O Reverendo Padre da minha Paróquia pediu-me que eu colaborasse num curso de música sacra por ele organizado para um grupo de paroquianos interessados, tendo em vista a formação de um côro mais bem preparado e a solenização da Liturgia. Encarregou-me de leccionar uma cadeira de canto gregoriano, sendo as matérias de história da música sacra católica, ensinamentos do magistério da Igreja sobre a música sacra, solfejo, técnica vocal, e polifonia, entregues a outros colaboradores.
Na programação das aulas, ocorreram-me os três "graus de participação" propostos pela Sagrada Constituição dos Ritos, em 1967, para a introdução do canto sacro na Santa Missa. Leiamos, então, uns poucos parágrafos da instrução Musicam Sacram, que certamente nos mereceria uma atenção mais integral:
7. Entre a forma solene e mais plena das celebrações litúrgicas (em que se canta realmente tudo quanto exige canto) e a forma mais simples em que não se emprega o canto, pode haver vários graus, conforme o canto tenha maior ou menor lugar. Todavia, na escolha das partes que se devem cantar, começar-se-á por aquelas que por sua natureza são de importância maior: em primeiro lugar, por aquelas que devem ser cantadas pelo sacerdote ou pelos ministros, com resposta do povo; ou pelo sacerdote juntamente com o povo; juntar-se-ão depois, pouco a pouco, as que são próprias só do povo ou só do grupo de cantores.
(...)
III. O canto na celebração da missa
27. Para a celebração da Eucaristia com o povo, sobretudo nos domingos e festas, há-de preferir-se na medida do possível a forma de missa cantada, até várias vezes no mesmo dia.
28. Conserve-se a distinção entre missa solene, missa cantada e missa rezada estabelecida na Instrução de 1958 (n. 3), segundo as leis litúrgicas tradicionais e em vigor. No entanto, para a missa cantada e por razões pastorais propõem-se aqui vários graus de participação para que se torne mais fácil, conforme as possibilidades de cada assembleia, melhorar a celebração da missa por meio do canto. O uso destes graus de participação regular-se-á da maneira seguinte: o primeiro grau pode utilizar-se só; o segundo e o terceiro não serão empregados, íntegra ou parcialmente, senão unidos com o primeiro grau. Deste modo, os fiéis serão sempre orientados para uma plena participação no canto.
29. Pertencem ao primeiro grau:
a) nos ritos de entrada:
- a saudação do sacerdote com a resposta do povo;
- a oração;
b) na liturgia da Palavra:
- as aclamações ao Evangelho;
c) na liturgia eucarística:
- a oração sobre as oblatas,
- o prefácio com o respectivo diálogo e o "Sanctus",
- a doxologia final do cânone,
- a oração do Senhor - Pai nosso - com a sua admonição e embolismo,
- o "Pax Domini",
- a oração depois da comunhão,
- as fórmulas de despedida.
30. Pertencem ao segundo grau:
a) "Kyrie", "Glória" e "Agnus Dei";
b) o Credo;
c) a Oração dos Fiéis.
31. Pertencem ao terceiro grau:Note-se que por participação activa deve entender-se, não só a participação vocal dos ministros e do povo nas orações respectivas, mas também, e até primeiramente, aquela verdadeira participação activa, que é espiritual e se dá no coração de cada um: a primeira nunca dispensa a segunda; a segunda, serve-se da primeira, mas pode tão-bem dispensá-la, inclusive até ao extremo do absoluto silêncio.
a) os cânticos processionais da entrada e comunhão;
b) o cântico depois da leitura ou Epístola;
c) o "Alleluia" antes do Evangelho;
d) o cântico do ofertório;
e) as leituras da Sagrada Escritura, a não ser que se julgue mais oportuno proclamá-las sem canto.
Com efeito, pareceu-me muito conveniente esta sugestão do Magistério para programar semelhantes aulas como as que me foram pedidas, dividindo para tal o extenso e variado reportório do canto gregoriano em três partes, de crescente complexidade. O que se segue é o resultado dessa divisão, tendo algumas orações sido deslocadas para outro grau em razão da sua natureza musical, como adiante especifico. Este método, que ainda não passou do papel à práctica, parece-me, para já, o mais apropriado para a formação duma schola cantorum de raíz, pelo menos a nível duma paróquia. Por este motivo, partilho desde já os recursos que compus, e peço encarecidamente os vossos comentários.
No 1º grau de dificuldade, ou seja, para um côro principiante, proporia o estudo das seguintes peças:
a) nos Ritos Iniciais:
- a saudação do sacerdote com a resposta do povo
- o acto penitencial
- a oração colecta
b) na liturgia da Palavra:
- a 1ª leitura
- as aclamações da 1ª leitura
- a 2ª leitura
- a aclamação da 2ª leitura
- a leitura do Evangelho
- as aclamações ao Evangelho
- a oração dos fiéis
c) na liturgia eucarística:
- a oração sobre as oblatas;
- os diálogo e prefácio da O.E.;
- o cânone;
- a doxologia final do cânone;
- o Pater noster com admonição e embolismo;
- o Pax Domini e outras aclamações e diálogos, e respectivas orações do celebrante;
- a oração depois da comunhão;
- as fórmulas de despedida;
Ou seja, excluí o Sanctus, que no Kyrial Romano ou na polifonia assume formas bastante elaboradas, e reuni todas as orações entoadas em recto tono, mesmo que o seu canto não seja prioritário na maioria das celebrações (p.ex. Canon, Lectiones). No seu conjunto, cada uma destas orações tem 2 ou 3 versões diferentes, que se mantêm as mesmas em todas as Missas ao longo do ano litúrgico nas mais variadas localizações onde se reza pelo rito romano. E, embora a maioria dos textos se destine ao sacerdote celebrante (ou a outros ministros, leitores, et al.) e não ao povo, as respostas pertencem - essas sim - ao povo, e são practicamente as mesmas, sempre; um coro que as aprenda pode ajudar o resto da assembleia a cantá-las. E o facto de se começar pelas entoações simples, e não pelos tradicionais modos gregorianos (octoechos), tem ainda a vantagem de evitar uma sobrecarga cognitiva nos aprendizes, que poderão focar-se primeiramente:
- na busca da melhor técnica vocal;
- no discernimento da correcta afinação, mantida imperturbável ao longo da entoação rectilínea;
- na descoberta e no entendimento da língua latina;
- na boa dicção e pronúncia do texto;
- na sincronia com os restantes membros do côro;
- na descoberta da notação quadrada e suas particularidades, por oposição à notação moderna;
- na detecção das principais unidades rítmicas, definidas pela pontuação e sintaxe do texto;
- na acentuação do início ou fim das tais unidades rítmicas com os acidentes melódicos tradicionais;
- na percepção dos principais intervalos melódicos (meio tom, tom inteiro, terceira menor, terceira maior, etc.);
- na desintoxicação tonal e na aceitação do ambiente modal, mais propício que é ao recolhimento e oração;
- no conhecimento de como as entoações da Missa formam um todo sólido, um esqueleto musical ao qual se apendem outros géneros musicais mais complexos (canto melismático, polifonia).
Para além disso, permite-me também a mim ganhar a experiência que não possuo para dirigir peças mais complexas. Deixo-vos, então, um manual (Dropbox, Scribd) em que reuni (com manifesto amadorismo) todas estas entoações, e que inclui, no final, os seguintes cantus varii propostos pelo Papa Paulo VI em 1974 a toda a Igreja de rito romano: O salutaris hostia, Adoro te devote, Tantum ergo sacramentum, Laudate Dominum, Parce Domine, Da pacem, Ubi caritas, Veni creator Spiritus, Regina cæli, Salve Regina, Ave maris stella, Magnificat, Tu es Petrus, e Te Deum.
Depois de bem sabido o 1º grau, proporia para o 2º o estudo das peças do Kyriale Romanum, as quais, embora preservando o mesmo texto ao longo do ano litúrgico, convém que se variem na música (mais ou menos como se mudam as côres dos paramentos):
- Kyrie, incluindo algumas versões com tropo (fons bonitatis II, firmator sancte VIII ad lib., orbis factor XI);
- Gloria in excelsis Deo;
- Credo;
- Sanctus;
- Agnus Dei;
- Ite missa est.
Estas peças vêm em grupos no Gradual Romano, de forma que se pode começar pelas mais simples (missas com n.º mais elevado) e ir crescendo na dificuldade. As peças do ordinário são úteis para o ensino dos modos gregorianos, que se poderá fazer nesta altura. Deixaria para o fim as antífonas da aspersão com água benta (Asperges me, Vidi aquam) e os oito tons do Gloria Patri da Missa (começando pelos VII e VIII modos, que se cantam nestas antífonas, respectivamente); estas peças exigem alguns conhecimentos de semiologia gregoriana, até aqui desconhecida, e que se revelará indispensável no 3º grau. Mas antes o PDF do Kyriale Romanum:
Finalmente, chegamos ao 3º grau: que inclui as peças do próprio de cada Missa:
Finalmente, chegamos ao 3º grau: que inclui as peças do próprio de cada Missa:
- Introitus
- Graduale
- Tractus
- Alleluia
- Sequentia
- Offertorium
- Communio
Estas peças, cujos texto e melodia variam practicamente todas as missas, são as mais belas do reportório gregoriano, mas também as mais difíceis. As peças mais fáceis são as sequências, com o seu estilo silábico. As restantes, semi-ornamentadas e melismáticas, exigem que se coordene tudo quanto se aprendeu até aqui, e se aprenda a modelação rítmica tão característica da música medieval. Para isso, encaminhamos o leitor interessado aos seguintes livros: Graduale Triplex, Offertoriale Triplex, Graduale Novum e Graduale Restitutum, que publicam as partituras a cantar em cada Missa; e para outros manuais, que ensinam a ler a notação arcaica.
Uma vez dominado este nível, resta cantar a polifonia do Renascimento, e voar!...
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