sexta-feira, 15 de março de 2024

Turco: Influência da escrita «diastemática» na determinação do modo

Continuamos a tradução e republicação dos excelentes artigos contidos no

Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano «Dom Jean Claire» - Verona
n° 1 - Janeiro - Abril 2019

Alberto Turco

Influência da escrita «diastemática» na determinação do modo

 

Fontes:

Alb

cod. Paris, bibl. Nat. lat. 776, Gradual-Tropário de Gaillac, séc. XI, notação aquitana diastemática sem linha

BenA1

cod. Benevento, Bibl. Cap. 19-20, Breviário-Missal, séc. XII, notação beneventana sobre linha

Ben5

cod. Benevento, Bibl. Cap. 34, Gradual-Tropário-Prosário, séc. XI-XII, notação beneventana sobre linha

Dij

cod. Montpellier, Bibl. del la Faculté de Médecine H. 159, Gradual, séc. XI, notação francesa adiastemática e alfabética

Ein

cod. Einsiedeln, Stiftsbibl. 121, Gradual, séc. X segunda metade, notação sangalesa adiastemática

Klo1

cod. Graz, Universitätsbibl. 807, Gradual, séc. XII, notação lorenesa de Klosterneuburg sobre linhas

Pla1

cod. Piacenza, Bibl. Cap. 65, Tonário-Calendário-Gradual (ff. 150-230) - Tropário-Sequenciário-Antifonário de Piacenza, séc. XIII início, notação sobre linha

Sta1

cod. London, Bibl. Mus. add. 18031-32, Missal de Stavelot, sec. XIII início, notação gótico-renana sobre linha

Van2

cod. Verdun, Bibl. Mun. 759, Missal, séc. XIII primeira metade, notação lorenesa sobre linha

Wor

cod. Worcester, Cap. F 160, Antifonal e Gradual, dos ff. 249, séc. XIII, após 1230, notação quadrada sobre tetragrama.

AM

Antiphonale Monasticum pro diurnis horis, Parisiis, Tornaci, Romæ, 1934

GT

Graduale Triplex, Solesmis, MCMLXXIX

Hospeda-se na revista «Studi Gregoriani», ano XXXII, 2016, pp. 33-64, um artigo sobre a chamada restituição melódica magis critica do Graduale Romanum (= Graduale Triplex), intitulado «Mudança de modo ou notas cromáticas em relação ao texto» de Franco Ackermans. No seu interior há um parágrafo curioso, mas muito caro a um dos membros da redacção do Graduale Novum, que diz: «Necessidade do Fá sustenido. Categoria I. Mudanças entre Protus e Deuterus". Em apoio desta tese, vem citado o exemplo da Co. Passer invénit (GT 306) [1] e In. Miserere... conculcavit (GT 125), da qual hoje temos a melodia na edição do Graduale Novum, II [2], p. 71.

[1] A restituição melódica da presente comunhão encontra-se em Liber Gradualis, III, Verona, 2011, p. 32.
[2] A restituição melódica já havia sido antecipada na revista Beiträge zur Gregorianik, Band 55, Regensburg, 2013, pp. 36-38.

O facto singular do presente intróito não passou despercebido aos especialistas gregorianos, como E. Cardine, J. Claire, J. Hourlier, J. Froger, etc. durante os trabalhos de elaboração das Tabelas da «Édition Critique» do Graduale Romanum tendo em vista uma futura restituição melódica [3].

Factos compositivos deste género são frequentes no repertório do Ofício. Um exemplo extraordinário de ambivalência protus/deuterus ocorre no timbre modal da antífona Cæcília, fámula tua. Eis as duas versões melódicas:

- em protus (BenA.1.262, Pla1.418, Wor.407);


- em deuterus (AM 1140).

[3] Cf. Tabelas 759-760 do In. Miserere ... conculcavit.

A história do Ofício ensina-nos que o presente timbre modal teve origem no protus. A versão em deuterus, limitada no número de antífonas, chega num segundo momento.

As duas versões melódicas, em transposição hexacordal com cadência final Ré e Mi, compartilham a mesma escala, em dominante Mi e em cadência final Lá. A mudança de modo ocorre na parte grave da melodia (argumentósa desérvit), através da posição diferente dos semitons da corda móvel. Observe-se a seguinte tabela:

(protus)




(deuterus)

LA


MI


SI

sol


re


la

fa


do


sol

mi

← bequadro

si

bemol

fa

re


la


mi

Aqui está a melodia na escritura de Mi, da qual se origina a antífona:

Pois bem, na história do canto gregoriano não há quaisquer vestígios de escritura que na fórmula conclusiva desta antífona, com cadência final Mi (deuterus), tenha sido atribuído o intervalo de semitom do Fá sustenido, para regressar ao contexto melódico original do protus, adoptando então o 3º tom salmódico. Poder-se-á encontrar nas fontes manuscritas uma adaptação melódica para passar da escrita em deuterus àquela de protus; por exemplo, baixando a última frase em um grau melódico: neste caso, em argomentόsa, atacar com fa-fa-mi-do- etc.; mas absolutamente não introduzindo o Fá sustenido na escrita em deuterus em Mi.

O nascimento do deuterus a partir do protus é possível, reiteramos mais uma vez, pelo facto de os dois modos se originarem da mesma escala. A mudança na posição dos semitons na corda móvel no grave não é um facto de “oscilação” e, muito menos, um episódio “cromático”. A escolha de um modo em detrimento de outro, neste caso deuterus ou protus, depende da época da composição, das tradições regionais e, não raro, do neumista, que privilegia ou transcreve os sons do incipit para o espaço e não para a linha da pauta musical. Tudo isto pode constatar-se na análise das grandes «Tabelas» do atelier de Solesmes, elaboradas sob a direção de Dom A. Mocquereau.

Dito isto, vamos ao problema do In. Miserére... conculcávit.
As Tab.759-760 da Édition Critique de Solesmes reportam três diferentes escrituras das fontes manuscritas diastemáticas do referido intróito:
- incipit em Mi, cadência final Mi e 3º tom salmódico: Klo1.76v, Alb.51v;
- incipit em Ré, cadência final Ré e 1º tom salmódico: Ben5,99;
- incipit em Lá-↑Si-bemol, cadência final na nota grave, Lá, e 1º tom salmódico: Sta1.129 e Van2.74v, com a única excepção da nota da sílaba final de bellans.
A coerência entre a escrita e a estrutura modal dos referidos manuscritos dá a versão magis critica da peça. Eis a versão melódica

- em protus


Em Ben5, a dicção melódica do porrectus no acento de bellans é traduzida correctamente com o uníssono (sol-fa-fa) em vez de sol-mi-fa (ambivalência melódica do porrectus).

- em deuterus


A melodia:

A peça constitui-se de duas frases melódicas, cada uma subdividida em dois membros. O primeiro membro (Miserére mihi Dόmine) é representado pela fórmula de entoação completamente "original" de um género melódico silábico e comum aos correspondentes incipits semi-ornamentados de deuterus: cfr. In. Ego clamávi (GT 354), In. Repleátur (GT 246), In. Vocem iucunditátis (GT 229), etc.. Estende-se dentro da quinta modal, repropondo os graus melódicos da fórmula de centonização modal do timbre de protus/deuterus da antífona Cæcília, fámula tua. De todo originais são os três torculus de ornamentação e de preparação aos outros tantos neumas monossónicos de articulação na corda dominante. No topo de cada um deles, as letras do manuscrito de sangalês de Ein visam a sua interpretação agógica: celeriter, no primeiro; celeriter-sursum (s = sustenta) no segundo; sursum, no terceiro.
O segundo membro (quόniam conculcávit me homo) ainda se estrutura na quinta modal com a elevação do acento melódico privilegiado de “concul--vit”.

O primeiro membro da segunda frase (tota die bellans) marca a passagem da quinta para a quarta corda dominante. Os neumas de acento melódico-verbal de die e bellans estão dispostos em progressão melódica descendente, com cadência final na subtónica. No último membro da frase (tribulávit me) a melodia move-se em função da corda estrutural da cadência redundante.

A composição: 

A composição do presente intróito é o resultado da centonização de duas fórmulas ou, melhor, de dois membros de frase, diferentes entre si:


miserére mihi Dόmine

fórmula inicial genérica


quόniam conculcávit me homo

deduzida do contexto composicional de deuterus


tota die bellans

fórmula genérica de ligação intermediária


tribulávit me

deduzida do contexto composicional de protus

Pois bem, a simbiose texto-melodia dos dois citados explica a centonização do nosso intróito:

- quόniam conculcávit me homo tem a mesma estrutura literária que quόniam exaudίsti me, Deus, do In. Ego clamávi (GT 354);

- a conclusão monossilábica de tribulávit me equivale à de vόluit me, do In. Factus est (GT 281).

Duas fórmulas de centonização, provenientes de modos diferentes que contribuem para a formação de uma única peça. Aqui está a versão da peça, na escrita melódica em que se originam os dois modos:

Os manuscritos Van2 e Sta1 utilizaram esta escrita, na versão melódico-modal protus, com o 1º tom salmódico; enquanto Ben5 e Klo1 utilizaram escrita diferente, na versão de transposição hexacordal: a primeira, em cadência final Ré (protus) e 1º tom salmódico; a outra, em cadência final Mi (deuterus) e 3º tom salmódico.

Portanto, as fórmulas de deuterus e protus podem coexistir e concorrer para a formação de uma mesma peça. Na verdade, as notas estruturais e as cordas dominantes (Lá e Sol) são comuns aos dois modos (protusdeuterus); mas cada uma delas tem uma linguagem própria, um vocabulário próprio, representado pelas chamadas notas de ornamentação. Portanto, na versão melódica do Graduale Novum II, na pág. 71, o Fá sustenido introduzido no último membro da frase não é uma transposição hexacordal e muito menos um facto de oscilação, mas sim uma transcrição "material" tout court de uma fórmula [4] da escrita e do contexto compositivo em cadência final Ré para a escrita e o contexto de composição em cadência final Mi. A que propósito? Para poder encaixar a escrita do 3º tom salmódico. Esta operação chama-se: Corruptio optimi pessima!

[4] A fórmula expressa um motivo musical completo do ponto de vista melódico e estruturado numa determinada nota modal de um contexto composicional e rastreável a uma das cordas originárias de Dó (= Fá e Sol, em transposição hexacordal), de Ré (= Lá e Si natural agudo; Sol e Si bemol à terça), de Mi (= Si e meio-tom fixo acima; Lá e Si bemol acima).

Os manuscritos mais representativos da Édition Critique solesmense ensinam que surgiram duas tradições em relação ao intróito em questão. Os três escritos sobre pauta, perfeitamente coerentes entre si, testemunham isso. Poderia tomar-se a versão em deuterus de Klo1, o tradutor de Ein, ou a versão em protus de Ben5, Sta1, Van2. Esta última versão foi, com boa probabilidade, a de maior sucesso para a fórmula do último membro da peça. Isto também pode ser verificado em outros dois manuscritos, como Dij.16 e Clu2.61v, que abaixaram a fórmula final de tribulávit me, trazendo-a de volta ao contexto composicional de protus, com o 1º tom salmódico.

Apraz-me concluir com algumas “notas” manuscritas (30 de março de 1989) de Dom J. Claire:

Influência da escrita
Nas regiões onde mais cedo se escreveu sobre pautas, conservaram-se as versões autênticas (Aquitânia, Benevento). Nas regiões onde mais tarde se usou a pauta, escreveram-se as versões deformadas (Suíça, Baviera, Áustria), donde se explica a estupidez do antifonário suíço [5]. Nas regiões onde se escreveu em neumas (área gregoriana), os cortes passaram-se ​​intactos para a escrita em pauta. Nas regiões onde não havia necessidade alguma de escrever em neumas (ROM, MIL; para Milão, temos testemunhos em neumas), pois que a tradição oral não sofrera qualquer atentado, escreveu-se (em pauta) como se pôde, sem modelo para os cortes tradicionais.

[5] Neste Antifonário, as antífonas em deuterus terminam em Fá em vez de Mi. Hoje é o caso do emprego do Fá sustenido!

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