Contarei aqui um caso que nos tem entretido nos últimos tempos, desde Maio de 2019 quando o amigo português de Olivença José António González Carrillo me mostrou umas fotografias dum cantoral impresso e por ele adquirido uns anos antes na Feira da Ladra aquando duma sua visita a Lisboa:
O exemplar deste amigo encontra-se, e já se encontrava à data da compra, amputado da sua encadernação original, assim como dos fólios iniciais contendo os título e autor, data e local de imprensa, licenças, dedicatórias e índice; tão-pouco se encontrou qualquer colofão, e o final do livro mostra-se incompleto (verso do fólio 180, erradamente paginado com 160, com a sequência Dies irae da Missa pro defunctis). Tratava-se, portanto, de um livro de cantochão por identificar, impresso a duas cores (rubrum para as rubricas e pentagrama, nigrum para os restantes elementos), com cânticos gregorianos de vésperas e missas das principais festas e solenidades do ano litúrgico. O caro leitor poderá consultar todo o livro graças à generosidade do seu proprietário que o fotografou por inteiro.
Chamou-me à atenção a nota manuscrita neste primeiro fólio, onde se podem ler as palavras Liberal Sampaio: provavelmente um anterior proprietário. Através duma pesquisa na internet, rapidamente chegámos ao blog Outeiro Seco - A Quem Interesse, da autoria de Humberto Ferreira, assim como às Velharias do Dr. Luís Montalvão, que confirmaram ser esta anotação uma assinatura do Doutor Liberal Sampaio, influente figura do Norte Português, mais concretamente de Chaves, na transição entre os séculos XIX e XX. A assinatura presente no cantoral comparada com a de outros documentos
da autoria do Padre Liberal Sampaio prova que este foi o seu
proprietário há cerca de 100 anos.
Crédito: Luís Montalvão.
Adicional prova de que o livro
pertenceu ao ilustre Doutor está no título "Cantochão" em caligrafia
mais moderna coincidente com a cota 1281 da 2ª página do catálogo
realizado postumamente pelos herdeiros do Sacerdote, cota esta com o
mesmo exacto título, sem informações de autor nem data ou local de
publicação, e colocada na secção Assuntos Teológicos.
Crédito: JAGC.
Crédito: LM.
Crédito: JAGC.
Mas quem fôra, afinal, Liberal Sampaio? José Rodrigues Liberal Sampaio nasceu a 29 de Julho de 1846 em Sarraquinhos, concelho de Montalegre. Foi pároco do Outeiro Seco, no concelho de Chaves, onde viveu a maior parte da sua vida. De 1886 a 1891 estudou em Coimbra com excelente aproveitamento académico. Nas palavras de Luís Montalvão, seu trisneto e biógrafo, Liberal Sampaio "era um homem muito culto, formado em teologia e direito, colaborador regular na imprensa periódica flaviense, numismata, bibliófilo e fazia parte da extensa rede de colaboradores de José Leite de Vasconcelos, que o informavam de tudo o que existisse de interesse arqueológico e etnológico em cada parte do País." Granjeou fama de grandíssimo orador, tendo sido honrado por Sua Majestade com o título de pregador da Casa Real. Fundou um colégio que ensinou muitos notáveis, projectou uma Biblioteca Municipal e um Museu Regional em Chaves, e acumulou várias centenas de livros na biblioteca da sua residência no solar dos Montalvões em Outeiro Seco. Manteve-se sempre activo intelectualmente, tendo falecido no dia 29 de Outubro de 1935, aos 89 anos de idade.
Foto de J. M. Santos, Phot. Conimbricense. Crédito: LM.
José Maria Ferreira Montalvão (filho de Liberal Sampaio) na biblioteca da família.
Podem ver-se todos os livros cotados. Crédito: LM.
A personalidade idónea de Liberal Sampaio faz-nos crer que o livro tenha chegado à sua posse já amputado dos elementos identificativos de que actualmente carece, não sendo impossível que tenha sido ele mesmo o responsável pela actual encadernação. Contudo, nada sabemos acerca de quando, onde, ou como o livro tenha sido por ele adquirido, nem que uso este lhe deu durante a sua vida. Seja como fôr, o cantoral foi vendido nos anos 80 (juntamente com a restante biblioteca do solar dos Montalvões) a um alfarrabista em Lisboa, o qual por sua vez o terá revendido, e nalgum momento a respectiva cota (se é que chegou a ser acrescentada ao livro) terá sido retirada. Finalmente, na última década, este precioso exemplar foi comprado por José António González Carrilho na Feira da Ladra em Lisboa e daí levado para Olivença.
Pois bem, na nossa busca por qual seria esta edição, fomos ao sítio da Biblioteca Nacional Digital, à procura de algum exemplar semelhante que nos pudesse dar mais informações. Fomos felizes, em que encontrámos algo muito semelhante!
Precioso, muito útil e interessante este blog. Obrigado pela partilha generosa de tão profundo saber.
ResponderEliminarMuito gostaria de ser notificado, futuramente, de novas publicações.
O meu email é: hmjpena@gmail.com
Antecipadamente muito grato,
Horácio Pena
Caro Horácio Pena, muito obrigado pelas generosas palavras. Por favor confirme a mensagem do serviço Feedburner que lhe permitirá de futuro receber as novidades por correio electrónico. Um grande Bem haja,
EliminarCaro Francisco
ResponderEliminarGostei imenso deste seu texto. Aborda um assunto erudito de uma forma concisa e com uma escrita clara e simples.
Como trineto de Liberal Sampaio fui um prazer saber que uma das obras da antiga livraria do solar de Outeiro Seco reapareceu e que está estimada, nas mãos de um amigo de Portugal.
A sua investigação traz também um contributo para conhecer um pouco mais o que foi aquela biblioteca, que hoje está dispersa.
As suas descobertas são também um incentivo para eu continuar a publicar o meu trabalho de compilação e memórias do solar da família Montalvão.
Um bem haja pelo seu trabalho
Caro Luís,
EliminarFoi um prazer descobrir esta fonte assim como a sua história que só foi possível graças à prudente assinatura do Doutor Liberal Sampaio e à zelosa colaboração do seu trineto.
Por favor continue a divulgar as memórias da sua família que são riquíssimas e nos cultivam a todos.
Que tenha um Santo Natal e um próspero ano novo é o que desejo ao meu caro Amigo Luís Montalvão e a todos os seus familiares mais próximos,