sexta-feira, 19 de abril de 2024

Repeto: crítica a livro de Göschl e De Lillo

Continuamos a tradução e republicação
dos magníficos artigos contidos no 

Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano «Dom Jean Claire» - Verona
Ano II - n° 1 - Janeiro - Abril 2020

 

Marco Repeto

Supplementum ad Graduale Romanum. Cantus codicum antiquissimiorum nondum editos continens, cura et studio Alexandri De Lillo. Neumis Laudunensibus et Sangallensibus ornatum a Joanne Berchmans Goschl, Eos – Editions of Sankt Ottilien 2019

No reflorir geral de trabalhos de editiones magis criticae do Graduale Romanum, as prensas das edições Eos - Edições de Sankt Ottilien - publicaram o Supplementum ad Graduale Romanum. Cantus codicum antiquissimorum nondum editos continens, cura et studio Alexandri De Lillo neumis Laudunensibus ornatum et sangallensibus ornatum a Johanne Berchmans Goschl, 2019. As peças apresentadas nesta publicação são o objecto da Tese de Doutoramento defendida por A. De Lillo em 22 de Fevereiro de 2019 no Pontifício Instituto de Música Sacra de Roma, sendo relator o prof. F.K. Prassl. "A Comissão, composta pelo Reitor e os Prof. N. Tangari, S. Barbagallo, S. Presciuttini, avaliou com amplo e total consenso o trabalho de Alessandro De Lillo", conforme se lê no site do Instituto. Examinemos primeiro a intenção deste volume, que é somente uma parte do trabalho de pesquisa em fase de publicação. No texto da dissertação doutoral encontraremos provavelmente a explicação de algumas quesitos. Antes de mais, a pesquisa visa trazer à luz o repertório do fundo original do Gregoriano, entendendo por original o fundo autêntico, tal como nos é transmitido pelos manuscritos presentes no Sextuplex. Em primeiro lugar, houve um reconhecimento das peças não presentes no actual Graduale Romanum (1974) direccionando o trabalho em duas direcções: a restituição melódica das peças presentes no Graduale Romanum de 1908, mas ausentes no de 1974, e a reconstrução de peças do fundo autêntico jamais publicadas em edições impressas a partir do Liber Gradualis de Dom Pothier de 1883 que nunca foram incluídas no repertório litúrgico hodierno, embora sejam atestadas nos manuscritos do Sextuplex. A exclusão das peças já publicadas deve-se essencialmente a três motivações: a supressão da festa litúrgica, a difusão local da peça, a exclusão após as recentes reformas litúrgicas. São ao todos cento e cinco as peças que não incluídas nas edições recentes, sem contar as peças que não podem ser encontradas nos manuscritos consultados ou estão presentes apenas em manuscritos adiastemáticos e, portanto, não podem ser reconstruídas. Estamos defronte de peças restituídas ou reconstruídas escolhendo os manuscritos utilizados para a publicação do Graduale Novum e os respectivos critérios adoptados para a edição desta publicação. Vem considerada normativa a lição melódica dos códices adiastemáticos, sempre colocados em relação com critérios de congruência ou então com as versões diastemáticas ou pautais. As peças não seguramente atestadas ou, enfim, não atribuíveis de modo unívoco a uma tradição, foram publicadas em várias versões melódicas para não arriscar uma reconstrução que pudesse ser arbitrária ou pelo menos não condizente com a verdade. Assim afirma o autor: “Na presença de atestações limitadas ou de peças não convincentemente atribuíveis a uma matriz melódica originária, em numerosos casos decidiu-se por documentar uma ou mais versões territoriais da mesma peça, ainda que talvez resultassem em possuir um sabor "tardio" não em linha com a nova estética gerada pela difusão das modernas versões restituídas, com o objectivo de reduzir sensivelmente a quota de arbitrariedade implícita na necessidade de efectuar escolhas; por consequência, o número global de composições inéditas reconstruídas ou já editadas ou sujeitas ao restituição melódica, presente nesta publicação, é 105." Há composições reconstruídas ou restituídas e, entre estas, peças relatadas em múltiplas versões melódicas devido à impossibilidade de uma reconstrução ou restituição unívoca devido à margem implícita de arbitrariedade. Por fim, o autor promete apresentar os aparatos críticos de referência para  cada peça individual incluída na publicação que mantém finalidades práticas de execução litúrgica. São estas as premissas para uma edição de peças que se apresenta como uma ideal prossecução da edição do Graduale Novum, seja como completamento, seja como adopção de critérios de restituição ou reconstrução.
Deveria conduzir-se-ia uma análise detalhada da presente publicação, antes de mais, para melhor compreensão dos critérios de escolha das peças. Um exemplo que talvez mereça uma certa atenção, também para o prosseguimento da pesquisa. A comunhão Nos autem gloriari nas páginas 159 – 164 do texto, relatada em seis versões diferentes, exclui outras atestações melódicas embora presentes nos manuscritos: qual o critério de escolha de algumas versões em detrimento de outras? A melodia de Nos autem na página 60 é retirada de Einsielden 121/299, que fornece só o texto musical com neumas em campo aberto da antífona e não do verseto. Este versículo é emprestado pelo Códice São Galo 381, o Versiculário, que relata os neumas alineares na dicção do modo quinto. A antífona é transcrita, portanto, em quinto modo com o bemol. O códice 339/140 de St. Gallen fornece uma versão desta communio com uma variante. Uma troca entre os sétimo e quinto modos pode ser sempre possível. Nos manuscritos do Sextuplex aparece na RBCKS como marcado, mas em contextos litúrgicos diferentes: Em K e S na Exaltatione sanctae Crucis, em C na Inventione sanctae crucis, em R e B na Feria tertia Hebdomadae Maioris. Em K a Communio tem um verso: Annunciate inter gentes, em C o verso Deus misereatur, em B o salmo é novamente Deus misereatur nostri. O texto da nossa antífona aparece, portanto, em  situações diferentes sem versetos, ou com versetos não idênticos. No Graduale Romanum de 1908 o texto já não aparece. No Antiphonale Monasticum de 1934 a peça aparece como antífona na página 1041 com tom VII C, no Liber Antiphonarius III de Solesmes de 2007 na página 211 é antífona das Primeiras Vésperas da Exaltação da Santa Cruz com tom VII C, no Antiphonale Romanum II é a antífona das Primeiras Vésperas da Exaltação da Santa Cruz com tom VII C. A Antífona em questão é classificada geralmente no sétimo modo, enquanto na nossa publicação é transcrita em quinto modo. Uma análise detalhada deveria ser conduzida também nas demais peças escolhidas para a presente publicação. Aguardamos, no entanto, o já anunciado estudo em preparação para analisar os sistemas críticos de referência de cada peça e avaliar conjuntamente o trabalho realizado pelo autor.

sábado, 13 de abril de 2024

Turco: reconstituição da antífona Immutemur habitu para 4ª feira de cinzas

Continuamos a tradução e republicação
dos magníficos artigos contidos no 

Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano «Dom Jean Claire» - Verona
Ano II - n° 1 - Janeiro - Abril 2020

 

Alberto Turco

IMMUTEMUR HABITU
antífona para a bênção e a imposição das cinzas
(GT 65)

O texto: a profecia de Joel (2, 13) é um convite à penitência para obter a “bênção” de Deus, por meio da qual se renovará a retoma do culto e a prosperidade agrícola.

A melodia: a versão melódica da vaticana foi retirada do Liber Gradualis (1883) de J. Pothier. Esta coincide com a versão do cód. Montpellier, Bíblia. de la Faculté de Médecine H. 159 (Dij) e cod. Bruxelas, B. Roy. II 3823 (Clu2).
O texto-melodia consta de três frases:

Immutémur hábitu, in cínere et cilício:
ieiunémus, et plorémus ante Dóminum:
quia multum miséricors est dimíttere peccáta nostra
Deus noster.

[Mudemos as nossas vestes pela cinza e o cilício.
Jejuemos e choremos diante do Senhor,
porque Deus é infinitamente misericordioso
e perdoa os nossos pecados.]

A grelha modal das três frases é a seguinte:


dominante

cadência provisória

cadência final

1ª frase:

SOL ou RE

↓Do ou ↓Sol

Sol ou Re (arcaico)
↓Re ou ↓La (protus à 4ª)

2ª frase:

LA

Re

La (protus na domin.)

3ª frase:

LA

La

Re (protus autêntico)

O presente contributo ocupa-se exclusivamente da restituição melódica da primeira frase, sem dúvida mais complexa que as outras duas. Por este motivo, fez-se recurso à selecção dos manuscritos mais representativos da Editio critica de Solesmes (atelier, placa 1468) e de alguns dos manuscritos assinalados por R. Fischer [1].Os manuscritos selecionados pertencem às tradições beneventana (Ben5, Cas2), aquitana (Alb, Yrx), francesa (Dij2), alemã (Klo1), lorenesa (Van2), italiana (Mod1):

Ben5

cod. Benevento, Bibl. Cap. 34, Gradual-Tropário-Prosário, séc. XI-XII

Cas2

cod. Montecassino 546, Missal de Montecassino, séc. XII primeira metade

Alb

cod. Paris, Bibl. Nat. lat. 776, Gradual-Tropário de Gaillac, séc. XI

Yrx

cod. Paris, Bibl. Nat. lat. 903, Graduale de St-Yrieix, séc. XI

Dij2

cod. Bruxelles, B. Roy. II 3824, Graduale, a. 1228-1288

Klo1

Cod. Graz, Universitäsbibl. 807, Graduale, séc. XII

Van2

cod. Verdun, Bibl. Mun. 759, Missale, séc. XIII primeira metade

Mod1

cod. Modena, Bibl. Cap. O. I. 13, Graduale de Modena/Bologna, séc. XI-XII

Tabela comparativa das versões melódicas dos manuscritos citados:

Os manuscritos beneventanos (Ben5, Cas2), com a escrita em dominante Sol, descem uma quarta, para Ré, à cadência da frase et cilício. Por sua vez, esta é precedida pelo termo grave, em Dó, da sílaba final de “cínere”, no papel de subtónica de Ré. A frase apresenta, então, a estrutura compositiva do protus à quarta (2* modo).
Os manuscritos aquitanos (Alb, Yrx) são escritos em dominante e cadência final em Ré. Descem uma quarta, para Lá, com o termo grave de cínere, como os precedentes de Benevento.
A mesma estrutura modal se dá em Dij2: dominante e cadência final da frase Sol; termo grave Ré.
Nestes últimos três manuscritos, a estrutura modal é aquela típica do modo arcaico de Ré.
Os outros manuscritos (Klo1, Van2, Mod1) diferem dos aquitanos pelo desenvolvimento no grave em Dó, ao invés de permanecer no Ré, da cadência final da frase. Trata-se de um primeira estádio do desenvolvimento modal da cadência final.

Dito isto, passemos à análise dos ganchos melódicos que ocorrem entre as notas finais de cilício e de cínere e os respectivos ataques dos neumas imediatamente a seguir.
A tradição, quase unânime entre os manuscritos, tem o intervalo de quinta entre a nota final de cilício e o neuma seguinte. Uma só excepção em Van2, na qual se verifica o intervalo directo da sexta; enquanto Mod1 evita tal intervalo, recorrendo ao emprego dp pes.
A tradição outrotanto sólida do intervalo de quinta dá-se entre o término grave de cínere e o ataque do neuma de et cilício. São excepções Klo1, com o intervalo de sexta, e Alb, com o intervalo de sétima. A estranheza destes dois intervalos directos, de sexta e de sétima, nos cantos do Gradual impõe-nos a análise mais detalhada do problema.

Na versão melódica de protus à quarta - dominante Sol e cadência final de frase ↓Ré -, os manuscritos da tradição beneventana concordam em pôr os intervalos de quinta entre o término grave Dó de cínere e entre a cadência final Ré de cilício e os respectivos ataques dos neumas sucessivos.

[2] Existe um só caso de intervalo directo de sexta no Graduale Romanum: cf. Gr. Quis sicut Dóminus... “terra” (GT 269). De um antigo Tracto das Quatro Têmporas, a presente peça foi transformada em Gradual com o emprego de fórmulas heterogéneas. Não existe, pois, caso algum de intervalo directo de sétima no repertório clássico do gregoriano. Inclusive, na sequência Veni Sancte Spiritus de Pentecostes (GT 253), o compositor evitou de propósito o intervalo de sétima, se bem que não directo, com o ataque em Lá e não em Dó, de Lava quod est sórdidum, em contraste com o mesma fórmula de Riga quod est áridum.

O intervalo da quinta confirma-se também entre a cadência de cilício e o ataque do ieiunémus na escrita em dominante e cadência final Ré: confronte-se Alb, Yrx, Klo1, Dij2. Nesta versão melódica – dominante e cadência final de frase Ré – notam-se, contudo, várias adaptações entre a cadência de cínere e o ataque de et cilício. Eis quanto se retira dos manuscritos da tabela mostrada acima:
- Alb coloca a fórmula de et cilício no mesmo âmbito melódico das respectivas em Ben5 e Cas2: intervalo de quinta modal do protus, com o termo agudo do pes quassus, sobre Lá, e a nota final ↓Ré. Neste âmbito, a partir da fórmula em questão até ao final da peça, a versão melódica de Alb é comparável àquela dos manuscritos beneventanos. O âmbito melódico que a presente fórmula vem assumir interrompe a linha melódica com o contexto compositivo precendente, causando o intervalo melódico de sétima entre o seu ataque e a nota final de cínere. Trata-se de um intervalo que não constitui um facto “compositivo”, mas diz respeito a um problema de “escrita por fragmentos” tout court [3].

[3] A «escrita por fragmentos» manifesta-se não apenas nos manuscritos diastemáticos sem pauta - por exemplo, Alb, Yrx, alguns beneventanos (cfr- cod. Benevento, Bibl. Cap. 40, Graduale do séc. XI início), etc. - mas também nos pautados, com ou sem clave, em peças centonizadas de fórmulas heterogéneas: por exemplo, a Co. Cantábo Dómino (GT 283) de protus plagal inicia com uma fórmula de Mi; a Co. Circuíbo (GT 297) de tritus plagal inicia com uma fórmula de Ré; a Co. Amen dico vobis: Quod uni (GT 79) é uma mistura de protus, tritus e, por fim, de deuterus; a Co. Beátus servus (GT 491) é uma mistura de deuterus-protus.

- Yrx modifica a versão melódico-modal da fórmula de et cilício, introduzindo um scandicus de três notas ascendentes no ataque, em et, e reduzindo a uma quarta a sua extensão melódica, a fim de obter os intervalos de quinta, antes e depois.
- Van2 e Mod1 recorrem ao emprego do scandicus de três notas ascendentes no ataque da fórmula et cilício para restabelecer o intervalo de quinta com o neuma precendente, mas, como tivemos oportunidade de ver anteriormente, só Mod1 procura evitar o intervalo da sexta com o ataque do neuma da segunda frase (ieiunémus), recorrendo à dicção melódica “re↑la” do pes.
- Klo1 ataca a fórmula em questão à distância de uma sexta da última nota do neuma precedente; depois desta, introduz uma variante melódica no ataque de ieiunémus (“sol-sol-la” em vez de “la-la-do”), a fim de obter o intervalo de quinta.
- Dij2 merece uma particular atenção. A sua versão melódico-modal remonta àquela de algumas peças, presumivelmente provenientes da tradição galicana - In. Dum médium siléntium (GT 53), In. In excélso throno (GT 257), In. Lux fulgébit (GT 44) -, em que, a partir da dominante Sol (corda estrutural), a melodia evolui tanto para o grave uma quarta, no modelo do modo de Ré (protus), quanto para o agudo uma quarta, no modelo do modo de Dó (tetrardus).

Conclusões:

1. Grelha modal dos responsum nos 14 graduais do 1.º modo:

dominante

subtónica
término grave

final

SOL

ré (protus à quarta)

ré (modo arcaico)

2. Grelha modal da primeira frase de Immutémur:

Immutémur

in hábito

et cilício


ieiunémus

dominante

subtónica
termo grave

ataque

final

ataque
2ª frase


SOL









↓dó

      lá
sol /      





[sol]


↓ ré









Immutémur

in hábito

et cilício


ieiunémus

dominante

subtónica
termo grave

acento

final

ataque
2ª frase















[b]      
       Lá


       sol
/     
[mi]          













sol






Análise estético-modal:

A escrita em dominante Sol recalca perfeitamente a grelha modal dos responsum dos graduais de 1º modo: Ben5, Cas2.
Dij2, com escrita em dominante e cadência final Sol (modalidade arcaica), constitui um caso à parte, do qual se falará a seguir.

A escita em dominante Ré tem:
- o termo grave na quarta (fórmula de protus), com excepção de Klo1, que introduz o Si-bemol (fórmula de deuterus);
- o ataque melódico em et do pes quassus + prævirgis unisonica à distância de uma quinta, com exceção de uma sexta em Klo1 e uma sétima em Alb. A dicção melódica do presente neuma é modificada para scandicus-oriscus de três notas ascendentes, a fim de obter precisamente o intervalo de quinta com o último som do neuma precendente: Yrx, Van2, Mod1. A dicção melódica dos dois sons do pes quassus é, no entanto, de um tom inteiro;
- a nota final de cilício desce uma quinta (sol↓do), com cadência redundante de tetrardus (Klo1, Van2, Mod1) ou uma quarta (sol↓re), com redundância de protus (Yrx). Alb desce uma quinta, mas a partir do acento melódico Lá, até à cadência final Ré, com a redundância de protus;
- o ataque melódico do ieiunémus (segunda frase) coloca-se à distância de uma quinta da nota final do neume precedente (Alb, Yrx, Klo1) ou à distância de uma sexta (Van2). Mod1 tem a distância de uma segunda, com a primeira nota do pes (re↑la), para evitar o ataque direto à sexta, do Dó ao Lá.

Da presente análise se percebe que a escrita em dominante Ré acusa múltiplos ajustes melódicos no ligar das fórmulas das unidades verbais. A criticidade mais estrepitosa é testemunhada por Alb, que ao escrever em dominante Ré corrigiu a posição melódica da fórmula de et cilício, para concluir em protus no Ré.

Particularidades
1. O neuma, na dicção paleográfica de pes + pes quassus uníssono, do acento melódico-verbal de “há-bitu” tem habitualmente o ataque do neuma seguinte em Lá, como nos Cânticos da Vigília pascal (cfr. GT 186), nos Tractos de 8º modo (ver GT 97), Ben5 e Cas2 colocam correctamente a primeira nota do porrectus em Lá e, com a terceira nota, sobem para Si. Logo, para o pes sangalês, é mais que confiável a dicção melódica “la-si”.
2. O equaliter entre o pes quassus da sílaba final de “hábi-tu” e o epiphonus da preposição in tem o significado, neste contexto específico, de “igual motivo melódico” e não o de uníssono entre dois ou mais sons. Portanto, os sons do epiphonus retomam os do pes quassus precedente. O significado “mesmo motivo” expressa também o equaliter entre o neuma do acento melódico-verbal e o torculus da sílaba final de “immu-témur”. Estes mesmos contextos melódicos com o emprego da letra equaliter encontram-se respectivamente no In. Resurréxi ... posu-ísti” (GT 196), entre o scandicus-quilisma e o torculus, e na Co. Signa eos... e-í-ci-ent” (GT 437), três pes de seguida com equaliter colocado sob o segundo e com efeito também para o terceiro.

Versão melódica da primeira frase no

- Graduale Triplex, pág. 65

- Graduale Novum I, pág. 56


A presente versão melódica é retirada de Alb, em escrita com dominante e cadência final em Ré. A esta estrutura modal, vêm aplicados os mesmos intervalos melódicos da versão Dij2, com o emprego injustificado da alteração sustenida. Em hábitu, o fá-sustenido não faz sentido algum, pelo facto que o contexto melódico-modal de Alb - a mesma versão melódica se encontra também em Mod1 - é diferente daquele de Dij2; em et cilício, o fá-sustenido é uma alteração de corrupção, para a modulação do contexto compositivo de protus para tetrardus.
A cadência em protus é testemunhada, em Ben5 e Cas2, pela fórmula cadencial galicana (“re-mi-mi-re”) dos tractos em Re da Quaresma e Semana Santa. Por último, perguntamo-nos como foi possível que os editores da presente edição não se tenham perguntado qual o motivo que levou a comissão da vaticana a traduzir a dicção melódica do neuma de acento de "et cilício" por "la-do-re" e não por "do-do-re"? Evidentemente para evitar o intervalo de sétima. Bastava orientar-se pela versão de Ben5 e nos critérios da composição dos modos! Frequentemente no Graduale Novum encontram-se variantes melódicas atestadas somente por Ben5. 

A versão mais fidedigna do ponto de vista melódico-modal e semiológico é testemunhada pelos manuscritos beneventanos e, em parte, pelos aquitanos. A passagem do protus à quarta (sol↓re) da primeira frase para o protus autêntico (la↓re) das outras duas frases, frequentemente presente no repertório, dá homogeneidade e musicalidade a toda a peça.

É bom chamar à atenção um dos critérios fundamentais a recordar acima de tudo:
As fontes manuscritas da primeira frase fornecem duas cadências: uma em modalidade arcaica, ou seja, no grau melódico da nota dominante; a outra em modalidade evoluída (protus à quarta). A estrutura em modalidade arcaica utiliza geralmente a escrita em dominante Ré: com esta escrita encaixa-se correctamente o incipit da segunda frase, com ataque da quinta no Lá. A estrutura em modalidade evoluída (protus à quarta), ao invés, usa a escrita em Sol, com cadência final Ré. Pois bem, a incerteza do termo grave da cadência provisória de cínere, na quarta ou na quinta, mas sobretudo a cadência final em modalidade arcaica estão na origem da confusão na escolha por parte dos manuscritos quanto ao ataque melódico - à quarta, à quinta, à sexta e até à sétima [4] - de et cilicio, para concluir a frase em Ré. A versão melódica e modal correcta do protus à quarta, mediante a escrita em dominante Sol e cadência final Ré está documentada nos manuscritos da área beneventana.
A configuração modal da primeira frase liga-se aos Graduais dos 1º e 7º modos, em dominante Ré (= Sol, em transposição; no caso do Gr. Salvum fac do 1º modo (GT 85), com a mesma estrutura modal da primeira frase de Immutemur, e no Gr. Miserere mihi, Domine do 7º modo (GT 103), com a acentuação em Dó dos Cânticos da Vigília Pascal.
Particularidades da versão melódica da primeira frase em escrita Sol ou em escrita Ré: na escrita em Sol, o pes de ornamentação que segue o neuma do acento melódico-verbal de “há-bitu” ataca em Lá, à distância de uma quarta do ápice Ré; diversamente, na escrita em Ré, o ataque do pes ocorre à distância de uma terça, em Fá, do ápice Lá, à distância de dois tons inteiros. 

[4] O intervalo de sétima está documentado em GrNo.I.56.

 



terça-feira, 9 de abril de 2024

Turco: a colocação do «quilisma» no scandicus

Continuamos a tradução e republicação
dos magníficos artigos contidos no 

Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano «Dom Jean Claire» - Verona
n° 3 - Setembro - Dezembro 2019

 

Alberto Turco

A COLOCAÇÃO DO «QUILISMA»
NO SCANDICUS

O quilisma ocupa o lugar dentro do intervalo melódico da terça. O quilisma não se dá no intervalo de quarta e, muito menos, no intervalo de quinta. Fora do intervalo de terça, os livros de canto da restauração gregoriana deram algumas soluções. Tomemos o exemplo do Resp. Ecce vicit leo...al-lelúia”.

As soluções dos livros de canto:
- o OHS (p. 583) tem a dicção melódica “la-re-mi” de um scandicus-quilisma (n. 1);
- o LR (p. 89) e o PM (p. 68) contêm a dicção melódica “la-re-mi-re” de um pes + clivis (n. 2);
- a NR (p. 435) tem a dicção melódica “la-si-re” de um scandicus-quilisma (n. 3);
- o LH (p. 512) propõe a dicção melódica “la-re-mi” de um pes + virga liquescente (n. 4). Dom E. Cardine escolheu a presente dicção melódica, na óptica de uma bem precisa tradição semiográfica.
Os referidos livros expressam, de facto, duas tradições: a tradição com o quilisma e a tradição sem quilisma.
Tomemos como exemplo o primeiro caso encontrado no GT, o Of. Ad te Dómine levávi ... “irrí-de-ant” (GT 17), em que a EC releva o problema, à luz dos manuscritos adiastemáticos.

À sílaba pós-tónica de “irrí-de-ant” são atribuídas três dicções neumáticas:

(Edição crítica) [1]

[1] Cfr. Le texte neumatique, IV, «Le Graduel Romain, Édition critique (EC)», Solesmes, 1962, pp. 82-83.

As traduções diastemáticas dos manuscritos da EC são as seguintes:

Nos manuscritos Klo1, Dij, Clu2, o scandicus-quilisma é traduzido em quatro sons conjuntos, com o som de passagem (quilisma) no âmbito do intervalo de terça. A esta solução remonta a dicção melódica de Sta1, com a grafia do quilisma em uníssono com o tractulus.
As soluções de Ben5, Van2, Den2, Rop, Alb não prevêm o emprego do quilisma. A dicção gráfica de Ben5 pretende significar um scandicus tout court. Portanto, não é correto fazer coincidir a nota de passagem do referido scandicus com o quilisma sangalês. Não esquecer que a função do quilisma está em estreita relação ou coligada à nota superior, à distância de um grau melódico conjunto!
Não se podem, portanto, misturar as tradições: a com o quilisma, e a sem o quilisma.

O quilisma vai traduzido só no âmbito de um intervalo de terça. Portanto, se se aceita a tradição com o quilisma, deve escolher-se a dicção melódica que se verifica em Klo1, Dij, Clu2 e muitos outros manuscritos. Sem o quilisma, é de seguir a mais provável tradição dos manuscritos diastemáticos. São de privilegiar da EC estes últimos, em quanto representam a tradição mais vizinha aos manuscritos adiastemáticos.

Da análise do conjunto das fontes, emergem três dicções melódicas possíveis: a primeira, com o quilisma no âmbito melódico da terça menor; a segunda, com scandicus subbipunctis; a terceira, com pes + climacus de ornamentação.

O nosso neuma representa o acento melódico “secundário”, no contexto da cadência redundante. Em quanto tal, pode ocorrer em qualquer sílaba, que preceda a redundância. Neste caso, o acento principal da redundância é constituído pela sílaba final ant de irrídeant, devido ao pronome final me: “ir-ríde-ant me”. O acento melódico secundário na sílaba precendente ao da redundância, ou seja, na sílaba de.
Portanto, a primeira dicção melódica, com o emprego do quilisma, mete em evidência a função da subtónica (Dó) do contexto compositivo, do qual surge a ornamentação do scandicus-quilisma subbipunctis.
A segunda dicção, formada por pes de acento melódico secundário, habitualmente presente nas cadências de protus plagalis (do-mi-re) + climacus de ornamentação.
A terceira dicção é representada por pes de antecipação, por graus melódicos conjuntos, do pes do acento redundante: do-ré / ré-mi, ligados entre si pela ornamentação do climacus.

FONTES

Manuscritos da Edição crítica solesmense:

Ein

cod. Einsiedeln, Stiftsbibl. 121, séc. X segunda metade, Graduale, notação sangalesa adiastemática (PM)

Klo1

cod. Graz, Universitäsbibl. 807, séc. XII, Graduale, notação lorenesa de Klosterneuburg em linha (PM)

Lan

cod. Laon, Bibl. Mun. 239, a. 930 circa, Graduale, notação lorenesa adiastemática (PM)

Van2

cod. Verdun, Bibl. Mun. 759, séc. XIII primeira metade, Missal, notação lorenesa em tetragrama (CG)

Cha1

cod. Chartres, Bibl. Mun. 47, séc. X, Graduale, notação bretã adiastemática (PM)

Rop

cod. Leningrado O v I 6, Graduale de Rouen, séc. XII, notação francesa em pauta

Alb

cod. Paris. Bibl. Nat. lat. 776, sec. XI, Gradual-Tropário, notação aquitana diastemática sem pauta (CG)

Ben1

cod. Benevento, Bibl. Cap. 33, Missal, séc. X-XI, notação beneventana adiastemática (MP)

Ben5

cod. Benevento, Bibl. Cap. 34, Gradual-Tropário-Prosário, séc. XI-XII, notação beneventana com linha (PM)

Dij

cod. Montpellier, Bibl. de la Faculté de Médecine H. 159, Graduale, notação francesa adiastemática e alfabética (PM)

Clu1

cod. Paris, Bibl. Nat. lat. 1087, Graduale de Cluny, séc. XI primeira metade, notação francesa adiastemática

Clu2

cod. Bruxelles, B. Roy. II 3823, Graduale, séc. XII início, notação aquitana em pauta

Ept

cod. Darmstadt, Hess. Landesbibl. 1946, Gradual-Sacramentario, a. 1000 circa, notação alemã adiastemática

Sta1

cod. London, Bibl. Mus. add. 18031-32, Missale de Stavelot, séc. XIII início, notação gótico-renana com pauta

Den4

cod. Paris, Bibl. Nat. lat. 9436, Missale de St-Denis, séc. XI meados, notação francesa adiastemática

Den2

cod. Paris, Bibl. Nat. lat. 1107, Graduale de St-Denis, séc. XIII segunda metade, notação quadrada em tetragarma

Livros de canto:

GT

Graduale Triplex, Solesmis, MCMLXXIX

LH

Liber Hymnarius cum Invitatoriis & aliquibus Responsoriis, «Antiphonale Romanum», Tomus alter, Solesmis, MCMLXXXIII

NR

Nocturnale Romanum (Editio Princeps), Romæ-Florentiæ-Veronæ, 2002

PM

Processionale Monasticum, Solesmis, 1983

OHS

Officium Maioris Hebdomadæ et Octavæ Paschæ, Romæ, MCMXXII

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Bellinazzo: a origem dos próprios das Missas do Natal

Continuamos a tradução e republicação
dos magníficos artigos contidos no 

Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano «Dom Jean Claire» - Verona
n° 3 - Setembro - Dezembro 2019

 

Nicola Bellinazzo

O “PROPRIUM MISSÆ”
DO DIA DE NATAL

Premissa
A celebração do Natal do Senhor encontra a sua origem teológica e espiritual na Páscoa, onde se torna presente o mistério da passagem da morte à vida com Cristo. São Leão Magno fala do Natal como poderia ter falado da Páscoa. Sobre isso escreve: «...dia escolhido para o mistério (sacramentum) da restauração do género humano na graça» [1]. O Natal torna-se então num aspecto do único sacramentum celebrado nos seus diversos aspectos.

[1] LEÃO MAGNO, Serm., 9 (De Natale Domini): CCL 138, 139

1. Missa de Vigília (In Vigilia)
Na Missa da Vigília, os textos estão claramente orientados para a Páscoa. Nela são mencionadas diversas vezes as etapas do plano de salvação de Deus. Assim como a Páscoa, também o dia de Natal foi dotado de uma vigília, facto atestado já em meados do século VI, e, como dizíamos, constrói-se segundo o modelo da vigília pascal, com peças retiradas do Antigo Testamento no que diz respeito às leituras em particular.
No Intróito a vinda do Senhor relaciona-se com a salvação e esta com a sua glória, “glória” com significado messiânico e escatológico: Hodie scietis, quia veniet Dominus, et salvabit nos: et mane videbitis gloriam eius.
Tanto o texto do intróito como o do gradual são retirados de Êxodo 16, 6-7 e de Isaías 35,4 e fazem uma clara referência à Páscoa. Esta passagem, em que Êxodo se refere à promessa do maná, a Igreja considerou-a indicativa da promessa (vinda) do Filho de Deus.
Construído na corda de Fá (= Dó na escrita arcaica) com um pequeno acento em Sol na sílaba “e” do verbo scietis. O Sib é um ornamento do Sol. O compositor mete em evidência o Hodie inicial sublinhando o verbo scietis, trazendo-o, da corda de recitação, para o grau superior Sol. A peça desenvolve-se no grave, na subtónica Ré (= Lá ); sublinha com bivirga a sílaba tónica do verbo salvabit e da palavra gloria.

O gradual Hodie scietis tem no caput o mesmo texto do intróito; enquanto o verseto é retirado do salmo 79,2.3. Construído sobre o timbre modal dos graduais de 2º modo em A (protus à quarta), transportado para a quinta superior em clave de Dó.

O ofertório Tollite portas, versículo sétimo do salmo 23, deriva originariamente da festa de 2 de Fevereiro, Apresentação do Senhor no templo, com a qual se concluía o tempo do Natal. Mas é também o salmo do Senhor que entra em Jerusalém.
O texto: Tollite portas, principes, vestras: et elevamini, portæ æternales, et introibit Rex gloriæ.
A composição é construída na corda Ré (=Lá), com acentos melódico-verbais à 3ª (Fá=Dó), à 4ª (Sol=Ré) e, até, à quinta (Lá=Mi) em gloriæ. A simbiose do ápice musical com o textual da peça é constituída sem dúvida alguma pelos neumas e pelo iubilus conclusivo de Rex gloriæ, o «Rei da glória», protagonista absoluto desta entrada.

A communio Revelabitur, cujo texto é retirado de Is. 40,5, é escolhida para esta celebração vigiliar em referência à frase final: et videbit omnis caro salutare Dei nostri; a melodia e o texto de salutare Dei nostri provêm da communio da terceira missa In die, a primeira a ser composta.
Revelabitur gloria Domini: et videbit omnis caro salutare Dei nostri. 

A aleluia Crastina die, no Sextuplex [2], é citada somente pelo manuscrito de Senlis (segunda metade do séc. XI). Os demais manuscritos convidam o cantor a usar qualquer aleluia (quale volueris) do tempo do Advento, ou a omitir o canto. O texto é uma composição poética livre.

[2] ANTIPHONALE MISSARUM SEXTUPLEX, editado por Dom René-Jean Hesbert, Herder Roma 1935

2. Missa da Noite (In Nocte)
Dado que a celebração mais antiga do dia de Natal é a Missa In Die, as outras duas celebrações são desta uma emanação.
Os manuscritos do Sextuplex são discordantes ao atribuirem o título à Missa In nocte: alguns chamam-na de In Nocte ou In primo galli cantu; outros, Prima in gallorum cantu ou Media nocte.

A Missa In Nocte vem a ser instituída por volta do séc. V e representa a celebração estacional votiva do Natal, segundo o modelo das celebrações que se realizavam nos túmulos dos mártires. Acontecia na Basílica de Santa Maria Maior, também chamada de Basílica Sancta Maria ad præsepem, pelo facto de nela se conservar uma relíquia do berço/manjedoura.

O intróito Dominus dixit ad me: filius meus es tu, ego hodie genui te, é uma breve composição que tem como texto o sétimo verso do salmo 2. Um salmo régio que se reveste de particular importância para a leitura messiânica que lhe foi feita (vitória do Rei-Messias) e pela nova interpretação dada no Novo Testamento: a geração eterna do Verbo. Sobre este tema escolher-se-á também o gradual Tecum pricipium e a communio In splendoribus. Trata-se de uma escolha típica da historicização do repertório gregoriano.
O intróito primitivo desta missa deveria haver sido o Dum medium silentium, seguramente mais adequado à celebração nocturna do Natal: Dum medium silentium tenerent omnia, et nox in suo cursu medium iter haberet, omnipotens sermo tuus, Domine, de cælis a regalibus sedibus veniet (Sabedoria 18,14-15). Substituído pelo Dominus dixit ad me, foi recuperado para a formação do Proprium do segundo domingo depois do Natal. É uma peça da tradição galicana: composição de Ré (= Sol) com desenvolvimento melódico estendido a uma quarta tanto aguda como grave.
Se dirigirmos o olhar para o repertório de Milão, constatamos que o mesmo texto de Dominus dixit é usado como antífona após o Evangelho da missa In aurora. As duas peças equivalem-se modalmente e são comparáveis ​​(protus plagal, arcaizante à 3ª); a única diferença está no género melódico: no gregoriano género semi-ornado, no milanês silábico.

Assim, o gradual da historicização Tecum principium (terceiro verso do salmo 109) proclama a geração eterna do Verbo: Tecum principium in die virtutis tuæ: in splendoribus sanctorum, ex utero ante luciferum genui te.
A sua composição está feita sobre o timbre de protus à quarta (2* modo): a corda estrutural do caput é o Lá, com desenvolvimento da dominante em Dó; enquanto o verso está na 4ª em Ré. Também este gradual substituiu o tracto/gradual primitivo Speciosus forma, que foi recuperado pelo segundo domingo depois do Natal como Dum medium silentium.

A aleluia Dominus dixit ad me retoma o texto do Intróito (Sl 2). É construída sobre o timbre modal das aleluias de tetrardus plagal.

O ofertório Lætentur cæli está em deuterus plagal, como os ofertórios de Páscoa e Pentecostes. O texto foi extraído do Salmo 95: Lætentur cæli et exsultet terra ante faciem Domini, quoniam venit.

A communio In splendoribus sanctorum retoma o texto do salmo 109(110): In splendoribus sanctorum, ex utero ante luciferum genui te.
A estrutura melódica está encavilhada na corda de Fá, que de finalis se torna corda de recitação: modo arcaico. O compositor dá um amplo respiro a toda a peça, seja pela sua brevidade, seja pela importância de que se recobre neste contexto: o Verbo coeterno com o Pai.

3. Missa da Aurora (Mane prima)
NoAntifonale Missarum Sextuplex, a Missa da Aurora é chamada, pelos seis manuscritos, por diversos modos: Mane prima; Mane prima Statio ad Sanctam Anastasiam; In vigilia mane prima, Statio ad Hierusalem.
Até meados do século VI, o Papa celebrava esta missa diretamente na Basílica de São Pedro. Mas já a partir do final do século IV existia no Monte Palatino um Titulus Anastasiæ, uma igreja edificada na propriedade de uma mulher piedosa de nome Anastácia ou, como sustentam outros estudiosos, dedicada à ressurreição; construída no modelo da Anastasis de Jerusalém. Para o final do século V, desenvolve-se em Roma o culto a Santa Anastásia mártir. Este culto vem do Oriente, precisamente de Constantinopla, onde no dia 25 de Dezembro se celebrava a decapitação da santa mártir. A igreja assumiu o título de Santa Anastásia, e o papa, por obséquio à autoridade imperial bizantina, vinha ali celebrar a missa no dia da festa da mártir, que coincidia com o Natal. A missa, no início, tinha um formulário próprio com um seu prefácio, como nos indica o Sacramentário Gelasiano.
Da igreja de S.ª Anastásia o papa dirigia-se seguidamente para a Basílica de São Pedro para celebrar a missa do dia. Portanto, o Proprium desta missa é formado por peças recuperadas das outras duas missas no Natal. [3]

[3] Recordemos alguns costumes do Natal: só o bispo podia entoar o Gloria in excelsis Deo, privilégio que se conservou até ao século X; os sacerdotes podiam celebrar três missas, usança atribuída a Pedro, abade de Cluny.

O intróito Lux fulgebit é o mais recente dos intróitos. Provem da tradição galicana/gregoriana. O texto é um remanejamento do intróito Puer natus: Lux fulgebit hodie super nos: quia natus est nobis Dominus: et vocabitur Admirabilis, Deus, Princeps pacis, Pater futuri sæculi: cuius regni non erit finis.

No gradual Benedictus qui venit, o responso primitivo do Confitemini (salmo 117) conservou a função de resposta (caput) do novo verso 23: A Domino factus est: et est mirabile in oculis nostris, tomando porém a melodia do responsório homónimo. O presente salmo pro vem da missa In die. A salmodia mais antiga e prrópria da Páscoa e do Natal é representada pelo salmo 117, com responso, à época da forma responsorial, Hæc dies e Benedictus qui venit, respectivamente para a Páscoa e o Natal. Não se pode excluir que a escolha do responso Benedictus qui venit venha diretamente da Igreja de Jerusalém.

A aleluia Dominus regnavit é o primeiro versículo do salmo 92; é seguramente a peça originária da missa In die, como o foi para o dia de Páscoa. As fórmulas melódicas desta aleluia, em protus plagal, serviram de modelo para a composição do timbre de 2º modo. Dominus regnavit, decorem induit: induit Dominus fortitudinem, et præcinxit se virtute.

O ofertório Deus enim firmavit, do Salmo 92, o mesmo do Dominus regnavit, também se encontra como ofertório no domingo seguinte ao Natal. Poderia tratar-se do primitivo ofertório primitivo do Natal.
Deus enim firmavit orbem terræ, qui non commovebitur: parata sedes tua, Deus, ex tunc, a sæculo tu es.

A communio Exsulta filia Sion não possui texto sálmico; é retirada do livro do profeta Zacarias, no cap. 9. O mesmo texto se encontra no IV domingo do Advento segundo o Antifonal de Rheinau (séc. VIII-IX), constante do Sextuplex. Exsulta filia Sion, lauda filia Ierusalem: ecce Rex tuus venit sanctus, et Salvator mundi.

4. Missa do dia (In die)
Mais uma vez queremos reiterar que a missa primitiva do dia de Natal é a In die. Pelos manuscritos mais antigos é chamada de: In die natalis Domini, VIII Kalendas Januarias Natale Domini ad missam in die ad Sanctum Petrum, In die natalis Domini que est, VIII Kalendas Januarias, Statio ad Sanctum Petrum.

O intróito Puer natus, em tetrardus autêntico, é o primitivo canto processional de ingresso da missa de Natal, desde quando se havia uma única celebração, com a Statio em São Pedro. O texto é profético (Is 9,6) e pretende exprimir o nascimento temporal do Verbo.
Puer natus est nobis, et filius datus est nobis: cuius imperium super humerum eius: et vocabitur nomen eius, magni consilii Angelus.

O gradual Viderunt omnes repropõe como texto o salmo 97: Viderunt omnes fines terræ salutare Dei nostri: iubilate Deo omnis terra. Notum fecit Dominus salutare suum: ante conspectum gentium revelavit iustitiam suam.
O texto deste gradual substituiu o primitivo do salmo 117.
No que diz respeito à melodia, trata-se de um tritus autêntico, composição estranha aos graduais primitivos do Natal e da Páscoa.

A aleluia Dies sanctificatus propõe um texto eclesiástico. Melodicamente falando, trata-se do timbre modal de 2º modo.
Dies sanctificatus illuxit nobis: venite gentes, et adorate Dominum: quia hodie descendit lux magna super terram.

O ofertório Tui sunt cæli é retirado do Salmo 88. É um texto genérico que não tem muita ligação para o mistério que se celebra. Do ponto de vista compositivo é um deuterus plagal, como os ofertórios da Páscoa e do Pentecostes.
Tui sunt cæli, et tua est terra: orbem terrarum, et plenitudinem eius tu fundasti: iustitia et iudicium præparatio sedis tuæ.

O texto da communio Viderunt omnes fines terræ salutare Dei nostri repropõe, a par do gradual e e do verseto salmódico do Puer natus, o Salmo 97, na óptica do tema “o nascimento na história do Verbo”. A melodia, em protus autêntico, sublinha a presente temática  na acentuação das palavras ... fines terræ ... salutare.

Conclusão

Com esta breve pesquisa musical e litúrgica, quisemos afastar todas aquelas “receitas” ou considerações “romântico-evocativas” que pairam em torno da festa do Natal. Música e liturgia viajam de par e passos, completando-se, enriquecendo-se para poder exprimir, no melhor modo possível, o mistério do Verbo encarnado. A ampliação da festa do Natal, com as suas quatro celebrações, incluída também a Vigília, encontra nos textos e no canto gregoriano a sua máxima expressão. Não se pode esaurir todo o mistério da Encarnação com uma só e simples celebração e com melodias simples ou de remédio. O canto gregoriano exprime-se com melodias “únicas”, surpreendentes, com obras-primas, não só musicais mas também teológicas, sublinhando a importância das palavras ou frases que servem para celebrar dignamente o mistério.
Propomos de seguida como haveria sido o formulário da mais antiga e primitiva Missa do Natal:

In. Puer natus est
Gr. Confitemini, do salmo 117 com refrão Benedictus qui venit
Al. Dominus regnavit
De. Deus enim firmavit
Co. Viderunt omnes

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Turco: o Gradual Simples para o renascimento do gregoriano hoje

O GRADUALE SIMPLEX

Para o renascimento do canto gregoriano, hoje1

por Mons. Alberto Turco


1. O livro do salmista e da schola

Duas épocas de composições musicais bem distintas, correspondentes a duas zonas litúrgicas, caracterizaram o percurso histórico da liturgia: a época do salmista, desde as suas origens até ao séc. V inclusive, e a época da schola, do séc. VI em diante.

A época do salmista estende-se aos recitativos litúrgicos, que se originam da ‘cantilação’ e nos quais o uníssono é predominante. Nos recitativos, o texto é anunciado, declamado e pontuado, para efeito da sua inteligibilidade.

Os géneros litúrgico-musicais que se formaram a partir dos recitativos podemos subdividi-los em leituras, monições, orações, em sentido lato, salmodia, litania e hino no sentido antigo, sem distinção entre Missa e Ofício.

Da ligação entre leitura e canto fala expressamente Santo Agostinho (354-430) no Sermo 176, 1: «Aprendemos isto da lição apostólica. Depois, cantámos o salmo, exortando-nos uns aos outros, a uma só voz e com um só coração, dizendo: Vinde, adoremos».

O salmo inteiramente cantado pelos participantes da liturgia é um exemplo de prática executiva da salmodia in directum.2 No início, a tarefa de proclamar a leitura com o seu salmo poderia ser realizada por um único ministro. Neste caso, a salmodia ainda se caracterizava pela simplicidade da linha melódica. É quanto aprendemos novamente de Santo Agostinho ao relatar o modo de cantar do cantor em Alexandria, de acordo com o ‘método’ «que me lembro de ter ouvido muitas vezes atribuir-se ao bispo alexandrino Atanásio: ele fazia o leitor recitar salmos com tão leve inflexão da voz, que mais parecia próxima de uma declamação do que de um canto” (ver Conf. c. X, 33. 50).

Quanto à salmodia responsorial, numerosos são os testemunhos. Santo Atanásio, por exemplo, gabava-se de ter feito a assembleia cantar o quóniam in sǽculum misericórdia eius: «Sentado no trono ordenei ao diácono que lesse o salmo e ao povo que respondesse Porque é eterna a sua misericórdia, e que todos se retirassem e fossem para casa” (cfr. Patrologia Greca 25, col. 675, n. 265).

Na sinaxe litúrgica dominical com Eucaristia, o salmo ante oblationem antes da oferenda, que interessou particularmente a Santo Agostinho, e o canto 'ordinário' de comunhão, o salmo 33 (Benedícam Dóminum), atestado pela patrística dos séculos IV e V, eram executados na forma vigente da salmodia, sobretudo responsorial. Nesta forma, o salmista era encarregado de cantar o salmo e a assembleia o refrão, geralmente breve e fácil de recordar.

No âmbito da salmodia responsorial, vai ganhando sempre mais consistência uma nova prática de salmodia, alternada entre dois coros, comummente chamada de antifonia: o solista homem com um verseto do salmo e o coro dos homens com a resposta alternam-se com uma solista mulher com outro verseto do salmo e o coro das mulheres com a resposta. Esta antifonia original, depois de um breve período de tempo, evoluiu para a forma que todos nós hoje conhecemos: antífona – salmo – antífona, ou seja, o canto do salmo sem a alternância de verseto + resposta.

As formas musicais da época do salmista são simples, quase elementares; o mesmo vale para a sua modalidade: simples, brevidade das peças, extensão melódica facilmente praticável, sem modulações. Uma só dominante de composição nas antífonas, um só tenor3: algumas antífonas com finais diferentes, uma dominante comum, o mesmo tom salmódico4.

O que dissemos sobre a origem e evolução da salmodia encontra confirmação nos factos musicais, que podemos alcançar nos nossos livros de canto gregoriano, e são exatamente iguais aos do século IX. Possuímos essencialmente a mesma matéria; nada se perdeu.

A partir do último decénio do século V, durante o papado de Gelásio I, papa de 492 a 496, iniciou-se a época da schola, representada pelos géneros musicais próprios da schola. Alguns deles obtiveram-se transformando géneros musicais previamente existentes; outros, foram compostos de raiz.

Do género musical da salmodia in directum, passamos à composição dos tractos e dos cânticos5, com melodia e estrutura modal visivelmente de tipo salmódico, como que a formar um timbre modal, e com número variável de versetos.

Do género musical da salmodia responsorial, passamos à composição de responsórios-graduais6, formados por apenas dois versetos: um com função de salmo abreviado, o outro com função de responsum. Diferem na melodia e, salvo algumas excepções, também na estrutura modal.

Fazem parte, porém, das composições ex novo, os cantos processionais do intróito7, do ofertório e da comunhão.

As melodias da schola são compostas no género melódico ornado e oferecem uma modalidade composta, que tem como lei fundamental a presença de uma final com várias dominantes confluindo numa mesma peça de fórmulas centonizadas8 e a sucessão de vários tenores salmódicos (cf. Cânticos, Tractos e Graduais).

Para concluir, a história do canto gregoriano oferece-nos portanto duas formas de salmodia (in directum e responsorial), duas épocas de composição (do salmista e da schola), duas fontes, dois géneros melódicos (o silábico e o ornamentado), dois estádios de modalidade (arcaica e evoluída) e, consequentemente, de executores (o salmista com a assembleia, e a schola especializada).

O livro da época do salmista é representado pelo repertório do Antiphonale9; o livro da época da schola, pelo repertório do Graduale10.

2. Necessidade do livro do salmista

«Para que os fiéis participem mais activamente no culto divino, o canto gregoriano – no quanto respeita ao povo – seja restituído ao uso do povo. Na verdade, é absolutamente necessário que os fiéis não assistam às funções sagradas como estranhos ou mudos espectadores, mas, tomados verdadeiramente pela beleza da liturgia, participem nas cerimónias sagradas [...] de modo a alternar, segundo as devidas normas, a sua voz com a do sacerdote e da schola" (n. IX), é o que lemos na Constituição Divini cultus sanctitatem do Papa Pio XI, promulgada a 20 de Dezembro de 1928 aos vinte e cinco anos do ‘Motu próprio’ de São Pio X.

Que secção do canto gregoriano se devia devolver ao povo? Seguramente, não o Proprium Missæ do Graduale Romanum. O povo só poderia cantá-lo recorrendo a um tom salmódico ou mesmo ao chamado tom recto, dada a obrigatoriedade da execução dos textos. Esta prática executiva tornou-se habitual também para as scholæ, seja pela sua inadequação em aprender uma parte do repertório do Gradual – por exemplo, os Tractos e os Graduais –, seja pela falta de tempo necessário para a preparação das peças.

Desde o início da restauração gregoriana, sentiu-se a necessidade de permitir que pequenas e grandes scholæ pudessem executar todo o repertório do Gradual.

Amédée Gastoué († 1943) publicara em 1910, para a Schola Cantorum de Paris, uma colecção de cantos intitulada: Récitatifs en chants simples pour Graduels, Traits, Alleluias. Os Editores Pontifícios, Desclée & Cie, fazendo própria a iniciativa de Gastoué, publicaram uma edição intitulada Chants abrégés des Graduels, des Alleluias et des Traits de tout l'année sur formules psalmodiques anciennes. Portanto, os graduais, as Alleluia e os tractos representavam efectivamente o repertório do Graduale Romanum mais difícil de se cantar em todas as festividades e dias de semana, especialmente nos dos tempos fortes.

Tomo como exemplo o Gr. Tecum princípium da missa In nocte do Natal, na versão melódica abrégée (simplificada) pelos editores pontifícios Desclée.

 


Reza o texto:

[℟] «A ti pertence a realeza desde o dia em que nasceste: nos esplendores da santidade, antes da aurora, como orvalho, Eu te gerei.»

[℣] Disse o Senhor ao meu Senhor: «Senta-te à minha direita, até que Eu faça de teus inimigos escabelo de teus pés.»

A forma estética de dois versetos é a mesma do Gradual. A parte relevante é representada por um tom recitativo sobre duas cordas: o primeiro verseto, no papel de respónsum, é recitado na corda Ré, com acentuação em Fá (in splendoribus); o segundo verseto (versus), ou seja, o salmo 'abreviado', é recitado na corda Fá. A frase conclusiva deste último é retirada da fórmula de Ré arcaico galicano. No presente gradual, é reproduzida inteiramente a grelha modal do 2º modo do octoechos, uma vez que o versus do Gr. Tecum Principium (GT 42)11 tem a grelha modal do «protus à quarta», ou seja, de um protus, com tenor em Ré e cadência final em Lá (modo II/A, segundo a terminologia dos octoechos), originária da tradição galicana.12

Além desta anotação, as fórmulas melismáticas são geralmente colocadas no contexto das cadências.

Os Tracti da edição abregée, porém, vão cantados nos tons da salmodia silábica.

As melodias das Alleluia limitam-se a uma única palavra, sem o iubilus na sílaba final; enquanto os versos são cantados nos tons semi-ornamentados do intróitos gregorianos. Eis um exemplo de Alleluia, da Missa de Natal In nocte:

 

As melodias e fórmulas, aqui descritas, não são extraídas do repertório gregoriano, mas principalmente do repertório milanês, para não dar o pretexto de repetir aquela triste operação perpetrada pela Editio medicæa de Regensburg de 161413.

A Sagrada Congregação dos Ritos, ao tomar nota da edição dos Chants abrégés dos Editores Pontifícios Desclée, estabelece que os cantos nela contidos se destinam exclusivamente às igrejas onde não é possível executar adequadamente as melodias do Graduale Romanum, e para as quais se tolera a simples salmodia dos textos sagrados (Carta, n. 3697).

Não entrarei na questão da utilidade ou não desta edição nem muito menos pretendo emitir um juízo a este respeito. Uma coisa é certa: a simplificação das melodias, com excepção dos tons salmódicos, não resolve o problema fundamental da participação da assembleia nas melodias do Graduale.

As várias formas da salmodia é que devem ser reconduzidas à época em que os participantes na acção litúrgica tinham um papel bem preciso. O Ordo Cantus Missae e o Lectionarium de 1970 agiram nesse sentido.

Já vinte anos antes, em 1950, o Congresso de Roma abordara vigorosamente o tema da necessidade de um Graduale «in usum minorum ecclesiarum», tema já não mais adiável, à luz do renovamento litúrgico em curso em toda a Europa (cf. De la nécessité d'un Graduel à l'usage des petites églises, orador Maurice Busson, in «Actes du Congrès International de Musique Sacré», editado por Mons. Igino Anglès, Tournai, 1052, pp. 34-36).

A assembleia dos congressistas pronunciou-se a favor duma edição 'complementar' ao Graduale Romanum, com melodias de género silábico, respeitadoras das formas litúrgico-musicais, e funcionais em termos de prática executiva.

Neste ponto, gostaria de chamar a atenção para o trabalho de Solesmes14, na preparação da edição crítica do Graduale Romanum.

Já dois anos antes do congresso de Roma, ou seja, em 1948, se criara em Solesmes um grupo de trabalho para lançar as bases científicas sobre as quais se iniciaria, mais tarde, a restauração do repertório da schola, o Graduale Romanum, ficando o texto litúrgico crítico, sem música, dos séculos VIII-IX, a cargo de Dom Jacques Froger († 1980), e a parte musical propriamente dita entregue a Dom Eugène Cardine († 1988).

Nas vésperas do Concílio Vaticano II, o grupo de trabalho, auxiliado por alguns monges colaboradores, concluiu a preparação de milhares de tabelas sinópticas para prosseguir com a nova edição do Graduale Romanum.

Ao mesmo tempo, por sua vez, Dom Jean Claire († 2006) publicou na «Revue Grégorienne» dos anos 1961-64, os resultados de pesquisas e estudos sobre a evolução modal nos repertórios litúrgicos ocidentais (L'évolution modale dans les Répertoires liturgiques occidentaux). O que Dom Claire dá a conhecer constitui o marco graças ao qual, hoje, podemos afirmar que conhecemos tudo sobre as formas litúrgico-musicais da antiga salmodia.

Dom Eugène Cardine, na qualidade de secretário da Subcomissão «De musica sacra», relata os resultados do trabalho realizado em Solesmes, à luz dos quais se redige o texto a incluir na Constituição Sacrosanctum Concilium: «Procure terminar-se a edição típica dos livros de canto gregoriano; prepare-se uma edição mais crítica dos livros já editados depois da reforma de S. Pio X. Convirá preparar uma edição com melodias mais simples para uso das igrejas menores» (n. 117).

Em 1964, a primeira obra do Cœtus XXV, que tinha por nome De libris cantus liturgici revisendis et edendis, sob a presidência de Dom Eugène Cardine, conseguiu oferecer um repertório gregoriano fácil para as igrejas menores.

Em 1964 foi publicado o Kyriale Simplex15; em 1967, o Graduale Simplex (GS) e, um ano depois, em 1968, a reimpressão. As duas edições do Graduale Simplex foram reformuladas tendo em vista a editio typica altera de 1975, com o texto da neovulgata e com a inserção do Kyriale Simplex.

3. O Graduale Simplex da vaticana

O repertório do Graduale Simplex da edição vaticana é fundamentalmente um 'compêndio' do Gradual, representado por esquemas ou formulários para os diferentes tempos litúrgicos, as solenidades e festas, etc.. Nele encontramos, por exemplo, dois esquemas de Proprium para o Advento, denominados «Missa I» e «Missa II»; cinco Missæ para a Quaresma; oito, para o tempo per annum16. Poderíamos defini-los como peças de um repertório de “Commune” para os tempos litúrgicos e festas. Na verdade, as peças de um determinado esquema podem ser repetidos em diversas celebrações e, numa mesma celebração, os cantos de um esquema são intercambiáveis com os de outro. Superando assim o critério da fixidez e imobilidade dos textos cantados, segundo o qual estes deveriam servir para aquela celebração específica e para aquele momento ritual específico, o Graduale Simplex torna-se o protótipo para a liberalização dos cantos da Missa, com texto nas ‘línguas faladas’.

Cada esquema inclui os cantos processionais do intróito, do ofertório e da comunhão, e os cantos das leituras nas várias formas de salmodia.

Para preencher os cantos processionais simples (intróito, ofertório e communio) foram utilizadas antífonas com salmodia simples. Não neo-antífonas, porque a composição gregoriana está historicamente concluída; mas antífonas do repertório antigo, autenticamente gregoriano, compostas para uma outra função, que é a do ofício, e agora adaptadas, para uma nova função, na celebração eucarística.

4. O Missale Romanum, editio typica, a. 1970

A Editio typica do Missale Romanum de 1970 traz novos textos para os cantos processionais do intróito e da comunhão das férias do Advento e da Páscoa. Em particular,

  • as férias do Advento foram dotadas de dois conjuntos de seis cantos cada: um para os intróitos e outro para as communio, a serem repetidos todas as semanas. As férias de 17 a 24 de Dezembro foram por outro lado dotadas de textos próprios;

  • as férias da Páscoa, da 2ª à 6ª semana – excluindo a oitava da Páscoa e a sétima semana de preparação para Pentecostes – foram providas de duas séries de intróitos e communio (A e B):

    • série A, a ser repetida nas semanas II, IV, VI;

    • série B, a ser repetida nas semanas III, V.

A tabela que agora mostro mete em evidência as fontes bíblicas das quais se extrairam os novos textos dos mencionados intróitos e communio e em que proporção se distribuem entre eles.


Fontes

Advento


Páscoa


Total


Intróitos

Communio

Intróitos

Communio


Antigo Testamento

7

2

2

-

11

Salmos

3

1

3

-

7

Novo Testamento

2

11

6

10

29

Eclesiásticos

2

-

1

2

5

Total

14

14

12

12

52

Desta tabela se conclui que os textos do Novo Testamento são em maior número e frequentemente atribuídos às communio, com o objetivo de favorecer uma estreita ligação entre as duas partes da missa: as leituras, neste caso o Evangelho, e a Eucaristia. É um critério de escolha aceitável. Porém, dos textos selecionados, mais da metade são inexistentes nas fontes gregorianas do Antifonal; os restantes apresentaram novas variantes textuais, portanto, teremos que recorrer a outros textos comuns!

Mas temos ainda um exemplo que se aplica ao nosso caso, nomeadamente a série das communio das férias quaresmais, com exclusão da 5ª feira e de dois sábados, que precedem respectivamente o Domingo I e o Domingo da Paixão. Esta série consiste nos primeiros 26 salmos do Saltério, começando na Quarta-feira de Cinzas. Veja-se o presente prospecto.



Antiphonale missarum Sextuplex (séc. VIII-IX)

Ps.

Missale Romanum editio typica, 1970

Fonte

fr. IV cinerum

Qui meditabitur

1

Qui meditabitur

Ps 1

fr. VI

Servite Domino

2

Vias tuas

Ps 24

sabb.

(Quattuor Tempora)


Misericordiam volo

Mt 9, 13

fr. II Hebd. I Quad.

Voce mea

3

A. d. v.: Quo uni

Mt 25, 40

fr. III

Cum invocarem

4

Cum invocarem

Ps 4

fr. IV

Intellege

5

Lætentur omnes

Ps 5

fr. VI

Erubescant

6

Vivo ego

Ez 33, 11

sabb.

Domine Deus meus

7

Estote perfecti

Mt 5, 48

fr. II Hebd II Quad.

Domine Deus noster

8

Estote misericordes

Lc 6, 36

fr. III

Narrabo

9

Narrabo

Ps 9

fr. IV

Iustus Dominus

10

Filius hominis

Mt 20, 28

fr. VI

Tu Domine

11

Dilexit nos

1 Io 4, 10

sabb.

Oportet te (filho pródigo)


Oportet te

Lc 15, 32

fr. II Hebd. III Quad.

Quis dabit

13

Laudate Dominum

Ps 116

fr. III

Domine quis hab.

14

Domine, quis hab.

Ps 14

fr. IV

Notas mihi

15

Notas mihi

Ps 15

fr. VI

Qui biberit (samaritana)


Diligere Deum

Mc 12, 33

sabb.

Nemo te cond. (adúltera)


Publicanus

Lc 18, 13

fr. II Hebd. IV Quad.

Ab occultis

18

Spiritum meum

Ez 36, 27

fr. III

Laetabimur

19

Dominus regit me

Ps 22

fr. IV

Lutum fecit (cego de nas.)


Non misit Deus

Io 3, 17

fr. VI

Videns Dominus (Lázaro)


In Christo habemus

Eph 1, 7

sabb.

Dominus regit me

22

Pretioso sanguine

1 Petr 1, 19

fr. II Hebd. V Quad.

Dominus virtutum

23

Nemo te condemnavi

Io 8, 10

Ego sum lux

lo 8, 12

fr. III

Redime me

24

Cum exaltatus fuero

Io 12, 13

fr. IV

Lavabo

25

Transtulit nos

Col 1, 13

fr. VI

Ne tradideris

26

lesus peccata nostra

1 Petr 2, 24

sabb.

[vacat]


Traditus est

Io 11, 52

 

Da série dos 26 salmos, cinco foram substituídos pelas communio batismais e penitenciais, que passaram dos domingos para as férias. São elas Cantabo Domino (Sl 12), Ego clamavi (Sl 16), Dominus firmamentum meum (Sl 17). Estas três foram transferidas respectivamente para o II, III e IV Domingos depois de Pentecostes. Os outros dois, os Salmos 20 e 21, perderam-se.

Desconhecemos o critério de escolha o compositor para escolher o versículo de cada salmo a atribuir a cada communio.

O Missale Romanum de 1970 substituiu a maioria dos textos da série dos salmos por outros textos. Destes últimos, quase todos não encontram confirmação nas fontes do Antifonal gregoriano.

Se, por um lado, a substituição dos textos do Missal, que não se encontram nas fontes gregorianas, cria dificuldades, por outro lado, não é de excluir a priori, por exemplo no ofertório, o critério da escolha dos textos per ordinem ou dos salmos ou doutros textos bíblicos.

5. A salmodia das leituras

Premissa

A salmodia responsorial adoptada pelo Ordo Lectionum Missæ de 1970 está ligada à forma de 'antifonia', na qual o salmista canta ou proclama o verso do salmo e a assembleia responde com o refrão, concebido já como uma verdadeira antífona. O texto da antífona pode retirar-se do mesmo salmo, ou pode ter uma outra proveniência: das Sagradas Escrituras, ou de produção eclesiástica, ou ainda constituir-se por Aleluias repetidas.

Abro um breve parêntese. O Ordo Cantus Officii de 2015, que contém os textos oficiais do Antiphonale Romanum, não inclui a antífona composta por apenas duas Alleluia, por se considerar incompleta. Provavelmente, para os novos liturgistas, que pouco conhecem das tradições centenárias sedimentadas no património musical da Igreja, a antífona para ser considerada completa deveria ser composta por pelo menos três Aleluias.

Os cantos entre as leituras do Graduale Simplex de 1967 pertencem a um nível anterior à antifonia, baseado nas diversas formas de salmodia, numa versão melódica na sua maioria mais 'arcaica', e que se manteve viva nas fontes manuscritas. Coerentemente, sua classificação modal é feita segundo a terminologia arcaica do tom modal Dó (C), Ré (D), Mi (E), diferentemente da teoria medieval do octoechos, aplicada às antífonas processionais dos intróito, ofertório e comunhão.

Devemos reconhecer a riqueza litúrgico-musical do Simplex, publicado há mais de cinquenta anos, cujo valor modal não foi plenamente compreendido e que poderia ser chamado de “manual da modalidade arcaica”. Na verdade, é a partir da cantilação e do recitativo nas cordas-mãe Dó, Ré, Mi que devemos começar a explicar o canto do Antiphonale e também do Graduale, à luz das respectivas estrutura e ornamentação.

A

A salmodia in directum (Tractus)

O Graduale Simplex reconstrói a salmodia in directum (tractus) no género silábico, sobre os tons da salmodia simples:

  • O tom em MI obtém-se a partir:

    • do tom dos defuntos (AR 26*; GS 409),

    • do 1º tom (GS 106),

    • do 6º tom (GS 112)

    • do 3º tom (tonus antiquior, GS 93).

  • O tom em obtém-se a partir:

    • do tom da salmodia in directum, mas com cadência da terminatio em lá (AR 25*; GS 85).

Juntemos o tom da Páscoa (AR 26*).

1.


No Missale Romanum, Editio typica tertia, de 2002, na p. 366, é usado como hino de aclamação, após a bênção da pia batismal.

 

B

A salmodia aleluiática e salmodia responsorial

O tom em

  • da salmodia aleluiática, é tomado

a) do tom pascal simples do responsório breve (GS 61)

2.


b) e do tom da salmodia de duplo responso (GS 66);

3.


  • do salmo responsorial, é tomado

a) do tom ferial do responsório breve (GS 83),


b) do tom dominical do responsório breve (GS 283).

O tom de RÉ

  • da salmodia aleluiática, é tomado

a) do responsório breve, precedido pela terminatio milanesa a um acento, na função de ligação melódica, com refrão de duas Aleluias, obtido da tropatura do iubilus do verso Dirigatur (GS 408);


b) da melodia do Ite missa est. Alleluia do dia de Páscoa (GS 147).


O tenor Sol é a transposição da corda-mãe Ré. A subida ao Dó da resposta de uma única Alleluia representa o último estádio de oscilação melódica entre o si bemol e o si bequadro, e é um prelúdio para um futuro tenor em Dó.

  • do salmo responsorial, obtém-se

a) com o refrão sálmico, obtido através da silabificação do iubilus do verso Dirigatur e precedido pela terminatio milanesa (GS 71);

e Gelásio I, papa de 492 a 496, iniciou-se a época da schola, representada pelos géneros musicais próprios da schola. Alguns deles obtiveram-se transformando géneros musicais previamente existentes; outros, foram compostos de raiz.

Do género musical da salmodia in directum, passamos à composição dos tractos e dos cânticos5, com melodia e estrutura modal visivelmente de tipo salmódico, como que a formar um timbre modal, e com número variável de versetos.

Do género musical da salmodia responsorial, passamos à composição de responsórios-graduais6, formados por apenas dois versetos: um com função de salmo abreviado, o outro com função de responsum. Diferem na melodia e, salvo algumas excepções, também na estrutura modal.

Fazem parte, porém, das composições ex novo, os cantos processionais do intróito7, do ofertório e da comunhão.

As melodias da schola são compostas no género melódico ornado e oferecem uma modalidade composta, que tem como lei fundamental a presença de uma final com várias dominantes confluindo numa mesma peça de fórmulas centonizadas8 e a sucessão de vários tenores salmódicos (cf. Cânticos, Tractos e Graduais).

Para concluir, a história do canto gregoriano oferece-nos portanto duas formas de salmodia (in directum e responsorial), duas épocas de composição (do salmista e da schola), duas fontes, dois géneros melódicos (o silábico e o ornamentado), dois estádios de modalidade (arcaica e evoluída) e, consequentemente, de executores (o salmista com a assembleia, e a schola especializada).

O livro da época do salmista é representado pelo repertório do Antiphonale9; o livro da época da schola, pelo repertório do Graduale10.

2. Necessidade do livro do salmista

«Para que os fiéis participem mais activamente no culto divino, o canto gregoriano – no quanto respeita ao povo – seja restituído ao uso do povo. Na verdade, é absolutamente necessário que os fiéis não assistam às funções sagradas como estranhos ou mudos espectadores, mas, tomados verdadeiramente pela beleza da liturgia, participem nas cerimónias sagradas [...] de modo a alternar, segundo as devidas normas, a sua voz com a do sacerdote e da schola" (n. IX), é o que lemos na Constituição Divini cultus sanctitatem do Papa Pio XI, promulgada a 20 de Dezembro de 1928 aos vinte e cinco anos do ‘Motu próprio’ de São Pio X.

Que secção do canto gregoriano se devia devolver ao povo? Seguramente, não o Proprium Missæ do Graduale Romanum. O povo só poderia cantá-lo recorrendo a um tom salmódico ou mesmo ao chamado tom recto, dada a obrigatoriedade da execução dos textos. Esta prática executiva tornou-se habitual também para as scholæ, seja pela sua inadequação em aprender uma parte do repertório do Gradual – por exemplo, os Tractos e os Graduais –, seja pela falta de tempo necessário para a preparação das peças.

Desde o início da restauração gregoriana, sentiu-se a necessidade de permitir que pequenas e grandes scholæ pudessem executar todo o repertório do Gradual.

Amédée Gastoué († 1943) publicara em 1910, para a Schola Cantorum de Paris, uma colecção de cantos intitulada: Récitatifs en chants simples pour Graduels, Traits, Alleluias. Os Editores Pontifícios, Desclée & Cie, fazendo própria a iniciativa de Gastoué, publicaram uma edição intitulada Chants abrégés des Graduels, des Alleluias et des Traits de tout l'année sur formules psalmodiques anciennes. Portanto, os graduais, as Alleluia e os tractos representavam efectivamente o repertório do Graduale Romanum mais difícil de se cantar em todas as festividades e dias de semana, especialmente nos dos tempos fortes.

Tomo como exemplo o Gr. Tecum princípium da missa In nocte do Natal, na versão melódica abrégée (simplificada) pelos editores pontifícios Desclée.

 

b) com o refrão baseado na célula-mãe do modo de Ré (ré-dó-ré-mi-mi-re), precedido pela terminatio acentuada, com a nota final descendo para a subtónica Dó (GS 98).


[O presente refrão encontra-se na litania Agnus Dei XII (GT 754.2)];

c) na estrutura modal do refrão do Resp. Ego dixi, precedido da terminatio a um acento, como o tom precedente (GS 92);


d) no tom do verso Dirigatur (GS 144).


O GS classifica o presente e tom em C* devido ao tenor evoluído em Dó. O tenor original do verso Dirigatur é Ré (= Lá, na escrita actual), em uníssono com a nota final do iubilus.

 

O tom de Mi

  • da salmodia aleluiática é modelado

a) no timbre modal milanês das antífonas após o Evangelho, em modalidade arcaica, com a resposta de duas Aleluias (GS 370);


b) no timbre milanês da ant. Omnes angeli eius, mas com tenor evoluído em Sol e resposta de duas Aleluias (GS 217);


c) no modo arcaico de Mi que, posteriormente, evoluiu para o tenor em Sol (segunda parte do verseto) e Lá (primeira parte do verseto), com a ornamentação do Si natural (GS 179).


O 1. do presente tipo modal, de origem romana, está numa modalidade arcaica, com a resposta de duas Aleluias. O 2, para alternar com o anterior, foi acrescentado mais tarde, quando este tom foi transplantado para o Norte da Europa. A sua datação tardia é evidente não só pela evolução do tenor para Sol e Lá, mas também pela resposta, à qual foi acrescentado uma terceira Aleluia no início.

  • da salmodia responsorial é retirado do responsório breve do Advento, em modalidade arcaica (GS 54);



O sinal de asterisco antes da clivis é exigido pela restituição, à luz das fontes manuscritas.

C

Disposição da salmodia entre as leituras

A disposição litúrgica dos cânticos entre as leituras é a seguinte:

  • com duas leituras antes do evangelho: após a primeira leitura (vetero-testamentária), realiza-se o salmo responsorial; após a segunda leitura (neo-testamentária), o salmo aleluiático ou, na Quaresma, o salmo in directum;

  • com apenas uma leitura antes do evangelho, escolhe-se ad libitum uma das duas opções precedentes.

É o que estava previsto no Graduale Simplex elaborado pelo Cœtus XXV, De libris cantus liturgici revisendis et edendis, cujos presidente era Dom Eugène Cardine e secretário Dom Luigi Augustoni. Os membros eram: Dom Jacques Hourlier e Dom Jean Claire de Solesmes, Pe. Miguel Altisent, piarista (Catalunha), Pe. Lucas Kunz OSB, de Gerleve (Alemanha) e Pe. Jeapontificio istituto di musican Harmel, premonstratense de Mondaye.

Infelizmente, uma mão estranha ao Cœtus XXV, mas certamente do Cœtus XXX, que tinha a tarefa de fazer uma revisão geral a todas as edições pós-conciliares, introduziu uma antífona de aclamação, composta de Aleluias repetidas mais o verseto nos oito tons, à moda das antífonas processionais de entrada, ofertório e communio. A versão melódica da Aleluia não pertence ao velho fundo gregoriano, mas segue o modelo das antífonas do ofício ferial. Eis um exemplo de Alleluia (GS 250) com a melodia da ant. Deo nostro (GS 241).

Aliás, o percurso do Graduale Simplex foi difícil: até o termo “salmista” teve que ser substituído pelo de “cantor”.

Após essa intrusão, os cantos entre as leituras foram dispostos do seguinte modo (GS 54):

  • quando há duas leituras antes do evangelho, os cânticos distribuem-se assim: após a primeira leitura, canta-se o salmo responsorial; depois da outra leitura, ou o salmo aleluiático, ou a antífona Alleluia com seus versos;

  • todas as outras vezes, com apenas uma leitura antes do evangelho, executa-se apenas um dos cânticos citados, ad libitum.

Destaco que a rubrica fala de Alleluia com múltiplos versos; não com apenas um.

6. O canto gregoriano, hoje

Uma das disposições inovadoras do Concílio Vaticano II em matéria litúrgica foi a admissão de línguas vivas e faladas nas celebrações (SC 54). Como resultado, o canto gregoriano, pelo facto de estar intimamente ligado à língua latina, sofreu uma forte recessão, embora o latim continue a ser a língua oficial da Igreja para comunicar "na verdade" com todas as línguas nacionais espalhadas pelo mundo. A causa do retrocesso do canto gregoriano não deve ser atribuída ao Concílio Vaticano II: «A Igreja reconhece como canto próprio da liturgia romana o canto gregoriano», afirma o n. 116 da Constituição Sacrosanctum Concilium; «terá este, por isso, na acção litúrgica, em igualdade de circunstâncias, o primeiro lugar.»

O Concílio Vaticano II, acolhendo os pedidos para oferecer à Igreja universal uma nova estação da liturgia, foi muito além da questão do uso das línguas nacionais; inaugurou um “novo” Ordo Missæ et Officii, no qual o carácter comunitário de cada celebração litúrgica é plenamente revalorizado e inculcada a participação activa de cada agente litúrgico e em particular dos fiéis.

A Instrução da Sagrada Congregação dos Ritos sobre a música na sagrada liturgia, a. 1967, preparada em nome de São Paulo VI, pelo Consilium para a aplicação da Constituição Litúrgica Sacrosanctum Concilium do Vaticano II, dedica particular atenção ao ofício litúrgico dos fiéis (n. 15) e oferece uma série de indicações práticas que esgotam quase todas as situações problemáticas relativas às tarefas de todos os actores da celebração.

Que partes da Missa devem ser confiadas ao povo? As respostas ao celebrante e aos ministros, as aclamações e a resposta em forma de refrão ao salmo responsorial, que são de direito e de obrigação (n. 16 a, 7, 19), porque ninguém pode ser representado por outros na sua oração pessoal de fé e na sua adesão aos mistérios de Cristo que por ele são celebrados, assim como ninguém pode pensar em enviar outro à mesa eucarística em seu lugar.

Hoje, encontramo-nos em plena crise da música sacra! Não devemos resignar-nos! Devemos regressar humildemente às fontes do canto da Igreja, onde se encontram aquelas melodias que pressupõem a participação de quantos intervêm nas sinaxes litúrgicas. Estas melodias, embora não apareçam em documentos até o século IX, são capazes de revelar algo sobre o seu passado. O Graduale Simplex da Vaticana recolheu esta herança, selecionando géneros musicais simples e idóneos a uma participação directa da assembleia.

O que hoje é importante é assegurar ao canto gregoriano a “liberdade de oração cantada da Igreja”. Liberdade de oração cantada, em comentar um texto, em realçar os seus detalhes; em traduzi-lo melodicamente, permitindo que a doutrina que ele contém seja maiormente assimilada; em reduzir o texto ao mínimo (iubilus), em deixar a alma inebriar-se na oração sem lhe impor nenhum conceito intelectual. E por isso é importante saber o que o compositor quis exprimir, conhecer o seu discurso musical, tal como o escreveu, de modo a produzir em nós o efeito que se espera: «attentio ad verbum, ad sensum, ad Deum».

Aqui passamos diretamente do «verbum ad Deum».

O canto gregoriano produzirá o seu efeito, transmitirá a sua mensagem, apenas sob determinadas condições, algumas das quais são de natureza objectiva e visam torná-lo plenamente ele mesmo; outras são de natureza subjectiva e dizem respeito aos participantes do culto divino.

Condições objectivas

É necessário que o canto da Igreja seja plenamente ele mesmo, isto é, que seja autêntico e que, na sua execução, responda ao pensamento do compositor.

No entanto, o valor das melodias gregorianas é tal que, apesar das corrupções progressivas que ao longo dos séculos afectaram a sua pureza originária, apesar também da escassa qualidade da execução, a sua beleza, o seu poder explicativo do texto, o seu conteúdo religioso, dificilmente se conseguem anular.

A segunda condição objectiva que torna canto gregoriano nele mesmo é a sua execução: a perfeição, que pressupõe no intérprete as qualidades correspondentes àquelas que a análise das melodias revelou; a técnica impecável, a expressividade humilde e contemplativa; a submissão a todas as nuances sugeridas pelo texto litúrgico e a sua notação musical.

Alguns acreditam que esta exigência de perfeição tende a transformar a assembleia litúrgica num encontro cultural. A assembleia, entendida como o povo que participa na liturgia, é um dos actores da celebração. Primeiro e mais importante que isto, há o celebrante e os ministros, entre os quais o salmista, em diálogo com a assembleia. Portanto, para além dos recitativos e da salmodia nas formas originais, o canto gregoriano foi composto para ser ouvido.

Não devemos então esperar perfeição de execução por parte da assembleia, mas da schola; de uma schola, que não deverá propôr cantos acima das suas próprias competência e musicalidade.

Concretamente, devemos libertar-nos da moda de que a aprendizagem da arte gregoriana se esgote no conhecimento dos elementos gerais da notação. O que se fez com zelo quase destemperado no início do século passado para reintroduzir o canto gregoriano em todos os níveis de celebração e em todos os lugares deve ser avaliado com as devidas distinções: era de qualidade insatisfatória, para dizer o mínimo; teve uma execução baseada em métodos imaturos e superficiais, sem qualquer atenção à 'palavra cantada'.

Condições subjectivas

Uma vez assegurada a forma autêntica do canto gregoriano (melodia e execução), o tema muda para como usá-lo correctamente.

O canto gregoriano é, antes de mais, «oração». De qualquer ângulo que se aborde o gregoriano, nunca se deve esquecer a sua conotação essencial de «oração cantada». A característica desta oração cantada reside na sua profunda religiosidade. Não só porque encarna ritos religiosos, como são os da liturgia, mas também porque a sua expressão verbo-melódica amadureceu tanto através de uma espiritualidade profunda como de uma experiência vocal consumada. Escreve Dom Jean Claire, celebrando a memória de Dom Eugène Cardine: «A música contemporânea não prepara em nada para cantar a palavra, a frase de forma natural, nem para dosear a síntese viva das duas com facilidade e naturalidade, mantendo a todo o momento um olho na palavra e outro na frase" (cf. J. CLAIRE, Dom Eugène Cardine, em «Études Grègoriennes», XXIII, 1989, p. 22).

O canto gregoriano é a oração do compositor, para se tornar a oração do maestro, da schola e do povo dos redimidos. Se a análise das melodias, a observância das regras, o cuidado na tradução das nuances e da expressão absorverem os intérpretes, o canto conservará ainda um valor religioso, de intenção, de oferenda, de mostrar e amplificar o conteúdo dos textos cantado.

Alberto Turco

Professor Emérito de Canto Gregoriano
no Pontifício Instituto de Música Sacra, Roma

Festa de São Bento Abade, 11 de julho de 2023

 

Notas da tradução: o documento original não possui notas de rodapé pelo que todas as seguintes notas são do tradutor.

1 Artigo que serviu de base às palestras proferidas pelo Autor no curso que deu no Pontifício Instituto de Música Sacra em Roma de 27 a 29 de Outubro de 2023.

2 “A direito”, isto é, o texto é proclamado todo de seguida, sem voltar atrás para repetir um responso.

3 Tenor aqui não se refere à tessitura do cantor, mas sim à corda de recitação, isto é, à nota estrutural que sustenta toda a melodia e em torno da qual surgem os ornamentos.

4 Tom salmódico refere-se à fórmula sempre igual que se aplica a todos os versetos do salmo.

5 O tracto substitui a Alleluia no tempo quaresmal, o cântico (em sentido estrito) canta-se depois de cada uma das leituras da vigília pascal.

6 Canta-se depois da 1ª leitura da missa. Diz-se gradual, porque o cantor subia a um degrau a caminho do ambão, o mesmo degrau donde se proclamara a Epístola, e daí cantava.

7 Entrada.

8 Do latim cento, -nis, em português centão, manta de retalhos ou remendos.

9 Livro litúrgico que inclui as antífonas e demais cantos do Ofício.

10 Inicialmente o livro litúrgico que continha os responsórios graduais, e mais tarde vem a incluir todos os restantes cânticos da Missa, quer os próprios (isto é, aqueles cujo texto pode variar de um dia para o outro: Alleluia, tractos, cânticos, intróitos, ofertórios, comunhões), quer do kyriale (cujo texto se mantém nas diferentes ocasiões, embora admita diferentes melodias: antífonas da aspersão com a água benta Asperges me e Vidi aquam, Kyrie, Gloria in excelsis Deo, Sanctus, Agnus Dei, e Credo in unum Deum).

11 GT: Graduale Triplex, edição muito utilizada no meio gregorianista, com as peças segundo a Ordo Cantus Missæ para o novo calendário litúrgico em vigor com a reforma do Concílio Vaticano II, e coloca junto à notação quadrada do princípio do 2º milénio outras duas notações ainda mais arcaicas, de São Galo e Laon (final do 1º milénio).

12 Todo este comentário refere-se não à versão abreviada mas sim à versão original, a qual se encontra escrita não com clave de fá mas de dó, e portanto tendo por final lá, e o verseto uma corda de recitação dominante em ré, isto é, uma 4ª acima da final.

13 Na edição referida, as melodias gregorianas foram modificadas profundamente, com o propósito de as “corrigir” segundo os critérios da época, p.ex. com a supressão de muitíssimas notas e melismas, sobretudo nas sílabas átonas, a alteração do âmbito das melodias e da colocação das palavras seguindo princípios de retórica musical, etc., de tal forma que se considera um momento especialmente disruptivo na história da transmissão do repertório gregoriano no último milénio.

14 Abadia beneditina em França em que desde o século XIX se fez a recolha e o estudo dos mais antigos documentos da música litúrgica da igreja latina, tendo em vista a restauração da mesma.

15 Contendo as melodias mais simples do ordinário da missa.

16 Tempo comum.

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