço igualmente a todos vós a oração, com cuja força e apoio eu conto. Ao mesmo tempo, desejo agradecer de coração neste momento a todos aqueles que me acolheram e me acolhem sempre com grande confiança, bondade e compreensão, acompanhando-me dia-a-dia com a sua oração.

O Natal já está perto. O Senhor Deus diante das ameaças da história não se opôs com o poder exterior, como nós homens, segundo as perspectivas deste nosso mundo, teríamos esperado. A sua arma é a bondade. Revelou-se como criança, nasceu numa estalagem. É exactamente assim que contrapõe o seu poder completamente diverso das potências destrutivas da violência. Ele salva-nos precisamente assim. Mostra-nos exactamente assim o que salva. Queremos, nestes dias natalícios, ir ao seu encontro cheios de confiança, como os pastores, como os sábios do oriente. Peçamos a Maria para nos conduzir ao Senhor. Peçamos-lhe para vencer Ele mesmo a violência no mundo e para nos fazer experimentar o poder da sua bondade. Com estes sentimentos, concedo-vos a todos a Benção Apostólica.

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