domingo, 17 de maio de 2015

Assim na Liturgia como no Folclore



Faço minhas as ideias que o sr. Desidério Afonso expôs no documentário dedicado à Música d'«O Pôvo que Ainda Canta» no Alto Minho, transmitido pela Rádio-Televisão Portuguesa em 9 de Abril de 2015.

Eis alguns trechos desta valorosa defesa patrimonial e resgate etnomusical, que aqui vou comentando em jeito de aplicação à música litúrgica.
As concertinas doutros tempos nom tinham nada a ver com estas, nem estas vozes; mas tão-bem houve uma degradação das vozes porque as vozes femininas e masculinas dos anos 50 eram muito superiores às que encontramos hoje, sem dúvida. (...) Aquelas vozes, de pessoas que já faleceram na maioria (ainda existe talvez duas ou três), aquelas vozes são autêntico ouro. (...) E para isso basta ver os discos que foram gravados na altura, e até o rancho de Dem em 50 e até 56 grava, digamos... é o ouro: 'tá ali ouro, é autêntico ouro.
Na Igreja frequentam a Missa tantos fiéis capacitados para a arte musical, tantos cantores, instrumentistas de teclado e de orquesra, maestros e até compositores, e o que faz a Igreja com este "ouro"? Pede-lhes que dignifiquem o culto divino e edifiquem o próximo com a sua arte? Não: para certos pastores, isso seria falta de humildade, porque para êstes humildade é delegar o ministério musical nos mais incompetentes, nos mais novos de idade, nos mais recentes na fé. Resultado: perdem-se os grandes porque se calam, perdem-se os pequenos porque não aprendem a calar-se, e perdem-se os ouvintes, que ficam mal servidos.
O Homem de Mello, um dia (eu penso que estávamos em 1975, salvo erro, 74 ou 75), o Homem de Melo convida-me para ir a Sã'João d'Arga. Chegados lá, ele disse-me que aquilo não era o Sã' João d'Arga, o Sã' João nom tinha nada disto!
Dá vontade de dizer o mesmo de muita música que se canta nas igrejas: a Missa não é nada disto!
O Sã' João tinha era concertinas, ferrinhos, cavaquinhos, barguesas. (...) Depois veio os altifalantes e estragaram um bocadinho porque já as concertinas tocavam menos. E ele disse-me «Olhe, isto alterou: estão os altifalantes sempre a tocar, é uma barulheira constante, e tal (...) E então ele dirigiu-se à cabine de som, e comprou, salvo erro, ele deu dois contos e meio por uma hora ou hora e meia de discos, e o sr. pergunta-lhe: "Escolha então os discos". E ele diz: "Não, nom escolho nada, nom quero disco nenhum, o sr. tem o dinheiro e agora nesse período de uma hora ou hora e meia, que o senhor considerar que este dinheiro dá para discos, o senhor não põe nada a tocar. E portanto há um silêncio cá fora, porque acaba a música.
Oxalá houvesse esta coragem nas nossas igrejas: calar o ruído para poder ouvir a Deus. Quantos de nós não experimentámos já maior paz e fruto espiritual duma Missa ferial dita sem música, do que da Missa do Domingo cantada e com todas as distracções? O canto gregoriano consegue ser ao mesmo tempo música e silêncio: é música que cria silêncio, e silêncio onde se ouve a Palavra de Deus.
'Tava tudo a mijar fora do penico, parou a música! - Exactamente! - Respeito toda a gente, mas também gosto de ser respeitado. 'Tamos numa brincadeira, numa festa, vamos começar a tocar, uns de cada vez, aqueles que cantarem, e as pessoas 'tão a cantare, as outras escutam e respeitam. Não é estar a cantar aqui, e de repente passa para acolá. Não, sr.! Isso eu não aceito. Se as coisas estão assim, parou a música, parou a festa.
E quando há este silêncio, criado pela verdadeira música sacra, as pessoas unem-se à oração do côro, idealmente sabendo o Texto que eles estão a cantar, mas mesmo não o sabendo algum grau de união com o sentimento evocado por aquela melodia existe sempre com o canto gregoriano. Participação activa.
Tentámos saber se existia por ali uma concertina, mas foi difícil, embora encontrássemos o Vilarinho de Cobas, que tinha uma motorizada, e tinha um caixote e tinha uma concertina. (...) Mas de imediato a Comissão de Festas tentou saber o que é que se passaba, e portanto anulou todo este programa, isto é fez debolber o dinheiro ao Homem de Melo, e novamente os altifalantes.
Há sempre resistência.
E foi a partir daí que ele criticou e comecei eu a, na comunicação social, principalmente no jornal de Caminhense... Passado um ano (não posso precisar quando) o Padre Coutinho me dá razão e assim respeito, e aí começa a romaria a crescer, e a chegar as concertinas e a haver espaço para elas. (...) Mas hoje já temos um Sã'João d'Arga que muito se assemelha, em termos de concertinas, já à década de 50 e até de 60, já estamos muito próximos desse Sã'João d'Arga (...)
A gente dançaba, fazia uma ronda aqui, outra ronda ali e andábamos toda a noite a chantar. (...)
 Ou seja, depois das dificuldades na restauração da música sacra, vereis a recompensa do vosso esforço, que são o reconhecimento do povo fiel, e a santificação de todos.

Eu entendo hoje que o folclore tem que descer dos palcos. A forma teatral com que nós muitas vezes nos apresentamos em palco, a deturpação que nós muitas vezes fazemos do alinhamento, do remate da dança, da forma quomo iniciamos, tudo isso é um espectáculo que contradiz a arte popular, o verdadeiro folclore, que no fundo num é nada disso! O berdadeiro folclore é espontâneo: até o desfile era amontoado, eram as concertinas uma atrás outra no meio, eram as moças a namorar, eram os rapazes a roubar os lenços, era a dibersão em si, e era a participação do público.
Não faz sentido nenhum haver concertos de música litúrgica. Esta é oração, e não simples execução artística ou folguedo. Dirige-se a Deus e não aos homens. Se gosto de ir a um concerto de canto gregoriano porque só lá consigo ouvir o que gostaria de ouvir na Liturgia, isso não é um argumento a favor de que se façam concertos, mas de que se o cante no seu devido lugar.
O grande admirador do folclore, aquele homem que viu o folclore é o home d'antanho, é o homem de tamancos, esse é que sabe se o dançarino 'tá a dançar bem, se 'tá a dançar mal, se a cantoria está correcta ou num está correcta: esse homem é que sabe.
(...)
Se tens perto de ti um sacerdote velho que ainda foi formado antes do Concílio Vaticano II, aprende com ele, porque ele viu e ouviu como e o que se cantava.
E portanto, hoje, um dos autênticos espectáculos que cada vez menos me dizem (a mim não me dizem nada), cada vez menos nós conseguimos viver esse folclore, e cada vez mais nós nos afastamos disso, e queremos levá-lo às origens, pelo menos pôr o público também a vibrar, também a dançar, a viver esse homem d'antanho, que no fundo tamém eram os avós deles, os bisavós e outros, eles tão-bem dançaram. Mesmo o homem citadino, o familiar dele dançou isso, e ele nem sequer se apercebe disso nem o sabe.
Quando fôr restaurada a música sacra na tua igreja, todos a reconhecerão com naturalidade, como aquilo que está certo, e todos fruirão dela e viverão o que toda a vida os seus antepassados viveram e lhes transmitiram.
Portanto, seria um grande objectivo, pelo menos tentar. Não quer dizer que se consiga; se nom se conseguir, prontos, tentou-se.
Magnanimidade!
Começámos a cantar quando éramos novinhas, com dez/onze anos já cantávamos. E era a fazermos os trabalhos, a gente ia p'os trabalhos e cantaba. Na altura que se botaba nas terras, que se deitava nas terras, fazia-se ajuntamentos, e gente cantava em conjunto.
Canto gregoriano desde cedo, na catequese infantil.

Um dia, eu vou a Fazendas d'Almeirim e digo a um dos componentes: «Quero aprender o fandango.» E diz o elemento directivo: «Sim, sr., vamos lá aprender o fandango. Eu vou lhe ensinar o fandango e o sr. ensina-me o vira». Quando chegámos ao palco, ele ia começar o fandango, pára e diz-me «Vamos desistir: nem o sr. aprende o fandango nem eu aprendo o vira, porque eu para aprender o vira tenho de ser o homem alegre do Minho e não sou, e o sr. para aprender o fandango tinha de saber andar a cavalo, caír, saber usar as esporas, nom sei que mais...» E portanto eu dei os parabéns: ele deu-me uma lição de folclore com estas palavras, e portanto aqui se percebe que encontrei um elemento que percebe, que sabe. Podia numa brincadeira aprender o fandango, mas vivê-lo nunca. Eu podia o dançar, mas não o vivia. Ele podia dançar um vira minhoto, mas não se ria, num era dibertido, num era o brincalhão que era o minhoto.
 Pois é: a música sacra é para o cristão, não é para os de fora da Igreja. Embora todos aprendamos uns com os outros, o que é certo é que a música sacra se originou na oração e no encontro com Deus: não é um fim em si mesmo, mas sim um fruto de santidade, que por sua vez pode encaminhar outros para a santidade. O cantor deve saber isto para cantar de verdade, com o espírito da vida vivida, para cantar com a boca o que crê com o coração e prová-lo com as obras.

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