Diz-nos a instrução Musicam Sacram de 5 de Março de 1967, publicada pela Sagrada Congregação dos Ritos e aprovada pelo Papa Paulo VI durante o Concílio Vaticano II, que na Missa há três graus de participação activa relativamente ao uso da música. O primeiro grau inclui as secções mais importantes da Missa e que deverão ser cantadas com prioridade. No canto do segundo grau apenas devem ser investidos esforços se o primeiro grau estiver satisfeito, e o mesmo sucede para o terceiro grau em relação ao segundo (excepto excepções excepcionais).
Já várias vezes disse isto em relação ao Canto Gregoriano: os tons e as respostas do primeiro grau são muito simples, curtas, sempre iguais e repetem-se ao longo duma mesma cerimónia; já os cânticos do segundo grau (ordinarium missae) exigem relativamente maior dificuldade por serem mais longos e ornados, mas o texto, permanecendo igual ao longo do ano litúrgico, é passível de manter-se com uma mesma melodia enquanto durar um tempo litúrgico, e variar como variam as côres dos paramentos; finalmente, o terceiro grau (proprium missae) varia todos os dias e é extremado na ornamentação.
O mesmo podemos dizer da Polifonia do Renascimento. Para os poucos córos litúrgicos que podem aventurar-se no reportório polifónico, não faz sentido querer preparar um motete para o Domingo de Ramos, que só será cantado uma vez no ano, quando nunca se cantou um Kyrie ou um Agnus Dei; e não faz sentido querer preparar um Credo quando não se canta um simples Amen.
Quais são então as orações do primeiro grau? Enumera-as o referido documento conciliar:
«29. Pertencem ao primeiro grau:
a) nos ritos de entrada:
- a saudação do sacerdote com a resposta do povo;
- a oração;
b) na liturgia da Palavra:
- as aclamações ao Evangelho;
c) na liturgia eucarística:
- a oração sobre as oblatas,
- o prefácio com o respectivo diálogo e o "Sanctus",
- a doxologia final do cânone,
- a oração do Senhor - Pai nosso - com a sua admonição e embolismo,
- o "Pax Domini",
- a oração depois da comunhão,
- as fórmulas de despedida.»
Retirando daqui o que só pode ser cantado pelo Celebrante (e obviamente não pode ser cantado polifonicamente), assim como o Sanctus (cujo nível de dificuldade na práctica pertence ao segundo grau), ficamos com as respostas polifónicas do primeiro grau:
- Amen, que se canta no fim das orações colecta, sobre as oblatas, depois da comunhão, etc.
- Et cum spiritu tuo ( = E com o teu espírito. ), que se canta para abençoar o celebrante em vários momentos importantes da Missa tais como antes do Evangelho, antes da consagração, etc.
- Gloria tibi Domine ( = Glória a Ti, Senhor ) que é a resposta dada imediatamente antes da proclamação do Evangelho
- Et cum spiritu tuo ... Habemus ad Dominum ( = Temos [os corações] no Senhor. ) e Dignum et justum est ( = É digno e justo [dar graças a Deus] ), do diálogo antes do prefácio da oração eucarística.
- Sed libera nos a malo ( = Mas livra-nos do mal ), a última e única frase do Pai-Nosso que tradicionalmente é respondida pelo pôvo.
[Actualização: a técnica do Fabordão]
Eu, sendo português, sou da opinião que devemos preferir sempre que possível as composições feitas em Portugal e/ou por autores Portugueses no Estrangeiro, pois essas são as que mais nos informam sobre a nossa própria tradição religiosa e litúrgica: quais os tempos e as festas com mais devoção, quais os textos escolhidos localmente para cada oração, qual o tratamento musical dado a cada texto, qual o número de vozes mais frequentemente escolhido, etc.. Desde a Reconquista aos muçulmanos que o reportório sacro português sempre sofreu influências doutros países, mas soube também criar uma identidade própria, e o vasto reportório polifónico de altíssima qualidade que chegou até nós é disso mesmo prova.
Para os nossos leitores do Brasil, creio que o mesmo raciocínio é de aplicar, uma vez que nesta época se estava dando a primeira missionação do território, o que no plano musical consistiu inicialmente na importação do reportório musical sacro praticado na Europa, sobretudo em Portugal. Existem, aliás, alguns códices antigos no Brasil que testemunham este facto, e muitos outros por estudar, que certamente mostrarão composições dêste período criadas originalmente no Brasil, mas para já não conheço nenhuma. Mas saíndo do Renascimento, e entrando no século XVII e seguintes, aparecem muitas composições originais de Brasileiros, ora com forte influência das obras renascentistas anteriores, ora da música que entretanto evoluíra na Europa, ora apresentando aspectos verdadeiramente originais. Para mais informações, não perder a História da Música Brasileira do Maestro Ricardo Canji.
Quanto às edições a usar, sou da opinião que devemos evitar as transcrições para a notação musical moderna. Embora muito difundida, esta notação não é a mais adequada para a música do Renascimento, principalmente porque a escrita dos compassos pode induzir em erro o cantor, habituado a acentuar as primeiras notas de cada compasso. Para além disso, as notas são relativamente pequenas, o que obriga a que todos carreguem papel durante o canto, e a colocação do texto é sempre uma opção do editor, por vezes questionável. Também resulta numa escrita menos económica uma vez que os silêncios das vozes obrigam a grandes vazios nas pautas quando estas são organizadas em sistemas. Não obstante, estas transcrições não deixam de ser muito úteis, por exemplo, para tanger o órgão.
Pelo contrário, para o canto, muito mais apropriada é a notação musical usada na Alta Idade Média e no Renascimento, a chamada notação mensural branca: mensural porque, contrariamente ao canto gregoriano, em que cada nota poderia ter um valor próprio em função do texto, na notação polifónica cada nota tem um valor "medido", ou seja convencionado numa relação aritmética simples com a unidade de tempo definida pela regência do maestro e aplicável a todas as diferentes vozes do agrupamento; e branca, porque, contrariamente aos neumas do canto gregoriano, que são todos preenchidos com tinta, os neumas da escrita polifónica não são preenchidos (na maioria dos casos), sendo só desenhado o seu contorno, com o objectivo de não causar borrões nem de a tinta passar para o verso do fólio (o outro lado da página).
Esta notação é superior para a escrita e interpretação da polifonia do Renascimento, por várias razões. Desde logo porque é a original, aquela na qual o compositor pensou a obra. Também, à semelhança dos códices gregorianos, apresenta as letras maiúsculas iniciais ricamente ornadas com motivos piedosos e musicais, que alegram o cantor, bem como o custos (guardião) no final de cada pauta, que o recorda de qual a nota a cantar de seguida. Depois, não mostra as vozes em sistema, mas cada uma no canto do campo visual quando se tem o livro aberto:
- superius / cantus no canto superior esquerdo, isto é na metade superior da página esquerda
- [contratenor] altus no canto sup. dt.º, i.e. na met. sup. da pág. dt.ª
- tenor no canto inf. esq.º, i.e. na met. inf. da pág. esq.ª
- e [contratenor] bassus no canto inf. dt.º, i.e. na met. inf da pág. esqª
- A notação polifónica aproxima-se do canto gregoriano, o que faz o cantor descobrir na sua própria melodia o ritmo que dela emana, e não o do compasso.
- Os silêncios ocupam pouco espaço, e as notas estão todas encostadinhas, economizando papel.
- As notas são maiores, o que facilita a leitura à distância e dá ao cantor um incentivo difícil de explicar por palavras (maior audácia?).
- Permite que todos cantem pela mesma partitura na estante / facistol, não havendo ruídos do manuseamento do papel durante a liturgia, nem preocupação se estamos na página certa ou não, nem de distribuir folhas nos ensaios e liturgias.
- A partitura única, por sua vez, obriga os cantores a estarem próximos, com boa postura, a ouvirem-se e a apoiarem-se mutuamente nas intensidades do som, "como as pedras duma catedral" (fundamental).
Para o nosso caso, interessam-nos as respostas (responses) que se encontram num manuscrito do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra de meados do século XVI. Nos seus fólios 018v-019r podemos comtemplar umas belíssimas respostas polifónicas do 1º grau em latim. (Na base-de-dados existem outras 2 versões musicais para os mesmos textos: uma que tem a mesma melodia mas a partitura encontra-se inacabada, e uma outra também inacabada e com melodia diversa)
Como interpretar, então, esta notação? Num postal futuro abordaremos os aspectos mais específicos desta notação musical, mas para já ficam dois princípios familiares à notação quadrada do canto gregoriano:
Clave de C: a linha que passa entre os dois quadrados assinala a corda C. |
Clave de F: a linha que atravessa o quadrado do lado esquerdo e passa pelo meio dos losangos do lado direito assinala a corda F. |
Continua...
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