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segunda-feira, 25 de março de 2024

Sessantini: o nº 116 da Sacrosanctum Concilium do Concílio Vaticano II ou o que significa o canto gregoriano ser próprio da liturgia romana


Continuamos a tradução e republicação dos magníficos artigos contidos no 

Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano «Dom Jean Claire» - Verona
n° 2 - Maio - Agosto 2019

 

Gilberto Sessantini

O gregoriano e o seu estatuto de
"canto próprio da liturgia romana".

Entre as diversas definições que tentam determinar, cada uma segundo diversas perspectivas [1], o que seja o canto gregoriano, a mais inerente à teologia litúrgica, e por consequência a que mais deve interessar a todos os amantes das duas disciplinas envolvidas [2], é a seguinte: o canto gregoriano é “o canto próprio da liturgia romana” [3]. Esta definição é explicitada no n.º 116 da Sacrosanctum Concilium, a constituição do Vaticano II sobre a liturgia. Este número diz assim:

Ecclesia cantum gregorianum agnoscit ut liturgiae romanae proprium: qui ideo in actionibus liturgicis, ceteris paribus, principem locum obtineat.
Alia genera Musicae sacrae, praesertim vero polyphonia, in celebrandis divinis Officiis minime excluduntur, dummodo spiritui actionis liturgicae respondeant, ad normam art. 30.
O facto de que seja um documento conciliar a afirmar uma realidade tão significativa deveria, por si só, não deixar margem para dúvidas quanto à precípua relevância que o canto gregoriano deverá assumir na liturgia da Igreja, nem de que deva manter um "locum principem". Todavia, sabemos que as interpretações práticas e “pastorais” das normativas conciliares determinaram, de facto, o desaparecimento do gregoriano das celebrações, tanto que se tornou “um estranho na sua própria casa” [4]. Uma análise deste número do documento conciliar permite-nos formular algumas reflexões que podem contribuir para clarificar o alcance do ditame e a vontade dos Padres conciliares sobre o conceito de "cantum proprium", reservando-nos o direito de num próximo artigo debruçarmo-nos sobre a expressão “ceteris paribus”, imediatamente sucessiva e normalmente interpretada como o que tornou possível a negação da primeira afirmação, graças à sua pressuposta vaga ambiguidade.

[1] Para uma definição histórico-musical do canto gregoriano poderemos dizer que, num sentido geral, sob o termo canto gregoriano se coloca um enorme corpus de peças monódicas, compostas ao longo dos séculos e distribuídas em vários livros litúrgicos. Em sentido estrito, porém, o gregoriano é aquele canto que surge da fusão do canto romano antigo com as instâncias musicais próprias do mundo franco-germânico, fusão que ocorreu no século VIII e respondeu a lógicas unificadoras, a liturgia e o canto, mas também a cultura e a política. Para dar “peso político” e autoridade a esta operação litúrgico-musical, atribuiu-se a a Gregório Magno, Papa de 590 a 604, a inspiração divina das composições presentes nos Antifonários e Graduais, como recorda o poema litúrgico Gregorio Presul, posteriormente feito tropo do Intróito do Primeiro Domingo do Advento, presente nos Graduais da região franca do século IX: daí o nome de canto gregoriano.

[2] Ou seja, teologia litúrgica e estudos gregorianos. Dificilmente os dois âmbitos de pesquisa têm seguido até aqui um caminho comum, uma ocupando-se apenas dos aspectos musicais histórico-interpretativos, a outra considerando o canto gregoriano apenas como um dos tantos repertórios possíveis com os quais cantar a liturgia. Este meu contributo pretende ser uma tentativa de superar esta falta de diálogo. Era diferente, na verdade, a sinergia que caracterizava até ao Concílio Vaticano II as pesquisas semiológica e de âmbitos histórico-litúrgicos, que andavam de par e passo.

[3] A definição de “canto próprio” aplicada ao gregoriano é utilizada pela primeira vez nos documentos do Magistério por São Pio X no Motu proprio Tra le sollecitudini de 1903. Neste documento, o gregoriano é denominado “canto próprio da Igreja romana”.  Pode encontrar-se um extenso exame da legislação canónica relativa ao canto gregoriano no precioso volume de GIANNICOLA D'AMICO, Il canto gregoriano nel Magistero della Chiesa, Conservatorio di Rovigo, 2009.

[4] FULVIO RAMPI, Il canto gregoriano: un estraneo in casa sua, discurso proferido em 19 de maio de 2012 em Lecce no primeiro encontro: “Colloqui sulla musica sacra. Cinquant'anni dal Concilio Vaticano II alla luce del magistero di Benedetto XVI”.

Em primeiro lugar, convém partir do sujeito que rege gramaticalmente toda a primeira frase, que está na base do estatuto do canto gregoriano: o sujeito é “Ecclesia”, a Igreja.
É a Igreja, de facto, que reconhece o gregoriano como o canto próprio da liturgia romana. É importante recordar o sujeito. Este acto de reconhecimento é um acto eclesial, no sentido mais profundo do termo. É a própria Igreja que, considerando-se a si mesma, a sua realidade, a sua história, define algo. É uma acção magisterial, e no sentido mais elevado do termo, visto que se trata de uma definição conciliar. Esta acção da Igreja, reconhecida pela própria Igreja como uma acção própria, uma acção que lhe pertence, é uma acção que lhe compete naturalmente como “mater et magistra” e enquanto “lumen gentium”; categorias, estas últimas, que certamente se aplicam à Igreja Católica em áreas bem mais importantes, mas que, de qualquer forma, definem o seu papel de discernimento e guia e, consequentemente e em última instância, a sua potestas legislativa. É portanto a Igreja qua talis, e não o indivíduo, quem determina o que ela é, o que pertence à Igreja, o que lhe é próprio, o que a distingue e, no caso da liturgia, também quem regula cada parte, incluindo o canto, como muito bem nos lembra SC 22: “Regular a sagrada liturgia pertence unicamente à autoridade da Igreja, a qual reside na Sé Apostólica e, de acordo com o direito, no bispo... dentro dos limites determinados pelas conferências episcopais... Por consequência, absolutamente ninguém mais, mesmo que seja sacerdote, ouse, por sua própria iniciativa, acrescentar, retirar ou alterar qualquer coisa em matéria litúrgica”. E esta ação eclesial de discernimento e regulamentação, no nosso caso, diz respeito ao canto gregoriano. É importante reiterar que se trata de uma ação eclesial e magisterial, autorizada e autoritativa, porque isto deveria automaticamente redimensionar qualquer veleidade de superar o ditame conciliar com simples opiniões pessoais, que, embora possam ser formuladas por eminentes estudiosos e eclesiásticos, permanecem o que são: opiniões pessoais. Respeitabilíssimas, mas que certamente não têm a força cogente e obrigatória de um ditame conciliar, a menos que se ponha em causa toda a natureza e estrutura da Igreja...

De que acção se trata? “Ecclesia agnoscit”: a Igreja reconhece, diz a tradução oficial. O verbo latino utilizado, porém, é semanticamente bem mais eficaz e esclarecedor. Agnoscere (ad-gnoscere), de facto, com a sua partícula prefixal ad-, indica uma operação cognitiva realizada através de um discernimento, uma escolha efectuada em relação a alguns ou muitos elementos, a partir dos quais se escolhe e seleciona o objecto reconhecido como próprio, como pertencente a si mesmo. Este reconhecimento selectivo é operado graças a elementos reconhecíveis imediata e naturalmente pelo sujeito, com os quais se reencontra, se identifica, e admite estarem presentes no objeto. O sujeito - a Igreja - encontra portanto no canto gregoriano elementos que lhe permitem afirmar que é o canto próprio da liturgia romana, o canto próprio da sua liturgia, enxertando uma equivalência fundamental entre a sua liturgia e o canto que a esta liturgia corresponde, e que, consequentemente, passa a ser o “seu” canto [5]. A Igreja encontra no canto gregoriano elementos que a reconduzem inequivocamente à sua liturgia, tanto que se pode dizer que a liturgia e o canto gregoriano são partes indistintas um do outro. O valor deste reconhecimento é dado precisamente pelo uso do verbo latino agnoscere. Na verdade, para um “reconhecer” mais vago e menos cogente, estão disponíveis outros verbos latinos: reconhecer no sentido de aprovar e elogiar teria exigido o verbo laudare ou probare; no sentido de apreciar o verbo magni facere ou indicare; no sentido de distinguir cernere ou discernere; no sentido de considerar, porém, o verbo mais adequado teria sido extimare ou habere. Além disso, há toda uma área semântica legalística conexa ao verbo agnoscere que deve ter em conta: este verbo é usado para reconhecer um filho como legítimo, uma pessoa como cidadão, uma coisa como propriedade. Finalmente, a partícula prefixa ad indica um movimento ascendente, um trazer à luz, um manifestar duma verdade diante de todos e para todos. O reconhecimento da parte da Igreja do canto gregoriano como canto próprio da liturgia romana reveste-se, portanto, de todos estes significados e não pode ser reconduzido ou reduzido a uma piedosa exortação ou a uma genérica indicação de máxima.

[5] Precisamente por isto, o Motu proprio Tra le sollecitudini afirmava que o gregoriano é “o canto próprio da Igreja Romana”, fazendo a equivalência entre Igreja e liturgia e entre liturgia e canto.

Se tal é a acção realizada pelo sujeito Ecclesia, qual é o conteúdo desta operação de reconhecimento? O canto gregoriano é reconhecido como “próprio” da liturgia romana. O conceito de proprio, seja no original latino proprium ou na tradução italiana “proprio” [6], refere-se a algo exclusivo, pertencente a, característico e peculiar, preciso e especial.
Próprio, de facto, quer dizer, em primeiro lugar, propriedade. Diz-se do que pertence em modo inequívoco a alguém, do que é verdadeiramente seu e não de outros, constituindo, em sentido adjectival, uma característica identificadora.
Próprio também se diz apropriado: a qualidade peculiar, que pertence íntima e singularmente ao objecto, distinguindo-o de qualquer outro. Diz-se de uma palavra ou locução que expressa com exactidão a ideia que quer significar: o uso exacto, e não aproximado. Em sentido figurado significa também “ordenado” e “decoroso”, chegando à função adverbial de “exactamente” e “precisamente”, reforçando o conceito da palavra que determina [6b].
E se passarmos da semântica à filosofia e precisamente à lógica aristotélica, o “próprio” é um dos quatro predicáveis: é o que é inerente ao ser sem contudo defini-lo, é o que faz referência ao ser mesmo que não o inclua totalmente. No nosso caso, o canto gregoriano, reconhecido como pertencente à liturgia da Igreja, é inerente à Igreja mas sem a definir. A Igreja, de facto, é um sujeito mais amplo que o canto gregoriano, o qual obviamente não esgota toda a actividade ou essência da Igreja, mas, todavia, sendo “próprio” da liturgia da Igreja, é-lhe um elemento constitutivo que lhe permite a identificação como Igreja e enquanto Igreja. Em palavras simples: quem diz gregoriano diz inequivocamente Igreja. Mesmo que nem sempre o contrário seja verdadeiro: de facto, quem diz Igreja diz gregoriano, se, e só se, da actividade da Igreja se limita a considerar-lhe o aspecto musical, sendo o gregoriano reconhecido como proprium em relação aos aspectos musicais da liturgia da Igreja. liturgia. E, no entanto, o nexo entre Igreja e canto gregoriano, por via desse “proprium”, é talmente forte que a correspondência, pelo menos no mundo cultural ocidental, é certamente biunívoca [7].

[6] Mas esta ênfase também pode ser reconhecida em outras línguas neolatinas: as traduções oficiais em francês e espanhol, de facto, rezam propre e propio. O alemão também usa um termo semelhante: eigenen; ao passo que o inglês usa a perífrase “specially suited to the Roman liturgy”, que entra num campo semânthttps://divinicultussanctitatem.blogspot.com/ico diverso e mais débil: “um canto particularmente adequado à liturgia romana”, um exemplo claro de tradução por traição.

[6b] N. do T.: em italiano, "proprio" pode equivaler a "propriamente dito".

[7] Prova irrefutável disto mesmo são as “inserções” de melodias gregorianas em contextos particulares (ópera lírica, música pop rock e disco...) quando se quer recordar imediatamente o mundo religioso e cultual católico.

Esta lógica precisa e férrea contida no ditame conciliar que define de modo totalmente exclusivo o canto gregoriano é apoiada pelo parágrafo seguinte de SC116, onde se fala de “alia genera musicae sacrae”. Note-se bem que o original latino, assim construído, deve ser traduzido como “outros géneros de música sacra” [8] e não “os outros géneros de música sacra” como acontece na tradução oficial italiana, tanto mais que quer a versão oficial alemã quer a inglesa traduzem justa e respectivamente como “andere Arten der Kirchenmusik” e “other kinds of sacred music”, sem artigo, tornando assim ainda mais evidente o distanciamento entre o canto gregoriano e o resto da música, ainda que identificada como “sacrmelhora”. Este distaque, semântico e conceptual ao mesmo tempo, faz sim com que a definição de “canto próprio” aponte o canto gregoriano não como um repertório entre tantos, mas algo diferente de todos os outros repertórios possíveis, tornando-o justamente o “canto próprio da liturgia romana”. Poderemos dizer O canto da Igreja, o canto por excelência e por antonomásia da Igreja e da sua liturgia. Seria, de facto, sobremanira redutor considerar o canto gregoriano apenas como um elemento musical dentro da liturgia. A linguagem sonora, por assim dizer a música, dá corpo ao gregoriano, mas o canto gregoriano não é apenas música, é algo mais: é a forma musical da liturgia e, consequentemente, é ele próprio liturgia. É liturgia no sentido mais elevado do termo, liturgia em canto, liturgia que se faz canto, canto que se faz liturgia; não música dentro de um contexto litúrgico, mas liturgia pura e simples que, pela sua própria natureza, nasce “com” e “por meio” do canto e só daquele canto concreto que é o canto gregoriano. Precisamente porque a forma musical da liturgia, como tudo o que diz respeito à liturgia, acaba por ser uma obra de fé e de arte que transcende as fronteiras do tempo e os condicionamentos das culturas, ao contrário de outros repertórios, e por isso mesmo não pode considerar-se um repertório entre tantos repertórios. Ou seja, trata-se de um corpus musical que ultrapassa as fronteiras históricas para se tornar, em certo sentido, meta-histórico. Se, na verdade, o chamado “fundo autêntico” do gregoriano nasce entre os séculos IV e VIII, enxertando-se sobre material musical dos três primeiros séculos do cristianismo, também é verdade que cada celebração acrescentada ao calendário litúrgico foi acompanhada de composições que poderiam ser emprestadas de outras celebrações, mas que, quando compostas ex-novo, vinham confeccionadas respeitando, se bem que por vezes com resultados desiguais, as características composicionais próprias do canto gregoriano; e isto aconteceu até meados do século passado [9]. Uma operação que talvez nos pareça estranha e possa ser acusada de academicismo, mas que indica a vontade de nos atermos a um modelo muito específico, a um determinado "som", a uma “música própria”. Inserido nos livros litúrgicos oficiais, o gregoriano torna-se não mais a expressão musical de um determinado período histórico, mas sim um canto da Igreja; assim acontece, por exemplo, com todo o material eucológico que, embora atribuível à intervenção de um autor determinado, a partir do momento em que se funde no Missal, torna-se liturgia da Igreja. Em segundo lugar, trata-se de um corpus musical que atravessa fronteiras culturais para se tornar metacultural. A sua evolução músico-modal baseia-se em alguns sons e intervalos que pertencem a todas as culturas do Mediterrâneo e do Médio Oriente, utilizados por estas culturas quando querem trazer para a dimensão do sagrado uma determinada expressão musical [10]. Aqui reside a verdadeira raiz da música sacra. São elementos ancestrais que tocam particulares cordas de ressonâncias espirituais e emocionais e que encontramos no nosso “subconsciente” musical e religioso; ignorar ou pior negar esta realidade significaria negar o evidente. Não se trata, portanto, apenas de textos sagrados revestidos de qualquer estrutura melódica, mas de textos tornados musicalmente “sacros” por meio de particulares sons e intervalos, utilizados de modo exclusivo e capazes de evocar um mundo musicalmente “outro” que não o quotidiano. O canto gregoriano pertence a este género de música; nele e por meio dele nasceu e construiu-se a liturgia da Igreja.

[8] Aqui “género” deve ser entendido em sentido geral e não estritamente técnico-musical tendo em base critérios formais e estilísticos. Também neste caso a terminologia utilizada deve-se a Tra le sollecitudini. Sobre os géneros musicais na liturgia, ver JOSEPH GELINEAU, Canto e musica nel culto cristiano, LDC Torino 1963, pp 183ss., ao qual fazem referência todos os estudos subsequentes.

[9] Como prescrevia ainda a encíclica Musicae Sacrae Disciplina (1955): para as festas recentemente introduzidas, novas melodias deveriam ser compostas "por mestres verdadeiramente competentes, de modo que se observem fielmente as leis próprias do verdadeiro canto gregoriano, e as novas composições porfiem, em valor e pureza, com as antigas.

[10] Cfr. em particular as obras de JACQUES VIRET: Id., Le chant gregorien, Paris 2012, pp 15ss; Id., Le Chant grégorien, musique de la parole sacrée, Lausanne 1986; Id., La modalité grégorienne: un language pour quel message? Lyon, 1987. Viret mete em evidência não tanto as raízes hebraicas do canto gregoriano, mas sobretudo aquelas ligadas à oratória clássica e sobretudo aquelas comuns ao substrato mais antigo das populações europeias e da bacia mediterrânica, ligadas à tradição oral (e consequentemente à memorização textual) e a uma certa música primordial que atravessa todas as grandes sociedades do passado, sugerindo também uma interpretação da monodia gregoriana muito vizinha dos modelos orientais. Trata-se de um ramo da etnologia e da antropologia da música que deveria ser profundamente investigado. Ver também MAURICE EMMANUEL (ed), L'Histoire de la langue musicale : complété d'un aperçu d'éthnomusicologie par Jacques Viret. Tome 1, antiquité - moyen âge, Paris, Henry Laurens ed., 1981.

O que o Vaticano II afirmou, portanto, longe de ser uma “exaltação romântica” [11] é a escolha preferencial da Igreja. Uma escolha pastoral ponderada, exclusiva, unívoca, que exige uma adesão inteligente e construtiva. Uma escolha que, no que diz respeito a outras disciplinas artísticas como a arquitectura, a pintura, a escultura, a Igreja nunca fez, precisamente porque expressões artísticas não tão intimamente ligadas à liturgia (como o está o canto gregoriano) mas consideradas justamente elementos acessórios e secundários e, por isto, passíveis de estarem também ligadas ao passar do tempo e à mudança de gostos. Com o canto gregoriano não se trata de gosto, pessoal ou comunitário, mas do que é constitutivo, musicalmente falando, da oração litúrgica da Igreja - que nasce sempre como oração cantada - e, consequentemente, da própria Igreja, como reiterado pelo adágio “lex orandi statuat lex credendi” [12]. Em última análise, o canto gregoriano é a única expressão musical que resume em si totalmente e no máximo grau aquela característica principal e exclusiva da música sacra expressa no n.º 112 da Sacrosanctum Concilium: “A música sacra será, por isso, tanto mais santa quanto mais intimamente unida estiver à acção litúrgica”.

[11] Esta e outras expressões semelhantes foram formuladas numa conferência que pode muito bem ser considerada precursora de uma interpretação diferente do ditame conciliar e que conduziu efectivamente ao redimensionamento do canto gregoriano, considerado um entre outros repertórios históricos. Cfr. GINO STEFANI, “Friburgo: Prima settimana mondiale della nuova musica sacra”, in Rivista Liturgica, ano 1965, n°4, pp.492-498. A visão do conhecido semiólogo musical Gino Stefani (1929-2019), ex-jesuíta, cujo pensamento antropocêntrico e uma semiologia da música “funcional aos ritos” encontra em “L'espressione vocale e musicale nella liturgia", Torino-Leumann, LDC 1967, o seu manifesto, condicionou não pouco os debates e as práticas subsequentes com uma evolução descendente da prática musical italiana na liturgia.

[12] É o axioma cunhado com toda a probabilidade por Próspero da Aquitânia (†455) e que encontramos codificado no Indiculus de gratia, por ele compilado sob o pontificado de Leão Magno: “ut legem credendi lex statuat supplicandi” cuja tradução é “a fim que a lei da oração estabeleça a lei da fé”. Sobre a história, o significado e o alcance deste axioma teológico, cfr. CESARE GIRAUDO, In unum corpus. Trattato mistagogico sull’eucaristia, San Paolo, Cinisello Balsamo 2001, pp. 22-32.

Se esta é a condição do canto gregoriano que a Igreja oficialmente lhe reconhece, é claro que pô-lo ao mesmo nível doutros tipos de repertório musical é uma operação culturalmente insustentável e eclesialmente impossível, visto que a própria Igreja, como me parece haver evidenciado, com o termo “canto próprio” quis reconhecer ao gregoriano um estatuto particular e exclusivo, metendo no mesmo plano a liturgia nos seus conteúdos textuais com o seu revestimento musical, composto para estender da melhor forma no tempo e no espaço precisamente aquele determinado conteúdo e permitir assim à liturgia a sua máxima eficácia possível em ordem aos fins a que ela própria se propõe e para os quais existe: a glória de Deus e a santificação dos fiéis (SC 112).

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Sequência portuguesa "Terra, exulta de alegria"

Nota prévia: para a correcta interpretação do canto gregoriano, recomendam-se os cursos com o maestro Alberto Turco.

É particularmente feliz o Missal de língua portuguesa na tradução da sequência para a Solenidade dos Santíssimos Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, mais conhecida por Corpo de Deus:

Terra, exulta de alegria,
Louva o teu pastor e guia,
Com teus hinos, tua voz.

Quanto possas tanto ouses,
Em louvá-l’O não repouses:
Sempre excede o teu louvor.

Hoje a Igreja te convida:
O pão vivo que dá vida
Vem com ela celebrar.

Este pão – que o mundo creia –
Por Jesus na santa Ceia
Foi entregue aos que escolheu.

Eis o pão que os Anjos comem
Transformado em pão do homem;
Só os filhos o consomem:
Não será lançado aos cães.

Em sinais prefigurado,
Por Abraão imolado,
No cordeiro aos pais foi dado,
No deserto foi maná.

Bom pastor, pão da verdade,
Tende de nós piedade,
Conservai-nos na unidade,
Extingui nossa orfandade
E conduzi-nos ao Pai.

Aos mortais dando comida,
Dais também o pão da vida:
Que a família assim nutrida
Seja um dia reunida
Aos convivas lá do Céu.


Não apenas traduz o sentido do original latino como também obedece à mesma estrutura métrica e estrófica, podendo portanto cantar-se com a exacta melodia gregoriana Lauda Sion salvatorem...




Foi o que se fez na seguinte partitura, que fica livre para descarga (PDF):

Curiosamente a versão latina é bem mais longa, tendo 24 estrofes em vez destas 7, o que explica a nota do Leccionário, certamente traduzida de uma edição vaticana:

Esta sequência é facultativa e pode dizer-se na íntegra ou em forma mais breve, isto é, desde as palavras: Eis o pão...

Eis aqui a mesma nota no Ordo cantus Missae (1988) para a forma ordinária do rito romano:

Na qual já agora pode ler-se que a sequência deve ser lida após ("post") a Alleluia. Na verdade, isto aplica-se a todas as sequências no rito romano (cfr. ponto 8 da secção II das praenotanda do mesmo Ordo), uma vez que na sua origem eram tropos acrescentados ao fim (do verso) da Aleluia.


Saiba mais sobre os cânticos do Corpus Christi.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Instrução De Musica Sacra de 1958


Pode ser acessado, numa tradução para Língua Portuguesa, aqui. Em Latim, na Acta Apostolicae Sedis 50, de 1958 (AAS 50 1958), às páginas 630 a 663, como está indicado no texto abaixo. Há também, em linha, uma tradução em Língua Inglesa.  O ficheiro em Língua Portuguesa foi disponibilizado pelo Apostolado Missa Gregoriana; vede o Twitter deles. 

"Pouco antes de sua piedosa morte, o Papa Pio XII, já benemérito pelas notáveis inovações litúrgicas, aprovou "de modo especial" esta Instructio de Musica Sacra et Sacra Liturgia ad mentem Litterarum Encyclicarum Pii Papae XII "Musicae Sacrae Disciplina" et "Mediator Dei", publicada na Acta Apostolicae Sedis, nº 12-13, de 19-22 de setembro de 1958, pp. 630-663. A extraordinária importância e o grande valor pastoral do documento pedem que seja publicado integralmente neste fascículo. A tradução que aqui damos foi feita pela Abadia Nossa Senhora das Graças especialmente para O Diário, de Belo Horizonte. O texto foi cuidadosamente revisto e cotejado com o original. Agradecemos à Sagrada Congregação dos Ritos tão preciosas instruções e congratulamo-nos com todos os nossos leitores pelo documento. " Transcrito da página 4 do referido ficheiro em Língua Portuguesa. 

domingo, 20 de dezembro de 2015

As Respostas Polifónicas do Primeiro Grau - Introdução à Polifonia da Renascença

Hoje introduzir-nos-emos à Polifonia do Renascimento, género musical que éconsiderado pelo Magistério como sendo o mais sacro para a Liturgia Latina, depois - claro está - do Canto Gregoriano. Mas por onde começaremos? Por onde nos indica, precisamente, o Magistério, que é a via mais simples e segura.

Diz-nos a instrução Musicam Sacram de 5 de Março de 1967, publicada pela Sagrada Congregação dos Ritos e aprovada pelo Papa Paulo VI durante o Concílio Vaticano II, que na Missa há três graus de participação activa relativamente ao uso da música. O primeiro grau inclui as secções mais importantes da Missa e que deverão ser cantadas com prioridade. No canto do segundo grau apenas devem ser investidos esforços se o primeiro grau estiver satisfeito, e o mesmo sucede para o terceiro grau em relação ao segundo (excepto excepções excepcionais).

Já várias vezes disse isto em relação ao Canto Gregoriano: os tons e as respostas do primeiro grau são muito simples, curtas, sempre iguais e repetem-se ao longo duma mesma cerimónia; já os cânticos do segundo grau (ordinarium missae) exigem relativamente maior dificuldade por serem mais longos e ornados, mas o texto, permanecendo igual ao longo do ano litúrgico, é passível de manter-se com uma mesma melodia enquanto durar um tempo litúrgico, e variar como variam as côres dos paramentos; finalmente, o terceiro grau (proprium missae) varia todos os dias e é extremado na ornamentação.

O mesmo podemos dizer da Polifonia do Renascimento. Para os poucos córos litúrgicos que podem aventurar-se no reportório polifónico, não faz sentido querer preparar um motete para o Domingo de Ramos, que só será cantado uma vez no ano, quando nunca se cantou um Kyrie ou um Agnus Dei; e não faz sentido querer preparar um Credo quando não se canta um simples Amen.

Quais são então as orações do primeiro grau? Enumera-as o referido documento conciliar:
«29. Pertencem ao primeiro grau:
a) nos ritos de entrada:
- a saudação do sacerdote com a resposta do povo;
- a oração;
b) na liturgia da Palavra:
- as aclamações ao Evangelho;
c) na liturgia eucarística:
- a oração sobre as oblatas,
- o prefácio com o respectivo diálogo e o "Sanctus",
- a doxologia final do cânone,
- a oração do Senhor - Pai nosso - com a sua admonição e embolismo,
- o "Pax Domini",
- a oração depois da comunhão,
- as fórmulas de despedida.»

Retirando daqui o que só pode ser cantado pelo Celebrante (e obviamente não pode ser cantado polifonicamente), assim como o Sanctus (cujo nível de dificuldade na práctica pertence ao segundo grau), ficamos com as respostas polifónicas do primeiro grau:
  • Amen, que se canta no fim das orações colecta, sobre as oblatas, depois da comunhão, etc.
  • Et cum spiritu tuo ( = E com o teu espírito. ), que se canta para abençoar o celebrante em vários momentos importantes da Missa tais como antes do Evangelho, antes da consagração, etc.
  • Gloria tibi Domine ( = Glória a Ti, Senhor ) que é a resposta dada imediatamente antes da proclamação do Evangelho
  • Et cum spiritu tuo ... Habemus ad Dominum ( = Temos [os corações] no Senhor. ) e Dignum et justum est ( = É digno e justo [dar graças a Deus] ), do diálogo antes do prefácio da oração eucarística.
  • Sed libera nos a malo ( = Mas livra-nos do mal ), a última e única frase do Pai-Nosso que tradicionalmente é respondida pelo pôvo.
Muito bem. E onde se encontra este reportório? Quais as versões polifónicas da Renascença para estes textos?

[Actualização: a técnica do Fabordão]

Eu, sendo português, sou da opinião que devemos preferir sempre que possível as composições feitas em Portugal e/ou por autores Portugueses no Estrangeiro, pois essas são as que mais nos informam sobre a nossa própria tradição religiosa e litúrgica: quais os tempos e as festas com mais devoção, quais os textos escolhidos localmente para cada oração, qual o tratamento musical dado a cada texto, qual o número de vozes mais frequentemente escolhido, etc.. Desde a Reconquista aos muçulmanos que o reportório sacro português sempre sofreu influências doutros países, mas soube também criar uma identidade própria, e o vasto reportório polifónico de altíssima qualidade que chegou até nós é disso mesmo prova.

Para os nossos leitores do Brasil, creio que o mesmo raciocínio é de aplicar, uma vez que nesta época se estava dando a primeira missionação do território, o que no plano musical consistiu inicialmente na importação do reportório musical sacro praticado na Europa, sobretudo em Portugal. Existem, aliás, alguns códices antigos no Brasil que testemunham este facto, e muitos outros por estudar, que certamente mostrarão composições dêste período criadas originalmente no Brasil, mas para já não conheço nenhuma. Mas saíndo do Renascimento, e entrando no século XVII e seguintes, aparecem muitas composições originais de Brasileiros, ora com forte influência das obras renascentistas anteriores, ora da música que entretanto evoluíra na Europa, ora apresentando aspectos verdadeiramente originais. Para mais informações, não perder a História da Música Brasileira do Maestro Ricardo Canji.

Quanto às edições a usar, sou da opinião que devemos evitar as transcrições para a notação musical moderna. Embora muito difundida, esta notação não é a mais adequada para a música do Renascimento, principalmente porque a escrita dos compassos pode induzir em erro o cantor, habituado a acentuar as primeiras notas de cada compasso. Para além disso, as notas são relativamente pequenas, o que obriga a que todos carreguem papel durante o canto, e a colocação do texto é sempre uma opção do editor, por vezes questionável. Também resulta numa escrita menos económica uma vez que os silêncios das vozes obrigam a grandes vazios nas pautas quando estas são organizadas em sistemas. Não obstante, estas transcrições não deixam de ser muito úteis, por exemplo, para tanger o órgão.

Pelo contrário, para o canto, muito mais apropriada é a notação musical usada na Alta Idade Média e no Renascimento, a chamada notação mensural branca: mensural porque, contrariamente ao canto gregoriano, em que cada nota poderia ter um valor próprio em função do texto, na notação polifónica cada nota tem um valor "medido", ou seja convencionado numa relação aritmética simples com a unidade de tempo definida pela regência do maestro e aplicável a todas as diferentes vozes do agrupamento; e branca, porque, contrariamente aos neumas do canto gregoriano, que são todos preenchidos com tinta, os neumas da escrita polifónica não são preenchidos (na maioria dos casos), sendo só desenhado o seu contorno, com o objectivo de não causar borrões nem de a tinta passar para o verso do fólio (o outro lado da página).

Esta notação é superior para a escrita e interpretação da polifonia do Renascimento, por várias razões. Desde logo porque é a original, aquela na qual o compositor pensou a obra. Também, à semelhança dos códices gregorianos, apresenta as letras maiúsculas iniciais ricamente ornadas com motivos piedosos e musicais, que alegram o cantor, bem como o custos (guardião) no final de cada pauta, que o recorda de qual a nota a cantar de seguida. Depois, não mostra as vozes em sistema, mas cada uma no canto do campo visual quando se tem o livro aberto:
  • superius / cantus no canto superior esquerdo, isto é na metade superior da página esquerda
  • [contratenor] altus no canto sup. dt.º, i.e. na met. sup. da pág. dt.ª
  • tenor no canto inf. esq.º, i.e. na met. inf. da pág. esq.ª
  • e [contratenor] bassus no canto inf. dt.º, i.e. na met. inf da pág. esqª
Assim separadas as vozes, são óbvias várias vantagens:
  • A notação polifónica aproxima-se do canto gregoriano, o que faz o cantor descobrir na sua própria melodia o ritmo que dela emana, e não o do compasso.
  • Os silêncios ocupam pouco espaço, e as notas estão todas encostadinhas, economizando papel.
  • As notas são maiores, o que facilita a leitura à distância e dá ao cantor um incentivo difícil de explicar por palavras (maior audácia?).
  • Permite que todos cantem pela mesma partitura na estante / facistol, não havendo ruídos do manuseamento do papel durante a liturgia, nem preocupação se estamos na página certa ou não, nem de distribuir folhas nos ensaios e liturgias.
  • A partitura única, por sua vez, obriga os cantores a estarem próximos, com boa postura, a ouvirem-se e a apoiarem-se mutuamente nas intensidades do som, "como as pedras duma catedral" (fundamental).
Onde obter, então, estas partituras? Hoje apontarei um recurso valiosíssimo: a Base de Dados da Música Antiga Portuguesa, mais conhecida por Portuguese Early Music Database (pemdatabase.eu), da responsabilidade do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É de registo gratuito e permite consultar várias centenas de páginas de manuscritos antigos de música sacra, Canto Gregoriano e Polifonia do Renascimento, em fac-simile. Permite pesquisas dirigidas por códice, localização geográfica, século, tipologia litúrgica, compositor, etc.. Só não permite a descarga directa das imagens nem a sua reprodução pública sem autorização prévia.

Para o nosso caso, interessam-nos as respostas (responses) que se encontram num manuscrito do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra de meados do século XVI. Nos seus fólios 018v-019r podemos comtemplar umas belíssimas respostas polifónicas do 1º grau em latim. (Na base-de-dados existem outras 2 versões musicais para os mesmos textos: uma que tem a mesma melodia mas a partitura encontra-se inacabada, e uma outra também inacabada e com melodia diversa)

Como interpretar, então, esta notação? Num postal futuro abordaremos os aspectos mais específicos desta notação musical, mas para já ficam dois princípios familiares à notação quadrada do canto gregoriano:

Clave de C: a linha que passa entre os dois quadrados assinala a corda C.
Clave de F: a linha que atravessa o quadrado do lado esquerdo e passa pelo meio dos losangos do lado direito assinala a corda F.

Continua...

sábado, 15 de agosto de 2015

Crítica a concerto de música sacra

Ontem à noite fui ao concerto do Côro de Santa Cecília de Florença, sob a direcção do maestro Alessandro Benassai, na Igreja Matriz de Portimão. A minha opinião:

NOTAS POSITIVAS:
Todo o reportório interpretado foi sacro, tendo sido escolhidos textos cristãos, litúrgicos ou devocionais, em várias línguas e de várias tradições (judaica, cristianismo oriental e ocidental) com respectiva tradução portuguesa num livrete para os ouvintes acompanharem. (Também  a única peça exclusivamente instrumental foi inspirada num texto sacro.)
O concerto foi enriquecido por comentários de uma senhora que muito oportunamente apresentou o côro e as peças, tanto no início como a meio do concerto.
Todas as composições foram originais, da autoria do maestro, num estilo certamente inspirado na homofonia dos ritos orientais e (menos) no canto-chão, permitindo a boa inteligibilidade do texto (escanção métrica à italiana), e com um nível de dificuldade adequado à capacidade do côro, o qual teve a felicidade de cantar tudo de cór.
Na indumentária, os músicos apresentaram-se com decôro e aprumo, como se
de uma formação profissional se tratasse.

NOTAS NEGATIVAS:
Perdeu-se uma excelente oportunidade para dar a conhecer ao público de Portimão os géneros mais perfeitos da música sacra cristã do Ocidente (o canto gregoriano e a polifonia do Renascimento), os quais não são oferecidos habitualmente na Liturgia e por isso permanecem largamente desconhecidos dos Algarvios.
Apesar de todas as peças serem homorrítmicas e portanto relativamente fáceis, a técnica do côro apresentou imperfeições nas sincronização das vozes, e por vezes na afinação.
Também no plano instrumental, foi desprezado o valiosíssimo órgão de tubos do final do século XIX,  existente no côro-alto da Igreja, da construção do organeiro inglês Henry Fincham.
Os músicos colocaram-se no presbitério do templo e a comentadora no ambão, contrariamente às recomendações da Cúria Romana, apropriando-se do espaço sagrado e virando as costas à imagem da Virgem Maria.

No global, dou os parabéns à organização e aos músicos, que souberam oferecer ao pôvo de Portimão um concerto de música sacra decente e gratuito, e ao público, que soube manter-se concentrado e aplaudir generosa e atempadamente!

Francisco Vilaça Lopes

domingo, 29 de dezembro de 2013

Os Três Graus da Participação Activa

O Reverendo Padre da minha Paróquia pediu-me que eu colaborasse num curso de música sacra por ele organizado para um grupo de paroquianos interessados, tendo em vista a formação de um côro mais bem preparado e a solenização da Liturgia. Encarregou-me de leccionar uma cadeira de canto gregoriano, sendo as matérias de história da música sacra católica, ensinamentos do magistério da Igreja sobre a música sacra, solfejo, técnica vocal, e polifonia, entregues a outros colaboradores.

Na programação das aulas, ocorreram-me os três "graus de participação" propostos pela Sagrada Constituição dos Ritos, em 1967, para a introdução do canto sacro na Santa Missa. Leiamos, então, uns poucos parágrafos da instrução Musicam Sacram, que certamente nos mereceria uma atenção mais integral:
7. Entre a forma solene e mais plena das celebrações litúrgicas (em que se canta realmente tudo quanto exige canto) e a forma mais simples em que não se emprega o canto, pode haver vários graus, conforme o canto tenha maior ou menor lugar. Todavia, na escolha das partes que se devem cantar, começar-se-á por aquelas que por sua natureza são de importância maior: em primeiro lugar, por aquelas que devem ser cantadas pelo sacerdote ou pelos ministros, com resposta do povo; ou pelo sacerdote juntamente com o povo; juntar-se-ão depois, pouco a pouco, as que são próprias só do povo ou só do grupo de cantores. 
(...) 
III. O canto na celebração da missa
27. Para a celebração da Eucaristia com o povo, sobretudo nos domingos e festas, há-de preferir-se na medida do possível a forma de missa cantada, até várias vezes no mesmo dia. 
28. Conserve-se a distinção entre missa solene, missa cantada e missa rezada estabelecida na Instrução de 1958 (n. 3), segundo as leis litúrgicas tradicionais e em vigor. No entanto, para a missa cantada e por razões pastorais propõem-se aqui vários graus de participação para que se torne mais fácil, conforme as possibilidades de cada assembleia, melhorar a celebração da missa por meio do canto. O uso destes graus de participação regular-se-á da maneira seguinte: o primeiro grau pode utilizar-se só; o segundo e o terceiro não serão empregados, íntegra ou parcialmente, senão unidos com o primeiro grau. Deste modo, os fiéis serão sempre orientados para uma plena participação no canto. 
29. Pertencem ao primeiro grau:
a) nos ritos de entrada:
- a saudação do sacerdote com a resposta do povo;
- a oração;
b) na liturgia da Palavra:
- as aclamações ao Evangelho;
c) na liturgia eucarística:
- a oração sobre as oblatas,
- o prefácio com o respectivo diálogo e o "Sanctus",
- a doxologia final do cânone,
- a oração do Senhor - Pai nosso - com a sua admonição e embolismo,
- o "Pax Domini",
- a oração depois da comunhão,
- as fórmulas de despedida.
30. Pertencem ao segundo grau:
a) "Kyrie", "Glória" e "Agnus Dei";
b) o Credo;
c) a Oração dos Fiéis.
31. Pertencem ao terceiro grau:
a) os cânticos processionais da entrada e comunhão;
b) o cântico depois da leitura ou Epístola;
c) o "Alleluia" antes do Evangelho;
d) o cântico do ofertório;
e) as leituras da Sagrada Escritura, a não ser que se julgue mais oportuno proclamá-las sem canto.
Note-se que por participação activa deve entender-se, não só a participação vocal dos ministros e do povo nas orações respectivas, mas também, e até primeiramente, aquela verdadeira participação activa, que é espiritual e se dá no coração de cada um: a primeira nunca dispensa a segunda; a segunda, serve-se da primeira, mas pode tão-bem dispensá-la, inclusive até ao extremo do absoluto silêncio.

Com efeito, pareceu-me muito conveniente esta sugestão do Magistério para programar semelhantes aulas como as que me foram pedidas, dividindo para tal o extenso e variado reportório do canto gregoriano em três partes, de crescente complexidade. O que se segue é o resultado dessa divisão, tendo algumas orações sido deslocadas para outro grau em razão da sua natureza musical, como adiante especifico. Este método, que ainda não passou do papel à práctica, parece-me, para já, o mais apropriado para a formação duma schola cantorum de raíz, pelo menos a nível duma paróquia. Por este motivo, partilho desde já os recursos que compus, e peço encarecidamente os vossos comentários.

No 1º grau de dificuldade, ou seja, para um côro principiante, proporia o estudo das seguintes peças:

a) nos Ritos Iniciais:
- a saudação do sacerdote com a resposta do povo
- o acto penitencial
- a oração colecta
b) na liturgia da Palavra:
- a 1ª leitura
- as aclamações da 1ª leitura
- a 2ª leitura
- a aclamação da 2ª leitura
- a leitura do Evangelho
- as aclamações ao Evangelho
- a oração dos fiéis
c) na liturgia eucarística:
- a oração sobre as oblatas;
- os diálogo e prefácio da O.E.;
- o cânone;
- a doxologia final do cânone;
- o Pater noster com admonição e embolismo;
- o Pax Domini e outras aclamações e diálogos, e respectivas orações do celebrante;
- a oração depois da comunhão;
- as fórmulas de despedida;

Ou seja, excluí o Sanctus, que no Kyrial Romano ou na polifonia assume formas bastante elaboradas, e reuni todas as orações entoadas em recto tono, mesmo que o seu canto não seja prioritário na maioria das celebrações (p.ex. Canon, Lectiones). No seu conjunto, cada uma destas orações tem 2 ou 3 versões diferentes, que se mantêm as mesmas em todas as Missas ao longo do ano litúrgico nas mais variadas localizações onde se reza pelo rito romano. E, embora a maioria dos textos se destine ao sacerdote celebrante (ou a outros ministros, leitores, et al.) e não ao povo, as respostas pertencem - essas sim - ao povo, e são practicamente as mesmas, sempre; um coro que as aprenda pode ajudar o resto da assembleia a cantá-las. E o facto de se começar pelas entoações simples, e não pelos tradicionais modos gregorianos (octoechos), tem ainda a vantagem de evitar uma sobrecarga cognitiva nos aprendizes, que poderão focar-se primeiramente:
  • na busca da melhor técnica vocal;
  • no discernimento da correcta afinação, mantida imperturbável ao longo da entoação rectilínea;
  • na descoberta e no entendimento da língua latina;
  • na boa dicção e pronúncia do texto;
  • na sincronia com os restantes membros do côro;
  • na descoberta da notação quadrada e suas particularidades, por oposição à notação moderna;
  • na detecção das principais unidades rítmicas, definidas pela pontuação e sintaxe do texto;
  • na acentuação do início ou fim das tais unidades rítmicas com os acidentes melódicos tradicionais;
  • na percepção dos principais intervalos melódicos (meio tom, tom inteiro, terceira menor, terceira maior, etc.);
  • na desintoxicação tonal e na aceitação do ambiente modal, mais propício que é ao recolhimento e oração;
  • no conhecimento de como as entoações da Missa formam um todo sólido, um esqueleto musical ao qual se apendem outros géneros musicais mais complexos (canto melismático, polifonia).
Para além disso, permite-me também a mim ganhar a experiência que não possuo para dirigir peças mais complexas. Deixo-vos, então, um manual (Dropbox, Scribd) em que reuni (com manifesto amadorismo) todas estas entoações, e que inclui, no final, os seguintes cantus varii propostos pelo Papa Paulo VI em 1974 a toda a Igreja de rito romano: O salutaris hostia, Adoro te devote, Tantum ergo sacramentum, Laudate Dominum, Parce Domine, Da pacem, Ubi caritas, Veni creator Spiritus, Regina cæli, Salve Regina, Ave maris stella, Magnificat, Tu es Petrus, e Te Deum.


Depois de bem sabido o 1º grau, proporia para o 2º o estudo das peças do Kyriale Romanum, as quais, embora preservando o mesmo texto ao longo do ano litúrgico, convém que se variem na música (mais ou menos como se mudam as côres dos paramentos):
  • Kyrie, incluindo algumas versões com tropo (fons bonitatis II, firmator sancte VIII ad lib., orbis factor XI);
  • Gloria in excelsis Deo;
  • Credo;
  • Sanctus;
  • Agnus Dei;
  • Ite missa est.
Estas peças vêm em grupos no Gradual Romano, de forma que se pode começar pelas mais simples (missas com n.º mais elevado) e ir crescendo na dificuldade. As peças do ordinário são úteis para o ensino dos modos gregorianos, que se poderá fazer nesta altura. Deixaria para o fim as antífonas da aspersão com água benta (Asperges me, Vidi aquam) e os oito tons do Gloria Patri da Missa (começando pelos VII e VIII modos, que se cantam nestas antífonas, respectivamente); estas peças exigem alguns conhecimentos de semiologia gregoriana, até aqui desconhecida, e que se revelará indispensável no 3º grau. Mas antes o PDF do Kyriale Romanum:



Finalmente, chegamos ao 3º grau: que inclui as peças do próprio de cada Missa:
  • Introitus
  • Graduale
  • Tractus
  • Alleluia
  • Sequentia
  • Offertorium
  • Communio
Estas peças, cujos texto e melodia variam practicamente todas as missas, são as mais belas do reportório gregoriano, mas também as mais difíceis. As peças mais fáceis são as sequências, com o seu estilo silábico. As restantes, semi-ornamentadas e melismáticas, exigem que se coordene tudo quanto se aprendeu até aqui, e se aprenda a modelação rítmica tão característica da música medieval. Para isso, encaminhamos o leitor interessado aos seguintes livros: Graduale Triplex, Offertoriale Triplex, Graduale Novum e Graduale Restitutum, que publicam as partituras a cantar em cada Missa; e para outros manuais, que ensinam a ler a notação arcaica.

Uma vez dominado este nível, resta cantar a polifonia do Renascimento, e voar!...

quarta-feira, 23 de março de 2011

Musicam Sacram (1967), pela Sagrada Congregação dos Ritos

No dia 5 de Março de 1967, a Sagrada
Congregação para os Ritos e o Concílio
Vaticano II publicaram a Instrução
Musicam Sacram, sobre a música na
sagrada Liturgia. Tradução não-oficial
para português a partir da oficial italiana.
Este documento foi promulgado antes da
publicação (e em larga medida, concepção)
do Missal de Paulo VI. Para uma leitura
leitura crítica deste documento para os dias
de hoje, por favor lede estes ensaios.
Proémio

1. A Música Sacra, no que respeita à renovação litúrgica, foi objecto de atento estudo no Concílio Vaticano II. Este esclareceu a sua função  nos divinos ofícios, promulgando princípios e leis sobre ela na Constituição sobre a Sagrada Liturgia [Sacrosanctum Concilium], onde lhe dedicou um capítulo inteiro.

2. As decisões do Concílio começaram já a ser postas em prática na renovação litúrgica recentemente iniciada. Mas as novas normas referentes à organização dos ritos sagrados e à participação activa dos fiéis levantaram problemas sobre a Música Sacra e sobre a sua função ministerial, que deverão resolver-se a fim de se conseguir uma melhor compreensão de alguns princípios da Constituição sobre a Sagrada Liturgia.

3. Por consequência, o Concílio, instituído pelo Sumo Pontífice para levar à práctica a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, examinou cuidadosamente estes problemas e redigiu a presente instrução. Não pretende esta reunir toda a legislação sobre Música Sacra, mas apenas estabelecer algumas normas principais, que parecem mais oportunas de momento; é como que a continuação e o complemento da Instrução anterior desta Sagrada Congregação - preparada por este mesmo Concilium - e publicada a 26 de Setembro de 1964 para regular correctamente a aplicação da Constituição sobre a Sagrada Liturgia.

4. É de esperar que pastores, músicos e fiéis acolham com bom espírito estas normas e as ponham em prática, de modo que todos à uma se esforcem por conseguir o verdadeiro fim da Música Sacra, "que é a glória de Deus e a sanctificação dos fiéis".[1]

a) Entende-se por Música Sacra aquela que, criada para o culto divino, possui as qualidades de santidade e de perfeição de forma.[2]

b) Com o nome de Música Sacra designam-se aqui: o canto gregoriano, a polifonia sagrada antiga e moderna nos seus vários géneros, a música  sagrada para órgão e outros instrumentos admitidos e o canto popular, litúrgico e religioso.[3]

I. Algumas normas gerais  

5. A acção litúrgica reveste-se de maior nobreza quando é celebrada com canto: cada um dos ministros desempenha a sua função própria e o povo participa nela.[4] Desta maneira, a oração toma uma forma mais penetrante; o Mistério da Sagrada Liturgia e o seu carácter hierárquico manifestam-se mais claramente; mediante  a união das vozes alcança-se mais profunda união dos corações; pela beleza do sagrado, mais facilmente o espírito se eleva ao invisível; finalmente, toda a celebração prefigura com mais clareza a Liturgia santa da Nova Jerusalém. Os pastores de almas, portanto, hão-de esforçar-se  por conseguir esta forma de celebração. Também nas celebrações sem canto, mas realizadas com o povo, se conservará de maneira apropriada a distribuição de ministérios e funções que caracteriza as acções sagradas realizadas com canto; procurar-se-á, principalmente, que haja os ministros necessários e capazes, assim como se fomentará a participação activa do povo. A preparação práctica de cada celebração litúrgica far-se-á com espírito de colaboração entre todos os que nela hão-de intervir, sob a direcção do reitor da igreja, tanto no que se refere aos ritos, como ao seu aspecto pastoral e musical.

6. Uma organização autêntica da celebração litúrgica, para além da devida distribuição e desempenho das funções - em que "cada um, ministro ou simples fiel, ao desempenhar o seu ofício, fará tudo e só o que é da sua competência, segundo a natureza do rito e as leis litúrgicas"[5] requer ainda que se observem bem o sentido e a natureza própria de cada parte e de cada canto. Para se conseguir isto, é preciso antes de mais que os textos que por si mesmos devem ser cantados, se cantem efectivamente, empregando o género e a forma pedidos pelo seu próprio carácter.

7. Entre a forma solene e mais plena das celebrações litúrgicas (em que se canta realmente tudo quanto exige canto) e a forma mais simples em que não se emprega o canto, pode haver vários graus, conforme o canto tenha maior ou menor lugar. Todavia, na escolha das partes que se devem cantar, começar-se-á por aquelas que por sua natureza são de importância maior: em primeiro lugar, por aquelas que devem ser cantadas pelo sacerdote ou pelos ministros, com resposta do povo; ou pelo sacerdote juntamente com o povo; juntar-se-ão depois, pouco a pouco, as que são próprias só do povo ou só do grupo de
cantores.

8. Sempre que possa fazer-se uma selecção de pessoas para a acção litúrgica que se celebra com canto, convém dar preferência àquelas que são mais competentes musicalmente, sobretudo se se trata de acções litúrgicas mais solenes ou daquelas que exigem um canto mais difícil ou são transmitidas pela rádio ou pela televisão.[6] Se não puder fazer-se esta selecção e o sacerdote ou ministro não tiverem voz para cantar bem, podem recitar sem canto, mas com voz alta e clara, uma ou outra parte mais difícil das que lhes correspondem. Mas não se faça isto só por comodidade do sacerdote ou do ministro.

9. Na selecção do género de Música Sacra, tanto para o grupo de cantores como o povo, ter-se-ão em conta as possibilidades dos que hão-de cantar. A Igreja não exclui das acções sagradas nenhum género de Música Sacra, contanto que corresponda ao seu espírito e à natureza de cada uma das suas partes [7] e não impeça a necessária participação activa do povo.[8]

10. A fim de que os fiéis participem activamente com mais gosto e maior fruto, convém variar oportunamente, na medida do possível, as formas de celebração e o grau de participação, conforme a solenidade do dia e da assembleia.

11. Tenha-se em conta que a verdadeira solenidade da acção litúrgica não depende de uma forma rebuscada do canto ou de um desenrolar magnificente das cerimónias, quanto daquela celebração digna e religiosa que tem em conta a integridade da própria acção litúrgica; quer dizer, a execução de todas as suas partes segundo a sua natureza própria. Uma forma mais rica de canto e um desenvolvimento mais solene das cerimónias decerto que são desejáveis onde haja meios para bem os realizar; mas tudo quanto possa contribuir para que se omita, se mude ou se realize indevidamente algum dos elementos da acção litúrgica é contrário à sua verdadeira solenidade.

12. Compete exclusivamente à Sé Apostólica estabelecer os grandes princípios gerais, que são como que o fundamento da Música Sacra, em conformidade com as normas tradicionais e especialmente com a Constituição sobre a Sagrada Liturgia. A regulamentação da Música Sacra pertence também, segundo os limites estabelecidos, às competentes assembleias territoriais de bispos legalmente constituídas, assim como ao bispo.[9]

II. Os actores da celebração litúrgica

13. As acções litúrgicas são celebrações da Igreja, isto é, do povo congregado e ordenado, sob a presidência do bispo ou de um presbítero.[10] Ocupam na acção litúrgica um lugar especial: o sacerdote e seus ministros por causa da Ordem Sagrada que receberam; por causa do seu ministério, os ajudantes, os leitores, os comentadores e os que fazem parte do grupo de cantores.[11]

14. O sacerdote preside à assembleia em representação de Cristo. As orações que canta ou pronuncia em voz alta, uma vez que são ditas em nome de todo o povo santo e de todos os que estão presentes,[12] devem ser escutadas religiosamente por todos.

15. Os fiéis cumprem a sua acção litúrgica mediante a participação plena, consciente e activa que a própria natureza da liturgia requer; esta participação é um direito e um dever para o povo cristão, em virtude do seu Baptismo.[13] Esta participação:

a) Deve ser antes de tudo interior; quer dizer que,  por meio dela, os fiéis se unem em espírito ao que pronunciam ou escutam e cooperam com a graça divina.[14]

b) Mas a participação deve ser também exterior; quer dizer que a participação interior deve expressar-se por meio de gestos e atitudes corporais, pelas respostas e pelo canto.[15]

Eduquem-se também os fiéis no sentido de se unirem interiormente ao que cantam os ministros ou o coro, de modo que elevem os seus espíritos para Deus, enquanto os escutam.

16. Nada mais festivo e mais desejável nas acções sagradas do que uma assembleia, que, toda inteira, expressa a sua fé e a sua piedade por meio do canto. Por conseguinte, a participação activa de todo o povo a expressar-se no canto, há-de promover-se diligentemente da seguinte maneira:

a) inclua em primeiro lugar as aclamações, as respostas à saudação do celebrante e dos ministros e às orações litânicas; e ainda as antífonas e os salmos; os versículos intercalares ou refrão que se repete, assim como os hinos e os cânticos;[16]

b)  por meio de uma catequese e de uma pedagogia adaptadas, levar-se-á gradualmente o povo a participar cada vez mais nos cânticos que lhe pertencem, até alcançar a participação plena;

c)  no entanto, alguns cânticos do povo, sobretudo se os fiéis não estão ainda suficientemente instruídos ou se se empregam composições musicais a várias vozes, poderão confiar-se só ao coro, desde que não se exclua o povo das outras partes que lhe correspondem. Não deve aprovar-se a prática de confiar só ao grupo de cantores o canto de todo o Próprio e de todo o Ordinário, excluindo totalmente o povo da participação cantada.

17.  Observar-se-á também, na altura própria, um silêncio sagrado.[17] Por meio deste silêncio, os fiéis não se vêem reduzidos a assistir à acção litúrgica como espectadores mudos e estranhos, mas são associados intimamente ao Mistério que se celebra, graças àquela disposição interior que nasce da Palavra de Deus escutada, dos cânticos e das orações que se pronunciam e da união espiritual com o celebrante nas partes por ele ditas.

18.  Entre os fiéis, com cuidado especial, sejam formados no canto sagrado os membros das associações religiosas de leigos, de modo a que possam contribuir mais eficazmente para a conservação e promoção da participação do povo.[18] A formação de todo o povo no canto será desenvolvida séria e pacientemente ao mesmo tempo que a formação litúrgica, segundo a idade dos fiéis, a sua condição, o seu género de vida e o seu nível de cultura religiosa, começando logo nos primeiros anos de formação nas escolas elementares.[19]

19. O coro - ou "Capela musical", ou "Schola Cantorum" - merece uma atenção especial pelo ministério litúrgico que desempenha. A sua função, segundo as normas do Concílio relativas à renovação litúrgica, alcançou agora uma importância e um peso maiores. É a ele que compete assegurar a justa interpretação das partes que lhe pertencem conforme os distintos géneros de canto e promover a participação activa dos fiéis no canto. Por conseguinte:

a) Ter-se-á um Coro, ou "Capella", ou "Schola Cantorum", e dele se cuidará com diligência, sobretudo nas catedrais e outras igrejas maiores, nos Seminários e nas Casas de Estudo dos religiosos;

b) É igualmente oportuno estabelecer tais coros, mesmo modestos, nas igrejas pequenas.

20. As "Capelas musicais" existentes nas basílicas, catedrais, mosteiros e demais igrejas maiores que adquiriram grande renome através dos séculos conservando e cultivando um tesouro musical de valor incomparável, serão conservadas segundo as suas normas próprias e tradicionais, aprovadas pelo Ordinário do lugar, para tornar mais solenes as acções sagradas. Os mestres de capela e os reitores das igrejas cuidem, no entanto, de que o povo sempre se associe ao canto, ao menos nas peças fáceis que lhe pertencem.

21. Procure-se, sobretudo onde não haja possibilidades de formar ao menos um pequeno coro, que um ou dois cantores bem formados possam assegurar alguns cânticos mais simples com participação do povo e dirigir e aguentar o canto dos fiéis. Este cantor deve igualmente existir nas igrejas que podem contar com um coro, a fim de que nas ocasiões em que o coro não pode intervir se assegure alguma necessária solenidade e, portanto, o canto.

22. O grupo de cantores pode constar, conforme os costumes de cada país e as circunstâncias, quer de homens e crianças, quer só de homens ou só de crianças, quer de homens e mulheres, quer, onde seja de verdade conveniente, só de mulheres.

23. Os cantores, tendo em conta a disposição da igreja, situem-se de tal maneira que:

a) apareça claramente a sua função, a saber, que fazem parte da assembleia dos fiéis e realizam uma função peculiar;

b) a realização do seu ministério litúrgico se torne mais fácil;[20]

c) a cada um dos seus membros se torne mais possível a plena participação na missa quer dizer, a participação sacramental. Quando neste grupo houver mulheres, tal grupo deve ficar fora do presbitério.

24. Além da formação musical, dar-se-á aos membros do coro uma formação litúrgica e espiritual adaptadas de modo que, ao desempenhar perfeitamente a sua função litúrgica, não se limitem a dar maior beleza à acção sagrada e um excelente exemplo aos fiéis mas adquiram também eles próprios um verdadeiro fruto espiritual.

25. Para se conseguir mais facilmente esta formação, tanto técnica como espiritual, devem prestar a sua colaboração as associações de Música Sacra diocesana, nacionais e internacionais, sobretudo aquelas que foram aprovadas e repetidas vezes recomendadas pela Sé Apostólica.

26. O sacerdote, os ministros sagrados e os ajudantes, o leitor, os que pertencem ao coro e o comentador pronunciarão os textos que lhes dizem respeito de forma bem inteligível para que a resposta do povo, quando o rito o exige, resulte mais fácil e natural. Convém que o sacerdote e os ministros de qualquer grau unam a sua voz à de toda a assembleia dos fiéis nas partes que pertencem ao povo.[21]

III. O canto na celebração da missa

27. Para a celebração da Eucaristia com o povo, sobretudo nos Domingos e festas, há-de preferir-se na medida do possível a forma de missa cantada, até várias vezes no mesmo dia.

28. Conserve-se a distinção entre missa solene, missa cantada e missa rezada estabelecida na Instrução de 1958 (n. 3), segundo as leis litúrgicas tradicionais e em vigor. No entanto, para a missa cantada e por razões pastorais propõem-se aqui vários graus de participação para que se torne mais fácil, conforme as possibilidades de cada assembleia, melhorar a celebração da missa por meio do canto. O uso destes graus de participação regular-se-á da maneira seguinte: o primeiro grau pode utilizar-se só; o segundo e o terceiro não serão empregados, íntegra ou parcialmente, senão unidos com o primeiro grau. Deste modo, os fiéis serão sempre orientados para uma plena participação no canto.

29.  Pertencem ao primeiro grau:

a) nos ritos de entrada:
- a saudação do sacerdote com a resposta do povo;
- a oração;
b) na liturgia da Palavra:
- as aclamações ao Evangelho;
c) na liturgia eucarística:
- a oração sobre as oblatas,
- o prefácio com o respectivo diálogo e o "Sanctus",
- a doxologia final do cânone,
- a oração do Senhor - Pai nosso - com a sua admonição e embolismo,
- o "Pax Domini",
- a oração depois da comunhão,
- as fórmulas de despedida.

30. Pertencem ao segundo grau:
a) "Kyrie", "Glória" e "Agnus Dei";
b) o Credo;
c) a Oração dos Fiéis.

31. Pertencem ao terceiro grau:
a) os cânticos processionais da entrada e comunhão;
b) o cântico depois da leitura ou Epístola;
c)  o "Alleluia" antes do Evangelho;
d)  o cântico do ofertório;
e) as leituras da Sagrada Escritura, a não ser que se julgue mais oportuno proclamá-las sem canto.

32. A práctica legitimamente em vigor em alguns lugares e muitas vezes confirmada por indultos, de utilizar outros cânticos em lugar dos cânticos de entrada, ofertório e comunhão previstos pelo "Graduale Romanum", pode conservar-se  a juízo da Autoridade territorial competente, contanto que esses cânticos estejam de acordo com as partes da missa e com a festa ou tempo litúrgico. Essa mesma Autoridade territorial deve aprovar os textos desses cânticos.

33. Convém que a assembleia dos fiéis, na medida do possível, participe nos cânticos do próprio, sobretudo com respostas fáceis ou outras formas musicais adaptadas. Dentro do Próprio tem particular importância o cântico situado depois das leituras em forma de Gradual ou de Salmo responsorial. Por sua natureza é uma parte da liturgia da Palavra: por conseguinte, deve executar-se estando todos sentados e escutando; melhor ainda, quanto possível, tomando parte nele.

34. Os cânticos chamados "Ordinário da Missa", se forem cantados a vozes, podem ser interpretados pelo coro, segundo as normas habituais, "a Capella", ou acompanhamento de instrumentos, desde que o povo não fique totalmente excluído da participação no canto. Nos outros casos, as peças do Ordinário da missa podem distribuir-se entre o coro e o povo ou também entre duas partes do mesmo povo; assim se pode alternar seguindo os versículos ou outras divisões convenientes que distribuem o conjunto do texto por secções mais importantes. Mas nestes casos, ter-se-á em conta o seguinte: o símbolo é uma fórmula de profissão de fé e convém que o cantem todos ou que se cante de uma forma que permita uma conveniente participação dos fiéis; o Sanctus é uma aclamação conclusiva do prefácio e convém que habitualmente o cante a assembleia juntamente com o sacerdote; o Agnus Dei pode repetir-se quantas vezes for necessário, sobretudo na concelebração, quando acompanha a fracção; convém que o povo participe neste cântico ao menos com a invocação final.

35. O Pai nosso, é bom que o diga o povo juntamente com o sacerdote.[22] Se for cantado em latim, empreguem-se as melodias oficiais já existentes; mas se for cantado em língua vernácula, as melodias devem ser aprovadas pela autoridade territorial competente.

36. Nada impede que nas missas rezadas se cante alguma parte do próprio ou do ordinário. Mais ainda: algumas vezes pode executar-se também outro cântico diferente ao princípio, ao ofertório, à comunhão e no final da missa; mas não basta que este cântico seja "eucarístico"; é necessário que esteja de acordo com as partes da missa e com a festa ou tempo litúrgico.

IV. O canto no Ofício Divino

37. A celebração cantada do ofício divino é a que mais se adapta à natureza desta oração e indício de maior solenidade e de mais profunda união dos corações no louvor do Senhor; conforme o desejo expresso pela Constituição da Sagrada Liturgia,[23] recomenda-se encarecidamente esta forma aos que têm de cumprir o ofício divino no coro ou em comum. Convém que estes cantem ao menos alguma parte do ofício divino e antes de tudo as horas principais, isto é, Laudes e Vésperas, principalmente aos domingos e dias festivos. Também os demais clérigos que vivam em comum por razão dos seus estudos ou que
se reunam para fazer exercícios espirituais ou noutras reuniões, santifiquem oportunamente as suas assembleias mediante a celebração cantada de algumas partes do ofício divino.

38. Na celebração cantada do ofício divino, permanecendo o direito vigente para aqueles que têm obrigação de coro e também os indultos particulares, pode seguir-se o princípio de uma solenização progressiva, cantando antes de mais as partes que, por sua natureza, reclamem mais directamente o canto, como sejam os diálogos, os hinos, os versículos e os cânticos, recitando o restante.

39. Os fiéis devem ser convidados e formados com a necessária catequese a tomar parte em comum, aos Domingos e dias festivos, nalgumas partes do ofício divino, em especial as Vésperas, ou outras horas, segundo os costumes dos lugares e das assembleias. De maneira geral, conduzir-se-ão os fiéis, em especial os mais cultivados, graças a uma boa formação, a empregar na sua oração os salmos, interpretados no seu sentido cristão, de modo que pouco a pouco se sintam como que conduzidos pela mão a apreciar e a praticar mais a oração pública da Igreja.

40. Esta educação deve dar-se em particular aos membros dos Institutos que professam os conselhos evangélicos, para obterem riquezas mais abundantes e crescerem na sua vida espiritual. E convém que, para participarem mais plenamente na oração pública da Igreja, rezem e até - quanto possível - cantem as horas principais.

41. Conforme a Constituição da Sagrada Liturgia e a tradição secular do rito latino, os clérigos, na celebração do ofício divino em coro, conservem a língua latina.[24]  Mas, visto que a mesma Constituição sobre a Sagrada Liturgia " prevê o uso da língua vernácula no ofício divino, tanto por parte dos fiéis como das religiosas e dos membros de outros Institutos que professam os conselhos evangélicos e não são clérigos, procure-se preparar melodias que se utilizem no canto do ofício divino em língua vernácula.

V. A música sacra na celebração dos sacramentos e sacramentais, em acções especiais do ano litúrgico, nas sagradas celebrações da palavra de Deus e nos exercícios de piedade

42. Como declarou o Concílio, sempre que os ritos comportam, segundo a natureza particular de cada um, uma celebração comunitária, caracterizada pela presença e activa participação dos fiéis, esta deve preferir-se a uma celebração individual e como que privada desses ritos.[26] Deste princípio se deduz logicamente que se deve dar grande importância ao canto, já que põe em especial relevo este carácter "eclesial" da celebração.

43. Assim, na medida do possível, celebrar-se-ão com canto os sacramentos e sacramentais que têm particular importância na vida de toda a comunidade paroquial, como sejam as confirmações, as ordenações, os casamentos, as consagrações de igrejas ou altares, os funerais, etc.. Esta festividade dos ritos permitirá a sua maior eficácia pastoral. No entanto, cuidar-se-á especialmente que, a título de solenidade, não se introduza na celebração nada que seja puramente profano ou pouco compatível com o culto divino; isto se aplica em especial à celebração do matrimónio.

44. Igualmente se solenizarão com o canto aquelas celebrações a que a Liturgia concede especial relevo ao longo do Ano Litúrgico. Mas sobretudo, solenizem-se os sagrados ritos da Semana Santa; mediante a celebração do Mistério Pascal, os fiéis são conduzidos como que ao coração do Ano Litúrgico e da própria Liturgia.

45. Para a Liturgia dos sacramentos e sacramentais e para as demais celebrações particulares do Ano Litúrgico, hão-de preparar-se melodias apropriadas que permitam dar à celebração, mesmo em língua vernácula, solenidade maior. Seguir-se-ão para isso as orientações dadas pela autoridade competente e ter-se-ão em conta as possibilidades de cada assembleia.

46. A música sacra é também de grande eficácia para alimentar a piedade dos fiéis nas celebrações da Palavra de Deus e nos "pia et sacra exercitia". Nas celebrações da Palavra de Deus [27] tomar-se-á como modelo a Liturgia da Palavra da missa;[28] nos "pia et sacra exercitia" serão muito úteis, sobretudo, os salmos, as obras de música sacra do tesouro antigo e moderno, os cânticos religiosos populares, assim como o toque de órgão e de outros instrumentos apropriados. Nestes mesmos "pia et sacra exercitia" e principalmente nas celebrações da Palavra poderão muito bem admitir-se certas obras musicais que já não encontram lugar na Liturgia, mas que podem, entretanto, desenvolver o espírito religioso e ajudar à meditação do Mistério Sagrado.[29]

VI. A língua a empregar nas acções litúrgicas celebradas com canto e a conservação do tesouro da música sacra  

47. Conforme a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, conservar-se-á o uso da  língua latina nos ritos latinos, salvo direito particular.[30] Mas como o "uso da língua vernácula é muito útil ao  povo em não poucas ocasiões",[31] "será da incumbência da competente autoridade eclesiástica territorial determinar se deve usar-se a língua vernácula e em que extensão; estas decisões têm de ser aceites, isto é, confirmadas pela Sé Apostólica".[32] Observando exactamente estas normas, empregar-se-á, pois, a forma de participação que melhor corresponda às possibilidades de cada assembleia. Os pastores de almas cuidarão de que, além da língua vernácula, os fiéis  sejam capazes também de recitar ou cantar juntos em latim as partes do Ordinário da missa que lhes pertencem.[33]

48. Onde já se introduziu o uso do vernáculo na celebração da missa, os Ordinários julgarão se é oportuno manter uma ou mais missas celebradas em latim - especialmente a missa cantada - em algumas igrejas, sobretudo nas grandes cidades, que reúnam suficiente número de fiéis de línguas diversas.

49. No que se refere ao uso da língua latina ou da vernácula nas sagradas celebrações dos Seminários observem-se as normas da Sagrada Congregação dos Seminários e Universidades sobre a formação litúrgica dos alunos. Os membros dos Institutos que professam os conselhos evangélicos observem nisto as normas das letras apostólicas "Sacrificium Laudis" de 15 de Agosto de 1966 e da instrução sobre a língua a usar pelos religiosos na celebração do ofício divino e da missa conventual ou comunitária, dada por esta Sagrada Congregação dos Ritos em 23 de Novembro de 1965.

50. Nas acções litúrgicas com canto que se celebram em latim:

 a) O canto gregoriano, como próprio da Liturgia romana, em igualdade de circunstâncias ocupará o primeiro lugar.[34] Empreguem-se oportunamente para isso as melodias que se encontram nas edições típicas.

b) "Convém preparar uma edição com melodias mais simples para uso das igrejas menores".[35]

c) As outras composições musicais escritas a uma ou várias vozes, sejam do tesouro musical tradicional ou novas, serão tratadas com honra, favorecidas e utilizadas conforme se julgue oportuno.[36]

51. Tendo em conta as condições locais, a utilidade pastoral dos fiéis e o carácter de cada língua, os pastores de almas julgarão se as peças do tesouro de Música Sacra compostas no passado para textos latinos, além da sua utilização nas acções litúrgicas celebradas em latim podem sem inconveniente ser utilizadas também naquelas que se realizam em vernáculo. Com efeito, nada impede que numa mesma celebração algumas peças se cantem em língua diferente.

52. Para conservar o tesouro da Música Sacra e promover devidamente novas criações, "dê-se grande importância nos Seminários, Noviciados e casas de estudo de religiosos de ambos os sexos, bem como noutros institutos e escolas católicas, à formação e prática musical", mas, sobretudo, nos Institutos Superiores especialmente destinados a isto.[37] Deve promover-se antes de mais o estudo e a prática do canto gregoriano, já que, pelas suas qualidades próprias, continua a ser uma base de grande valor para o cultivo da Música Sagrada.

53. As novas composições de Música Sagrada devem adequar-se plenamente aos princípios e às normas expostos acima. Por isso, "devem apresentar as características da verdadeira música sacra e não estar só ao alcance das maiores "Schola Cantorum", mas poder também ser cantadas pelos coros mais modestos e favorecer uma participação activa de toda a assembleia dos fiéis".[38] No que se refere ao tesouro musical tradicional, pôr-se-ão em relevo em primeiro lugar as obras que respondam às exigências da renovação litúrgica. Depois, os peritos especialmente competentes neste assunto estudarão cuidadosamente se outras peças podem adaptar-se a estas mesmas exigências. Quanto às composições que não respondam à natureza da Liturgia ou à celebração Pastoral da Acção Litúrgica serão oportunamente trasladadas para os "pia exercitia" e, melhor ainda, para as celebrações da Palavra de Deus.[39]

VII. A preparação de melodias para os textos elaborados em vernáculo

54. Ao estabelecer as traduções populares que hão-de ser musicadas - especialmente a tradução do saltério - os peritos cuidarão de assegurar bem a fidelidade ao texto latino com a aptidão para o canto do texto em língua vernácula. Respeitar-se-ão o carácter e as leis de cada língua; ter-se-ão em conta também os costumes e o carácter peculiar de cada povo: na preparação das novas melodias, os músicos hão-de ter muito presentes estes dados, juntamente com as leis da Música Sacra. A autoridade territorial competente cuidará, pois, de que na Comissão encarregada de elaborar as traduções populares, haja peritos nas disciplinas citadas, em língua latina, como em língua vernácula; a sua colaboração deve principiar logo nos começos do trabalho.

55. Pertencerá à autoridade territorial competente decidir se podem utilizar-se ainda determinados textos em língua vernácula procedentes de épocas anteriores, aos quais estejam ligadas melodias tradicionais, mesmo que apresentem algumas variantes em relação às traduções litúrgicas oficiais em vigor.

56. Entre as melodias que devem preparar-se para os textos em vernáculo têm uma especial importância aquelas que pertencem ao sacerdote e aos ministros, quer as executem sós, quer as cantem com a assembleia dos fiéis ou as dialoguem com ela. Ao elaborá-las, os músicos devem verificar se as melodias tradicionais da  língua latina, já utilizadas para o mesmo fim, podem sugerir soluções para executar estes mesmos textos em língua vernácula.

57. As novas melodias destinadas ao sacerdote e aos ministros devem ser aprovados pela autoridade territorial competente.[40]

58. As Conferências Episcopais interessadas cuidarão que haja uma tradução apenas para uma mesma língua, a ser utilizada nas diversas regiões onde se fala essa língua. Convém também que existam, na medida do possível, um ou vários tons comuns para as peças que dizem respeito ao sacerdote e aos ministros, assim como para as respostas e aclamações do povo: assim se facilitará a participação comum dos que falam um mesmo idioma.

59. Os músicos abordarão este novo trabalho com o desejo de continuar uma tradição que proporcionou à Igreja um verdadeiro tesouro para a celebração do culto divino. Examinarão as obras do passado, os seus géneros e as suas características, mas considerarão também com atenção as novas leis e as novas necessidades da liturgia: deste modo "as novas formas como que surgirão organicamente a partir das já existentes",[41] e as obras novas, de modo nenhum indignas das antigas obterão, por sua vez, o seu lugar no tesouro musical.

60. As novas melodias que se hão-de compor para os textos em língua vernácula, necessitam evidentemente da experiência para chegar a uma suficiente maturidade e perfeição. Não obstante, deve evitar-se que, sob pretexto de ensaiar, se façam nas igrejas coisas que desdigam da santidade do lugar, da dignidade da acção litúrgica e da piedade dos fiéis.

61. A adaptação da música nas celebrações, naquelas regiões que possuam tradição musical própria, sobretudo nos países de missão, exigirá dos peritos uma preparação especial:[42] trata-se, com efeito, de associar o sentido das realidades sagradas com o espírito, as tradições e o carácter simbólico de cada um destes povos. Os que se consagram a este trabalho devem conhecer suficientemente, tanto a Liturgia e a tradição musical da Igreja, como a língua, o canto popular e o carácter simbólico do povo para o qual trabalham.

VIII. A música sacra instrumental

62. Os instrumentos musicais podem ser de grande utilidade nas celebrações sagradas, quer acompanhem o canto, quer intervenham sós. "Tenha-se em grande apreço na Igreja latina o órgão de tubos, como instrumento musical tradicional e cujo som é capaz de dar às cerimónias do culto um esplendor extraordinário e elevar poderosamente o espírito para Deus e para as realidades celestiais." "Podem utilizar-se no culto divino outros instrumentos, segundo o parecer e com o consentimento da autoridade territorial competente, contanto que esses instrumentos estejam adaptados ou sejam adaptáveis ao uso sacro, não desdigam da dignidade do templo e favoreçam realmente a edificação dos fiéis".

63. No admitir de instrumentos e na sua utilização ter-se-ão em conta o carácter e os costumes de cada povo. Os instrumentos que, segundo o comum sentir e o uso normal, só são adequados para a música profana, serão excluídos de toda a acção litúrgica, assim como dos "pia et sacra exercitia".[44] Todo o instrumento admitido no culto se utilizará de forma que corresponda às exigências da acção litúrgica, sirva à beleza do culto e à edificação dos fiéis.

64. O emprego de instrumentos no acompanhamento dos cânticos pode ser bom para sustentar as vozes, facilitar a participação e tornar mais profunda a unidade da assembleia. Mas o som dos instrumentos jamais deve cobrir as vozes ou dificultar a compreensão do texto. Todo o instrumento se deve calar quando o sacerdote ou um ministro pronunciam em voz alta um texto que lhes pertença por sua função própria.

65. Nas missas cantadas ou rezadas pode utilizar-se o órgão, ou qualquer outro instrumento legitimamente admitido para acompanhar o canto do coro e do povo. Pode tocar-se em solo antes da chegada do sacerdote ao altar, ao ofertório, durante a comunhão e no final da missa. A mesma regra se pode aplicar, adaptando-a correctamente, nas demais acções sagradas.

66. O toque a solo destes instrumentos não é permitido durante o tempo do Advento e da Quaresma, durante o Tríduo Sagrado e nos ofícios ou missas de defuntos.

67. É muito para desejar que os organistas e demais instrumentistas não sejam apenas peritos no instrumento que lhes é confiado, mas conheçam e estejam intimamente penetrados pelo espírito da Liturgia para que, ao exercer o seu ofício, mesmo ao improvisar, enriqueçam a celebração segundo a verdadeira natureza de cada um aos seus elementos e favoreçam a participação dos fiéis.[45]

IX. As comissões erectas para desenvolvimento da música sacra68. As Comissões Diocesanas de Música Sacra trazem uma contribuição de grande valor para o progresso na diocese da música sacra de acordo com a pastoral litúrgica. Assim, pois, e na medida do possível, deverão existir em cada diocese; trabalharão, unindo os seus esforços aos da Comissão de Liturgia.
Frequentemente interessará inclusive que as duas comissões estejam reunidas numa só; neste caso será constituída por peritos em ambas as disciplinas; assim se facilitará o progresso desejado. Recomenda-se vivamente que onde pareça de maior utilidade várias dioceses de uma mesma região constituam uma comissão única, que possa realizar um plano de acção comum e agrupar as forças em ordem a um melhor resultado.

69. A Comissão de Liturgia que as Conferências Episcopais devem estabelecer para ser consultada conforme as necessidades,[46] velará também pela música sacra; por conseguinte, constará também de músicos peritos. Interessará que esta Comissão esteja em relação não só com as Comissões Diocesanas, como com as demais associações que se ocupem da música na mesma região e o mesmo se diz do Instituto de Pastoral Litúrgica, de que se fala no artigo 44 da Constituição.

O Sumo Pontífice Paulo VI aprovou a presente Instrução na audiência concedida ao Em.mo. Sr. Cardeal Arcádio Maria Larraona, Prefeito desta Sagrada Congregação, no dia 9 de Fevereiro de 1967, confirmou com a sua autoridade e mandou publicá-la, estabelecendo ao mesmo tempo que entraria em vigor no dia 14 de Maio de 1967, Domingo dePentecostes.   

Referências 
[1] Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 112.
[2] Cf. S. Pio X, Motu próprio Tra le sollecitudini, n. 2 (22. Nov. 1903): AAS 36 (1903-1904) 332.
[3] Cf. S. Congr. dos Ritos, Inst. Musica sacra et sacra Liturgia, n. 4 (3. Set. 1958).
[4] Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 113.
[5] Cf. Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 28.
[6] S. Congr. dos Ritos, Inst. Musica sacra et sacra Liturgia, n. 95 (3. Set. 1958).
[7] Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 116.
[8] Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 28.
[9] Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 22.
[10] Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, nn. 26 e 41-42; Const. Lumen gentium, n. 28.
[11] Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 29.
[12] Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 33.
[13] Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 14.
[14] Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 11.
[15] Cf. Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Conciliam, n. 30.
[16] Cf. Conc. Vat. U, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 30.
[17] Cf. Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 30.
[18] Cf. S. Congr. dos Ritos, Inst. Inter oecumenici, nn. 19 e 59.
[19] Cf. Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 19; S. Congr. dos Ritos, Inst. Musica sacra et sacra Liturgia, nn. 106-108 (3. de Set. 58).
[20] S. Congr. dos Ritos, Inst. Inter oecumenici, n. 97.
[21] Cf. ibid., n. 48 b.
[22] Cf. ibid., n. 48 g.
[23] Cf. Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 99. [24] Cf. Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 101, § 1; S. Congr. dos Ritos, Inst. Inter oecumenici, n. 85.
[25] Cf. Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 101, § 2 e 3.
[26] Cf. ibid., n. 27.
[27] Cf. S. Congr. dos Ritos, Inst. Inter oecumenici, nn. 37-39.
[28] Cf. ibid., n. 37.
[29] Cf. n. 53 desta Instrução.
[30] Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 36, § 1.
[31] Ibid., n. 36 § 2.
[32] Ibid., n. 36 § 3.
[33] Ibid., n. 54; S. Congr. dos Ritos, Inst. Inter oecumenici, n. 59.
[34] Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 116.
[35] Ibid.,n. 117.
[36] Cf. ibid., n. 116.
[37] Cf. ibid., n. 115.
[38] Cf. ibid., n. 121.
[39] Cf. n. 46 desta Instrução.
[40] S. Congr. dos Ritos, Inst. Inter oecumenici, n. 42.
[41] Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Conciliam, n. 23.
[42] Cf. ibid., n. 119.
[43] Ibid., n. 120.
[44] Cf. S. Congr. dos Ritos, Inst. Musica sacra et sacra Liturgia, n. 70 (3. de Set 58).
[45] Cf. nn. 24-25 desta Instrução.
[46] Cf. Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 44.

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