sexta-feira, 17 de maio de 2024

Alberto Turco: Recitativos Apócrifos

Continuamos a tradução e republicação
dos esclarecedores artigos contidos no 

  

Alberto Turco

RECITATIVOS APÓCRIFOS

O Missale Romanum, editio typica tertia-2002, propõe três formulários para o Acto Penitencial: o primeiro, com o texto do Confiteor; o segundo, com dois V. + R.: Miserére nostri Dómine, etc.; o último, com as Invocações e o Kyrie. Todos os três formulários são respectivamente precedidos e seguidos pelo convite ao acto penitencial e pela absolvição.
Apenas para os versetos (Miserere nostri, Domine) do segundo formulário reservou o Missale Romanum o tom recitativo; o tom próprio das orações simples (colecta, etc.), em dominante e cadência final La (transposição da corda originária Re). Nenhuma tom "oficial" para os outros dois formulários, nem no tom de Ré (= Lá, em transposição) nem no tom de Dó. Para colmatar esta lacuna do Missale Romanum, pensou, à sua maneira com melodias de todo inesperadas, o Graduale Novum, vol. II, 2018, às págs. 403-406.

ACTO PENITENCIAL
A
«Confiteor»


Trata-se de um tom "irreconhecível": o tenor (corda dominante de recitação) em Dó, com o Si-bequadro, no papel de subdominante ou subtónica, e com o Si-bemol de ornamentação na cadência da frase, em Fá, para evitar o trítono. O presente tom havia entrado nas edições do primeiro período da restauração gregoriana (Liber Usualis, etc.) para o canto do Confiteor antes da Comunhão na Missa Pontifical. Donde provém? É fácil dizer! Do «Cerimonialis, Ordo Romanus ad usum totius Serafici Ordinis Minorum», cap. XXV, Romæ p. 580. Hoje, os Franciscanos que me forneceram as fotos do Cerimonial consideram-no, com boa razão, um dos piores tons compostos pelos seus predecessores. Este tom foi riscado do Ordo Cantus Missæ de 1972: «A própria melodia das peças do Graduale Romanum, escreve Dom J. Claire, não foi retocada, aguardando a edição crítica (começada em 1948, mas infelizmente retardada por causa de trabalhos requeridos pelo Concílio). A simples reordenação, por outro lado, das peças tradicionais não comportava a necessidade duma nova edição, mas somente um Ordo cantus Missæ que se publicou em 1972, e segundo o qual Solesmes publicou, em 1975, uma edição privada do Graduale, do qual foram eliminadas as peças consideradas ad libitum" (cfr. CLAIRE J., Un secolo di lavoro a Solesmes, em "Studi Gregoriani", XVI, 2000, p. 23).

B


A reconstrução deste tom, em dominante La e cadência final Mi (transposição de re -↓la), é feita do tom das Orações simples. Há duas observações a fazer, devidas à sua nova colocação no Ordo cantus Missæ. De facto, este tom está colocado no Acto Penitencial, não na parte eucarística, como acontecia no velho Ordo. Por consequência, deve ser removida seja a fórmula final “la-la-sol-la-mi” do ad Dominum Deum nostrum, seja o acento cadencial no Si de omissione e et vos fratres. Estes dois sinais de pontuação são próprios da seção eucarística do Ordo. Seria oportuno substituí-los com a fórmula de pontuação das orações simples. Eis o exemplo:


É importante respeitar o contexto ritual no uso das fórmulas! A comissão encarregada (Cœtus XXV: De libris cantus liturgici revisendis et edendis, presidida por Dom E. Cardine) reconstruiu o novo Ordo cantus Missæ sob critérios bem precisos de ordem melódica, modal e estética.

INVOCAÇÕES E KYRIE

A
(tonus sollemnis)


Uma primeira observação diz respeito ao incipit. A entonação no grave não se liga com a cadência final, na corda de recitação, do convite, mysteria celebranda. Esta ligação não se encontra em nenhum tom.
O problema grave, porém, é dado pela resposta Kyrie eleison, cuja fórmula (?) introduz uma dominante de contraste (Sol) em relação à do versus (La). O tom do versus na verdade pertence ao modo de Re; a fórmula (?) do Kyrie pertence ao modo de Do.
A construção deste tropo é um “insulto” à estética de qualquer salmodia responsorial. A responsa nasce “por natureza” e evolui na dominante do versus. Não se dá uma responsa num tom mais grave!
Neste caso específico, a melodia correcta do Kyrie, que pertence à tradição milanesa, é atestada nas actuais edições monásticas na seguinte versão melódica:


B
(tonus simplex)


A escolha do Kyrie, da Litaniæ Sanctorum, não é das melhores: expressa uma evolução modal para o grave. Habitualmente adopta-se a fórmula que traz a final para a dominante Dó.


UMA MELODIA DO «SYMBOLUM APOSTOLORUM»

Os redactores do Graduale Novum.II, p. 391 acolheram a seguinte melodia para o «Symbolum Apostolorum».


Repito in extenso quanto escrevi sobre a questão do texto e da melodia deste Credo, em Cantus recitativi, «Antiquæ Monodiæ Eruditio - VI», Verona, 2011, p. 292.

Entre os séc. VI e VII, o Symbolum Apostolorum é substituído pelo Niceno-Constantinopolitano, tanto no Oriente como no Ocidente (cfr. HUGLO M., Origine de la mélodie du Credo «authentique» de la Vaticane, in «Revue Grégorienne», 30, 1951, pp. 68-78).
Por este facto, é assaz provável que jamais tenha entrado na Missa (cfr. WAGNER P., Origine e sviluppo del canto liturgico fino alla fine del medioevo, Bologna, 1970, p. 97/nota). Do presente Credo não se tem de facto quaisquer vestígios de versão melódica nas fontes tradicionais dos antigos repertórios litúrgicos ocidentais.

A melodia, proposta pelo Graduale Novum, é atestada pelo cód. 2615, Museu Britânico, aa. 1227-1234, f° 14, que contém um repertório de cantos (Ofício da Circuncisão, o Ludus Danielis, o Benedicamus Domino e um Conductus) para a Catedral de Beauvais.
O texto do Credo (Symbolum Apostolorum) aí se insere, na forma tropada do Ludus Danielis: «um unicum na dramaturgia medieval» [1].

[1] Cfr. CATTIN G., La monodia nel medioevo, «Storia della musica - 2», Torino, 1991, p. 149.

        Credo in Deum Patrem omnipotentem, solus qui tuetur omnia, solus qui gubernat omnia, creatorem celi et terre. Et in Jesum Christum filium ejus unicum natum ante secula, Dominum nostrum pro mundi remedio carnis opertum pallio. Qui conceptus est de Spiritu Sancto natus ineffabiliter ex Maria Virgine, Sol de stella passus sub Pontio Pilato ipsi potestate tradita. Crucifixus mortuus et sepultus. Qui nulla perpetravit facinora. Descendit ad inferna. Gemit capta pestis antiqua. Tercia die resurrexit ad celos unde descenderat. Sedet ad dexteram dei patris omnipotentis regna cujus disponit jure perhenni. Inde venturus judicare vivos et mortuos. Reddens vicem pro additis justisque regnum pro bonis. Credo in Spiritum Sanctum sine quo preces omnes casse creduntur et indigne dei auribus. Sanctam ecclesiam catholicam que construitur in celis vivis ex lapidibus. Sanctorum communionem Angeli quorum semper rident faciem patris. Remissionem peccatorum. Quibus Deum offendimus corde verbo operibus. Carnis resurrectionem immortalitatem cum Christo. Vitam eternam. Quam repromisit deus diligentibus se. Amen

O paleógrafo Henry Bannister (1854-1919) entregou ao atelier de Solesmes uma transcrição sua deste tropo, inferida do códex acima indicado.

Nota do tradutor: pode encontrar-se uma versão muito similar, mas não exactamente igual, com boa qualidade para consulta em linha, no ms. CH-Laon 263, Tropário-prosário-hinário, séc.s XII-XIII, ff.139r-139v [289-290], através da cidade de Laon e cantusindex.


Como se pode ver, a melodia é construída sobre um 8º tom salmódico, de género silábico, em dominante Dó e cadência final Sol, subdividido em duas partes, caracterizadas por duas pontuações melódicas silábicas, uma para a mediatio e outra para a terminatio. A estranheza destas cadências por oposição às tradicionais dos tons salmódicos sugere que a versão melódica do tropo Ludus Danielis foi cunhada em circunstâncias "suspeitas". Cattin afirma: «Verosimilmente [o Ludus Danielis] era executado depois das Matinas da Circuncisão, ou seja, o primeiro de Janeiro, o mesmo dia para o qual Pierre de Corbeil (†1222) compôs o Officium stultorum (Officium asini). O texto denuncia a origem escolaresca do drama...»[2]. Da mesma opinião é Dom Jean Claire, que me pediu que não usasse esta melodia não só pela sua “estranheza”, mas sobretudo pela sua origem profana. Ele aconselhou-me outrossim a empregar a melodia do Credo VI da Edição Vaticana (GT 782), uma vez que era completamente ignorada ou pelo menos não praticada pelas scholæ. A esta poderia muito bem aplicar-se o texto do Symbolum Apostolorum, pelo facto de ter sido composta sobre um "timbre" de tom recitativo semi-ornado, do qual Dom André Mocquereau preparara há muito o «Prospecto» (cfr. Le Nombre Musical, tomo II, entre a p. 212 e a p. 213). E assim fiz com o nada obsta de Claire.

[2] CATTIN G., La monodia ..., op. cit., p. 149.

O texto do Symbolum Apostolorum, aplicado ao timbre do Credo VI da edição vaticana, está publicado em Psallite Domino, Canti per la Messa, Ed Mus. LIM, 2007, pág. 51.

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