domingo, 28 de setembro de 2014

'Et incarnatus est' polifónico

O Prior pediu-nos que preparássemos um Et incarnatus est polifónico para cantarmos durante a profissão de fé (Credo) que será cantada em canto gregoriano na Missa de Natal.

O Et incarnatus est de Spíritu Sancto ex María Vírgine et homo factus est é um momento de especial solenidade na profissão de fé, em que a Liturgia nos pede uma vénia, ou, no caso da Missa de Natal, que nos ajoelhemos com um joelho, ou com os dois, se o Credo fôr cantado.

Das inúmeras versões polifónicas de grande qualidade que existem para este cântico, escolhi a da Missa de Sancto Joseph de Gaspar Fernandes, para três vozes, por razões de comodidade coral: o superius para as vozes do côro infantil e feminino; o tenor para mim, que vou dirigir; e o bassus para o celebrante, que
sabe ler música.

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Nota: na partitura original as vozes são 1º alto, 2º alto, e tenor;
nos compassos 13, 14, e 16, troquei as notas mais graves do soprano com as do tenor,
de modo a reduzir o âmbito do primeiro e evitar a descida aos sol e si graves.


Esta Missa encontra-se no volume XLIV da Colecção Portugaliae Musica da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, no qual constam ainda várias peças polifónicas para a Missa e Liturgia das Horas, em Latim:



Gaspar Fernandes nasceu em Évora, em Portugal, entre 1565 e 1570, e durante a juventude foi instruído na arte musical na vibrante Sé catedral daquela cidade, tendo possivelmente sido discípulo de Manuel Mendes e colega de Filipe de Magalhães, dois dos melhores compositores portugueses de sempre. É possível que tenha sido organista naquela igreja.

Mais tarde, por volta de 1599, Gaspar Fernandes emigrou para o Novo Mundo, tendo ocupado ao longo da sua vida os cargos de cantor litúrgico, professor e vigilante dos meninos do côro, mestre de capela, e organista nas Catedrais da Guatemala e de Puebla, no actual México. Faleceu em 1629.

Durante a sua vida, para além das funções já aludidas, Gaspar Fernandes compôs centenas de vilancicos sacros, que são pequenas peças corais em língua vernácula (castelhano, português, e nos vários dialectos ameríndios e crioulos do Novo Mundo). O compositor reuniu ainda e copiou inúmeras peças polifónicas litúrgicas de autores europeus na posse das Catedrais do Novo Mundo nas quais trabalhou: coligiu-as em códices, organizados para o uso litúrgico, e para as peças que faltavam, preencheu ele mesmo o espaço vazio compondo as suas próprias versões polifónicas, originais. São estas últimas que figuram na edição da INCM aqui publicitada.

Os entendidos dizem que as composições de Gaspar Fernandes não são da máxima genialidade, face ao que à época se produzia na Europa. Mas suas vida e obra nos ensinam que o ministério de músico litúrgico na Igreja deve ser exercido com humildade: Gaspar Fernandes aceitou sair de Portugal, onde ficaram outros mais capazes do que ele; e, já no Novo Mundo, preferiu copiar, ensaiar e cantar composições alheias em vez das suas próprias.

Também nos ensina que o músico católico deve ser missionário junto dos mais pobres: Gaspar Fernandes dedicou-se ao ensino das crianças ameríndias, e compôs para elas músicas vernáculas de espiritualidade popular. E as suas composições litúrgicas mostram-nos o senso práctico de quem se preocupa simultaneamente com a dignidade exigida pelo culto divino e os limitados recursos disponíveis.

Ensina-nos finalmente que em música litúrgica não se fazem omeletes sem ovos: Gaspar Fernandes foi quem pôde ser porque recebeu a sua educação dos melhores professores do seu tempo, numa das igrejas mais opulentas e numa das cidades mais poderosas da Potência que então era Portugal. E toda a vida foi pago pelos seus serviços.


Por tudo isto, muito nos honra termos na nossa História, na nossa Igreja, e no nosso reportório alguém "semelhante a um pai de família, que soube tirar do seu tesouro coisas novas e coisas velhas."

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