terça-feira, 25 de junho de 2024

Alberto Turco: Lição Magistral

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Nota do Editor: De seguida propomos aqui a Lectio Magistralis proferida pelo professor Alberto Turco, por ocasião da apresentação do livro em sua homenagem “Dialettica e paradigmi del sacro in musica” da série do Pontifício Instituto de Música Sacra “Didattica e Saggistica”. A conferência realizou-se no dia 18 de Novembro de 2021, na Igreja da Abadia do mesmo Instituto.

A VERDADE HISTÓRICA DO CANTO GREGORIANO:
um enriquecimento espiritual e cultural.

A Constituição litúrgica Sacrosanctum Concilium do Vaticano II reiterou, na esteira da tradição, que o gregoriano é o "canto próprio" da liturgia da Igreja Romana.

Mas o que restou deste mesmo canto na liturgia do pós-Vaticano II?
Algum poderia dizer que hoje não é mais o tempo de falar do gregoriano... e talvez acrescentar que assim o exigiria a pastoral!
Se isto fosse verdadeiro, ocorre a pergunta se nos futuros documentos sobre a «música na sagrada liturgia» ainda se encontrará a definição do gregoriano como o «canto próprio» da Igreja.
Pela minha parte, estou certo de que a Igreja romana não renunciará jamais a esta definição, pelo facto de que o canto gregoriano foi e, na maior parte do seu repertório, sempre será, o ser e o existir da liturgia cantada da Igreja universal de rito romano.

O “ser” e o “existir” do canto gregoriano

Na definição da liturgia fons et culmen da vida cristã, há também o canto da «Oração», o canto lírico da “Catequese”. O gregoriano é precisamente este canto! Acompanha a oração e a acção litúrgica, ao ponto de constituir uma só entidade. Por consequência, a riqueza, que se deve esperar do canto gregoriano, não é outra senão a da “vida litúrgica”, «fonte e cume da vida cristã». Quantas gerações de sacerdotes e leigos assimilaram uma autêntica espiritualidade litúrgica através da prática do canto gregoriano!

As melodias gregorianas não existem por si mesmas; foram criadas para o serviço exclusivo do “texto litúrgico”, do qual nasceram no próprio acto da oração oficial da Igreja. O mesmo vale para as melodias do celebrante, do diácono, do leitor, do salmista, dos cantores, da schola e do côro, subdivididas nos seus papéis e cada qual com textos próprios, diferentes não só pela natureza e estilo, mas também pela ornamentação de melodias adequadas. Sem perder nada da sua frescura, da sua inspiração e espontaneidade, as melodias vivem em perfeita simbiose com o texto.

No canto gregoriano, a melodia põe-se em obediência à «Palavra de Deus», tal como anunciada na liturgia. Com efeito, é Deus quem nos fornece as fórmulas do nosso louvor, da nossa adoração, das nossas invocações. A Igreja retoma estes textos inspirados, escolhe-os, coloca-os, reúne-os, esclarece-os uns com os outros, fazendo uma maravilhosa síntese entre Escritura e Tradição. A Igreja compõe assim o “poema” da sagrada liturgia, no qual a história da nossa salvação é descrita em forma lírica. Neste conjunto, cada texto escriturístico, certamente inspirado como uma segunda canonicidade, torna-se quase duas vezes expressivo da verdade divina. É neste serviço à Palavra de Deus que as melodias são definitivamente arrancadas de si mesmas para serem “consagradas”. Este é o verdadeiro «canto litúrgico».

A verdade histórica do canto gregoriano

O canto, denominado gregoriano em época tardia, percorreu todas as etapas da história da liturgia: foi o canto das comunidades da época apostólica, da época patrística, dos grandes papas dos séculos V-VI-VII; foi o canto dos textos e da ritualidade do final da Idade Média até aos nossos dias; assim será também nas épocas futuras, enquanto a Igreja fizer memória do mistério de Cristo.

Durante nove séculos, o chamado gregoriano permaneceu confiado à memória. Sabemos, de facto, que - andando para trás - os últimos documentos à nossa disposição são em notação musical com neumas em campo aberto, com as grafias dos acentos agudos e graves, isolados ou ligados em várias combinações.
Estas concederam-nos não um livro de canto na acepção moderna, mas apenas indicações estético-modais e expressivas que nos confirmam que, pelos finais do séc. VIII e no séc. IX, todo o sistema litúrgico-musical estava definido, coerentemente à liturgia coeva, propriamente dita “gregoriana”.
Por outras palavras, a semiologia nasce quando o repertório existe já, e está em idade adulta, e pede que seja difundido, quando as tradições orais, tanto galicanas como romanas, encontram um suporte para se documentarem. A semiologia nada mais é do que o relato do mestre do coro que entrega por escrito o programa das suas exigências. Certamente não pode exprimir tudo; mas o que o maestro exprime é de uma tal fineza que vai além do que aquilo a que estamos habituados com as escritas mensuralísticas, e de relevância tal que contrasta com os livres efeitos requeridos pelas notações da música "contemporânea".
Quando aparece a escrita sobre linhas, no início do séc. XI, a memória alenta o seu controlo, emergem as variantes, sempre mais numerosas, sempre mais graves. A estas motivações, que são seguramente as principais, juntam-se outras que arrastam o canto gregoriano para a decadência.
A primeira decadência infligida ao gregoriano é obra dos teóricos do octoecos do séc. X-XI, os séculos das falsidades, que basearam a análise do repertório gregoriano na teoria das oitavas tonais gregas, trocando-as com as oitavas modais. Era motivo de orgulho para os teóricos do séc. IX poder traçar as origens do canto da Igreja na música grega. Não há nada mais empírico do que ligar o gregoriano à teoria dos oito modos.
Sobre esta visão de oitavas tonais (escalas octocordais), os manuais do canto gregoriano, as enciclopédias e os volumes de história da música escreveram o inverosímil na tentativa de explicar a modalidade do repertório gregoriano. Seria tempo e hora de abolir certa terminologia, que compositores e músicos apreciam ainda operar na análise de composições renascentistas e modernas.
Ainda hoje, a proposta de uma restauração, certamente não magis critica das melodias gregorianas, é fortemente viciada pela teoria do octoecos, segundo a qual as melodias devem restituir-se na escrita em cadência final Ré, Mi, Fa, Sol. Tudo isso advém porque não se conhece nada do que efectivamente aconteceu no canto da liturgia antes do séc. IX.

Valor espiritual e cultural do canto gregoriano

Seja-me consentida agora recordar as condições objectivas e subjectivas que asseguram ao canto gregoriano o seu valor teológico e contemplativo do "facere sacrum".
As condições objectivas são constituídas pelo texto e pela sua execução em canto, respondendo ao pensamento dos compositores. Digamos desde já que as versões oficiais do canto gregoriano são apenas as da Vaticana e, aos nossos dias, as reconhecidas pela Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. A restauração do Graduale Romanum de 1908, sem dúvida imperfeita, representou um progresso “imenso” em relação às edições dos séc. XVIII e XIX. E, ainda hoje, sob o aspecto da cantabilidade das melodias, a edição vaticana do Graduale Romanum deve ser considerada de grande apreço, direi que é uma edição “venerável”. O critério da cantabilidade das melodias estava sob a atenção da comissão pontifícia. Isto deve ser reconhecido. São melodias cantáveis! A sua musicalidade é um valor indispensável para o texto. Por outro lado, as actuais restaurações de melodias que levam a formulações estranhas, direi “exóticas”, ou seja, de todo incompreensíveis para uma linha melódica “diatónica”, estão em contraste com a “verdade histórica” e, consequentemente, estão em contraste com o “sacrum facere”. Há uma afirmação de São Paulo na primeira carta aos Coríntios, que se aplica ao nosso caso: «rezarei com o espírito, mas rezarei também com a inteligência; cantarei com o espírito, mas cantarei também com a intreligência» (1 Cor 14, 15).
Um mosteiro da família solesmense, após ter adoptado as melodias do Antiphonale Monasticum dos anos 2000-2005, retirou a edição devido à dificuldade de cantar certas versões melódicas, reservando-se a propor uma nova edição.

As edições passadas da Vaticana certamente precisam de ser revisitadas, com instrumentos e aparato crítico adequados. À época da edição do Graduale Romanum de 1908 e do Antiphonale Romanum de 1912, a comissão pontifícia não dispunha de meios (cerca de dez manuscritos) e de trabalhos científicos avançados. Hoje, o aparato científico adequado está disponível no atelier solesmense para iniciar uma versão melódica magis critica. No texto da Sacrosanctum Concilium, n. 117, redigido pela Abadia de Solesmes, com o qual se auspicia o completamento das edições do canto gregoriano e a revisitação das melodias já publicadas, confirma-se implicitamente que o aparato crítico para a restauração do Graduale Romanum foi ultimado. Na verdade estamos em 1964.
Quem não estudou no atelier de Solesmes dificilmente pode aperceber-se da riqueza dos trabalhos científicos, documentados em cem anos de trabalho dos monges e, dificilmente, poderá ter uma visão geral dos problemas que se impõem para uma aceitável restauração melódica do canto gregoriano.

A segunda condição objectiva é devolver ao gregoriano a sua conotação de canto para a liturgia. Aqui entra em campo a interpretação, oriunda da ciência da paleografia e, consequentemente, da semiologia. A que nós temos nos nossos livros é uma «neografia» da escrita musical gregoriana. Entre a paleografia e a neografia musical não há solução de continuidade. Não se decidiu num determinado dia passar da paleo- para a neo-grafia, de modo que se encontram ainda nos nossos livros actuais os sinais paleográficos um tanto evoluídos.
Portanto, o mestre do canto gregoriano deve conhecer a paleografia e a semiologia gregoriana, pelo menos em quanto concerne o significado dos neumas em campo aberto, em relação ao texto litúrgico, à melodia, à estética e à luz da intencionalidade do mestre da notação musical.
Uma vez assegurada a forma autêntica ou pelo menos fiável (versão melódica e execução rítmica texto-melodia), é indispensável que a execução da peça envolva a assembleia na celebração litúrgica, favorecendo a oração e a contemplação: estas são as condições subjetivas do valor teológico e contemplativo que uma melodia gregoriana tem em si mesma.
Portanto, o ensinamento teórico e a praxe executiva não podem prescindir destas condições e traduzir-se num exercício de vocalidade, muito menos numa execução académica ou prestação concertistica tout court.

Neste ponto, surge o grande problema da competência musical e da formação litúrgica e espiritual do(s) maestro(s).
No têm a idoneidade de ensino do canto gregoriano aqueles que receberam certificados de participação em conferências ou cursos generalistas. E ouso dizer que não podem nem tão-pouco declarar-se mestres aqueles que não possuem um diploma específico em canto gregoriano.
Hoje, assistimos a um facto curioso: metido à margem da liturgia, o gregoriano tornou-se uma “moda”, uma atracção “exótica”, um tema musicológico, que se crê aprender a bom preço e, consequentemente, poder ensinar, por ter adquirido algumas noções sobre a notação quadrada e com a participação em aulas on-line, em fins de semana e outros eventos, promovidos por professores improvisados!
Os músicos de todos os tempos sempre foram influenciados pelo canto gregoriano, não tanto pela sua atracção enquanto música sui generis, mas porque intuíram o valor intrínseco deste inestimável monumento da arte musical. O canto gregoriano não é obra de um compositor, mas é o fruto da mais genuína expressão da liturgia, o grande poema da vida cultual da Igreja. A sua conotação primária é a de ser a celebração do “mistério” de Cristo nos séculos. Para isso, além de aprender noções técnicas, os professores devem preparar-se, para não trair o «mais digno de todos os louvores» a Deus, reconhecido no gregoriano.

E que coisa deveremos dizer do mestre dos futuros mestres de canto gregoriano? Para assumir este encargo, a um diploma sério deve juntar-se a «habilitação» para a docência, como acontece, neste mundo, com outras profissões. A habilitação pressupõe a conhecença do gregoriano, ciência e mistério.
Digamos desde já que a ciência do gregoriano deve estender-se aos “factos musicais” que caracterizaram a formação e evolução da liturgia cantada, desde a sua nascença até à documentação dos séc. IX e X.
A ciência do gregoriano comporta uma visão geral de todos os parâmetros que vão da compreensão do texto e a sua colocação no tempo litúrgico até à síntese estético-modal, que nos permite colher, nas multíplices formas musicais, a conotação íntima de cada nota na dinâmica da execução. Entenda-se bem que, à luz destes parâmetros, é necessário avizinhar-se às fontes manuscritas com respeito e com rigor científico na formulação dos critérios compositivos.

Habilitação ao gregoriano, «ciência», mas também «mistério».
O “mistério” do canto gregoriano é a igreja que reza, canta e, com a graça do Espírito Santo, celebra a vida de Cristo, para a glória do Pai e a salvação do mundo. Aprendendo e rezando em canto gregoriano, é importante ouvi-lo, e ouvi-lo em atitude contemplativa.
O maestro não só tem a tarefa de ensinar a verdade da forma estética, do significado textual e melódico de cada peça, mas tem sobretudo o dever de transmitir o seu conteúdo espiritual, assegurando ao canto a sua eficácia de oração e de contemplação.
Portanto, a meu ver, a qualificação para o canto gregoriano “mistério” deveria encarnar-se em pessoas consagradas à meditação, à oração e, sobretudo, à contemplação da liturgia. Em concreto, deveria concretizar-se em pessoas que celebram a liturgia.

E concluo dizendo que o gregoriano é o dom de Deus à Igreja, para que se torne o «esplêndido louvor» da Igreja a Deus (Sl 23, o salmo do Senhor no seu templo).
O Gregoriano é a oração do compositor, para que se torne a oração do maestro.
Sempre, na verdade, como reza a ant. Diligite Dominum, omnes sancti eius, quoniam veritatem requiret Dominus.

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quinta-feira, 20 de junho de 2024

Liber Gradualis - Pars Festiva

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NOVIDADE EDITORIAL

LIBER GRADUALIS
iuxta «Ordo Cantus Missæ», auctoritate Pauli PP. VI promulgatum, in quo melodiæ restitutæ sunt e fontibus adhibitis in præparando Graduale Romanum secundum hodiernæ musicalis criticæ regulas.

Livro Gradual, segundo a Ordem do Canto da Missa promulgada com autoridade do Papa Paulo VI, no qual as melodias foram restituídas a partir das fontes consultadas na preparação do futuro Gradual Romano segundo as regras da crítica musical de hoje.


Formato 14x21 cm
724 páginas
Papel marfim 80g
Encadernação de fio cosido
Versos de capa e contracapa em papel algodonado marfim
Placas de capa, lombada e contracapa em imitação de couro verde garrafa
Estampa dourada na capa e lombada
Capitéis e 3 marcadores de cores diferentes

O LIBER GRADUALIS PARS FESTIVA é o volume de 724 páginas que reúne a proposta de restituição melódica do repertório gregoriano da Missa elaborada por Mons. Alberto Turco e seus colaboradores.

Nasce de um estudo atento e comparativo de muitíssimos testemunhos antigos transcritos em tabelas sinóticas guardadas como tesouro precioso no atelier de Paléographie da Abadia de Solesmes. Acima da versão neumática em notação quadrada, aderente às mais recentes aquisições gráficas, vem relatada a mais antiga notação em campo aberto dos manuscritos sangaleses. A notação neumática de São Galo é, de facto, a mais rica que todas as outras em fornecer indicações do ponto de vista expressivo, estético e modal, indicações mais que suficientes para uma interpretação correcta e artisticamente significativa.

Neste primeiro volume incluem-se todas as celebrações festivas, enquanto o segundo, a publicar em breve, será dedicado às feriais. Ineludível ponto de referência para quantos amam, estudam e executam o canto da próprio Igreja romana.

Informações e encomendas:
EDIÇÕES DE MÚSICA ARMELIN
Riviera San Benedetto, 18-35122 Pádua
Tel +39 049 8724 928
www.armelin.it
info@armelin.it

Prefácio

O Liber Gradualis, nos seus dois volumes, recolhe quanto foi publicado em fascículos separados, divididos por tempos litúrgicos, entre os anos de 2009 e 2016, revisto, corrigido e ampliado em vista desta edição. Se aqueles fascículos, na sua praticidade editorial e gráfica, se destinavam mormente ao estudo pessoal e do côro, a presente edição responde também à exigência de quantos desejam utilizar na liturgia a versão melódica preparada por Alberto Turco e pelo grupo de trabalho que colabora com ele. Tal versão não quer ter a pretensão nem da oficialidade, reservada unicamente à edição típica da Vaticana, nem da exaustividade, nem sequer da exclusividade, pois sabemos que os estudos sobre o canto gregoriano estão bem longe de se concluírem em todas as frentes. E, todavia, esta edição quer apresentar-se como magis crítica [1], em comparação não só com a Vaticana, mas também a outras propostas similares.

[1] Como requerido pela Constituição conciliar Sacrosanctum Concilium (SC) sobre a Sagrada Liturgia do Concílio Vaticano II: “Procure terminar-se a edição típica dos livros de canto gregoriano; prepare-se uma edição mais crítica dos livros já editados depois da reforma de S. Pio X" (SC 117).

O ponto de partida, para nós inequívoco, são os estudos semiológicos e modais surgidos em torno do atelier de Paléographie da Abadia de Solesmes. O próprio título - Liber Gradualis - refere-se à primeira obra homónima publicada em 1883 por dom Joseph Pothier (1835-1923) que constitui a primeira pedra de uma construção bem ordenada que ainda agora continua a ser edificada, com o contributo de quantos hoje se põem séria e verdadeiramente na esteira de dom Eugène Cardine (1905-1988) e dom Jean Claire (1920-2006). Precisamente a partir da sua actividade científica, a semiologia e a modalidade gregorianas receberam um notável impulso, permitindo uma compreensão e uma interpretação da monodia litúrgica mais consentânea com a verdade dos factos históricos documentados pelos manuscritos. O estudo directo das fontes antigas continua sendo um trabalho insubstituível para se chegar a uma proposta de restituição melódica filologicamente correcta e criticamente aceitável. O caminho traçado pela Édition critique do Graduale Romanum [2] com o amplo reconhecimento dos manuscritos, as suas relações genealógicas, alguns levantamentos e uma proposta exemplificativa de restituição melódica [3], é aqui retomado e acolhido no método, complementado com o que os estudos posteriores evidenciaram, em particular os da semiomodalidade, para atingir critérios bem definidos, compartilhados e compartilháveis, ​​quanto à escrita e aos semitons da corda móvel, respeitando a natureza das fórmulas relativamente ao aspecto estético modal. 

[2] Le Graduel Romain, Edition critique par les moines de Solesmes, IV Le texte neumatique, vol. I, Abbaye Saint-Pierre de Solesmes 1960 e vol. II Abbaye Saint-Pierre de Solesmes 1962.

[3] La missa “Ad te levavi”, ibidem, vol II, pag 63-89.

Para conveniência dos estudiosos relatamos no final deste Prefácio o elenco de manuscritos apresentado na Édition critique. É precisamente a partir deste amplo confronto que é possível determinar uma versão melódica que encontra confirmação na convergência mais ampla possível dos antigos testemunhos.
Sobre a versão neumática em notação quadrada, é relatada a mais antiga notação in campo aperto dos manuscritos de St. Gallen, deixando de fora a de Laon, em linha com a escolha do Graduel Romain no seu ensaio de restituição melódica [4].

[4] Ibidem.

Especificamente, os manuscritos utilizados são os mesmos reportados pelo Triplex:

Gal1 = St. Gallen 359, Cantatorium, (séc. X);
Ein = Einsiedeln 121, Graduale, (segunda metade do séc. IX);
Gal3 = St. Gallen 376, Graduale, (séc. XI) na ausência de Ein;
Har = St. Gallen 390-391, Antifonário de Hartker, (aa. 980-1011) para as Communio retiradas do Antiphonale.
Para os tons salmódicos das Communio, fez-se referência a Ein e G381, (St. Gallen, Stiftsbibl. 381) Versicularium, (primeira metade do séc. XI).

Sob o título de cada peça, apresentam-se as siglas dos manuscritos dos Antifonários da Missa, sem notação musical, dispostas em sinopse no Antiphonale Missarum Sextuplex de dom René-Jean Hesbert:

M Cantatorium de Monza (segundo terço do séc. IX)
R Graduale de Rheineau (cerca de 800)
B Graduale de Mont-Blandin (séc.s VIII-IX)
C Graduale de Compiègne (segunda metade do séc. IX)
K Graduale de Corbie (depois de 853)
S Graduale de Senlis (finais do séc. IX).

Tal como no Graduale Triplex, a letra grega λ indica uma lacuna no manuscrito.

O aparato crítico que ilustra o trabalho realizado e as escolhas efectuadas para boa parte do repertório está disponível na série Subsidia do Centro di canto gregoriano e monodie «Jean Claire» de Verona junto das Edizioni Melosantiqua [5], à qual se remete.

Uma anotação particular merecem duas escolhas aqui efectuadas e que marcam um seguro progresso.

A primeira. Nesta edição foi abordado o tema do quilisma no intervalo de quarta ou de quinta já delineado por Cardine no Liber Hymnarius [6] e bem evidencado na Edition critique [7] à luz dos manuscritos diastemáticos e em parte adiastemáticos.

[6] Antiphonale Romanum Tomus alter, Liber Hymnarius cum Invitatoriis et aliquibus Responsoriis, Solesmis 1983, e.g. resp. Ecce vicit p 512, 4ª pauta al-leluia. Sobre este tema ver também ALBERTO TURCO, A colocação do «quilisma» no scandicus, in Vox gregoriana, Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano e monodias «Dom Jean Claire» - Verona, n° 3 Setembro - Dezembro 2019, pp 8-12.

[7] Cfr. nota 3.

A segunda. Os versetos dos Intróitos e das Comunhões do III tom apresentam a versão melódica estereotipada da cadência mediana, retirada do Versicularium 381. Todas as Communio foram dotadas de um verseto salmódico, na selecção operada por Ein.

O auspício é que este ulterior trabalho possa contribuir para o verdadeiro progresso dos estudos restitutivos, bem como para a difusão daquele canto que a Igreja não hesita em definir como "próprio" [8] e em preferi-lo na liturgia às outras linguagens musicais.

[8] SC 116

Mons. Alberto Turco
Dom Nicola Bellinazzo
Dom Gilberto Sessantini

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Alberto Turco: Iniciação à Paleografia

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Alberto Turco

INICIAÇÃO À PALEOGRAFIA

Iniciação à «paleografia musical», à antiga escrita musical, é o tema do presente curso de canto gregoriano. A que nós temos nos nossos livros é uma «neografia» da escrita musical. Entre a paleografia e a neografia musical não há solução de continuidade. Não se decidiu num determinado dia passar da paleo... para a neo... -grafia, para se encontrar ainda nos livros actuais e também na música moderna - mais uma vez, não há solução de continuidade - os sinais paleográficos um pouco evoluídos. Todavia, será interessante descobrir o que da escrita evoluiu e o que mudou.
Digamos imediatamente que a notação neumática é «quironómica». O termo de origem grega χείρ = «mão» e νόμος = "regra" ou, mais provável, νευμα = «sinal», quer dizer que o gesto da mão traduz o neuma que segue a melodia. A definição de Dom E. Cardine é ainda mais significativa: «o ductus da pena desposa o ductus da voz».
É realmente verdade! Para aqueles que procuravam escrever no pergaminho tudo o que podiam - não muito, de facto! -, a sua mão seguiu a sua voz. Em palavras mais simples, a sua mão procurava exprimir o que estavam efectivamente executando. Daqui, o desenho gráfico dos «neumas»:

podatus e certamente não


Capítulo I

ORIGEM DOS NEUMAS

A origem do neumas é assaz misteriosa. Mas, crê-se - e parece lógico - que os primeiras anotadores houvesses tomados em empréstimo os sinais que então usados para a música da palavra, isto é, os sinais de acentuação. Com efeito, era a única notação musical possível, mesmo que para nós não se trata de uma verdadeira notação musical.

«Acento», do latim accentus, composto por ad e cantus, é sinónimo de sílaba acentuada, cantada acima das outras e desenhada um sinal, um acento.
Os músicos tomaram os sinais dos acentos gramaticais para escrever a música, pelo facto de que já havia na sua palavra latina este elemento cantante, o chamado «cantus obscurior». Acentos havia dois, o acento agudo e o acento grave, e não era necessário inventar um outro.
Tomaram-se estes dois acentos como sinais neumáticos. Chamam-se sinais comuns, naturaisgerais, em contraposição a tudo o que é artificial, se assim se pode dizer.
O acento "agudo" () é traçado de baixo para cima e inclinado um pouco para a direita, quando é "sangalês".
O acento "grave" deveris ser o oposto de agudo; mas de facto, tomou uma extensão mais pequena e, na maioria das vezes, foi escrito horizontalmente (). Foi escrito de "esguelha" () para indicar um grande intervalo melódico descendente de terça ou quarta.
Eis quanto podiam fazer os músicos com estes dois sotaques, que porém não marcavam os intervalos.

Com os dois sinais fundamentais dos acentos - o acento agudo que sobe e o acento grave que desce - os músicos escreveram uma boa parte da música. Mas, não somente com sinais isolados, mas também com sinais "combinados":


grave - agudo


agudo - grave


grave - agudo - grave


agudo - grave - agudo


agudo - grave - grave

grave - agudo - agudo

Neste ponto, percebem-se já os limites deste sistema. Quando há duas notas, é claro que uma é grave e a outra é aguda, a menos que estejam em uníssono. Mas quando houver duas notas graves ou duas notas agudas de seguida? Seguramente haverá uma com um segundo emprego, que não se adaptará plenamente à definição. Tudo isto é muito relativo!
Tomemos o caso da sucessão de tractulus, à qual segue virga e tractulus:

Esta escrita neumática diz-nos que os dois últimos sons são inferiores ao último dó. A virga que os precede sublinha o acento. Na hipótese do exemplo citado, o acento está em uníssono com o que o preceder. Portanto, o uníssono dos dois últimos tractulus não é o mesmo que aquele que precede a virga. Ao invés, na hipótese que a virga indique um som mais agudo que o uníssono dos tractulus precedentes, não temos modo de saber se os tractulus depois da virga coincidem com o uníssono dos que a precedem. Tudo é relativo! Uma coisa é certa: com dois sinais, não se poderão nunca meter em relevo três intervalos. É inútil procurar! É metafisicamente impossível!

O verdadeiro drama tem que ver outrossim com o significado “mensuralístico” que se quis atribuir a estes dois sinais: o tractulus, a ser interpretado como “som breve”; a virga, “som longo”. Não se sabe quando isto aconteceu; mas sabe-se que esta interpretação mensuralista dos dois sinais durou até meados do séc. XIX.

E isto poderia ter-se verificado no séc. XII e XIII, na época em que a virga e o tractulus eram ainda as unidades de base. Uma vez transferidos os neumas para a pauta musical, a diferença entre nota alta e nota baixa era evidente e, portanto, não havia mais necessidade de virga e tractulus.
Todavia, a tradição de considerar a virga e o tractulus de diferentes valores rítmicos permaneceu por longo tempo. Nas velhas edições de Solesmes existem ainda algumas notas quadradas com hastes: por exemplo, na sequência Lætabundus de Natal, em Variæ preces (p. 70). Não nos é dado porém saber se os teóricos atribuíam efectivamente a estas virga um valor mais longo que às outras!

Foram necessários as provas de Dom J. Pothier [1] e Dom A. Moquereau [2] para demonstrar o contrário.

[1] POTHIER J., Mélodies Grégoriennes d’après la tradition, 1880 (ed. italiana : Le melodie gregoriane secondo la tradizione, Tournai-Roma, 1890). No Congresso de Arezzo, em 1882, três relatos: De la virga dans les neumes (48 p.), Une petite question de grammaire à propos du plain-chant (24 p.), La tradition dans la notation du plain-chant (32 p.) : cfr. COMBE P., Histoire de la restauration du chant grégorien d’après des documents inédits, Solesmes, 1969, p. 102.

[2] MOCQUEREAU A., Les accents grammaticaux et la mélodie du discours, in «Le nombre musical grégorien ou Rythmique grégorienne», t. I, Rome, Tournai, 1908, p. 132.

Vêm mais argumentos ao caso; mas o mais convincente é o do Versicularium sangalês (cód. St. Gallen, Stiftsbibliothek 381, século XI), o manuscrito que contém os versetos dos intróitos e das communio de todo o ano.

Os versetos mostram os tons solenes. Em muitos destes tons, descobre-se que
        - a 1ª parte do verso é assinalada com virga;
        - a 2ª parte (após o asterisco), com tractulus;



O emprego diferente das duas grafias é determinado pela posição do recitativo, com referência ao movimento melódico precedente e seguinte:
Pelo exemplo do tom relatado, é impossível crer que, na primeira parte, se cantassem sílabas de dois tempos (virga) e, na segunda parte, sílabas breves (tractulus). E no entanto, músicos de igreja e presidentes do Pontifício de música sacra acreditaram e praticaram isto. É a base do mensuralismo:

        punctum = breve            virga = longa

e, por consequência, o resto:

        podatus = três tempos:  1 breve + 1 longa

Em defesa de um certo mensuralismo, os teóricos do séc. XII e XIII sustinham que a música é paragonável à poesia, onde existem pés longos e pés breves. Era efectivamente uma realidade para eles? Tratava-se duma sua invenção ou, mais provavelmente, uma tentativa de explicar como cantar música? É difícil dizê-lo!
Dom Pothier e Dom Mocquereau falam de ritmo oratório: o ritmo do canto gregoriano é o ritmo do discurso.
Portanto, virga e tractulus: dois sinais de alternância relativa, não de longueza!

A escrita sangalesa tem uma preferência pela virga: nos casos incertos, tendo que escolher, escolhe a virga.
Quando uma linha melódica sobe em modo regular, obviamente, pode indicar-se com um punctum ou tractulus, metendo uma virga no agudo para o som mais alto... ou se não apenas virgas. Bem! São Galo escolhe a virga. Por que motivo? Porque a virga oferece indicações adicionais em comparação com o punctum (tractulus).
Tomemos o seguinte texto:


Hartker (f° 25) escreve quatro virga dispostas de maneira ascendente, indicando assim uma diastemacia que poderíamos definir como "precisa", no sentido de que, quando conhecemos o que o compositor pretende, podemos segui-lo; mas quando o não sabemos, estamos seguros de nos enganarmos seguindo-o.
É preciso admitir que a virga é mais adequada que o punctum/tractulus para indicar esta diastemacia, este meter em cena das notas.
Os compositores procuraram de vários modos precisar a diastemacia da virga empregando virga de várias dimensões: cfr. exemplo seguinte, retirado do Antifonário-Gradual de Mont-Renaud, séc. X-XI, f° 73v;

ou recorrendo a letras adjuntivas de significado melódico:
s = superius: um pouco mais alto;
i = inferius: um pouco mais baixo, etc.

Isso para dizer o quão adiante tiveram que seguir! Infelizmente, os compositores não haviam inventada ainda a “linha” para indicar o uníssono. Tome-se o exemplo de Reges Tharsis, o ofertório da Epifania:

Neste exemplo, os neumistas ainda não tinham qualquer ideia da representação gráfica do uníssono. Há essa mudança de posição da segunda virga que ofusca a ideia de uma linha horizontal.
Todavia, neste exemplo, evidencia-se a diferença entre:
uma virga episemada
e o punctum tornado stropha, no estilo ornado.

Entre as duas grafias há uma diferença, não de longueza, mas de expressão.
Com o tractulus, não se podem fazer grandes coisas. Vem escrito horizontalmente ou com grafia inclinada:

A grafia inclinada do tractulus indica a descida da nota por um intervalo de terça ou de quarta.

Os «Episemas»

Venhamos ao jogo dos episemas:
- para a virga: um pequeno traço, no topo, perpendicular 
Às vezes é bastante dúbio, porque pode ser causado pelo simples relaxe da pena;
- para o tractulus, por sua vez, existem três grafias de uso:
        - a grafia no estado simples, 
        - a grafia com um episema perpendicular no fim e por vezes bastante forte, muito mais evidente que para a virga 
        - a grafia com dois episemas 

Uma redução gráfica do tractulus é assinalada com um ponto ( . ). Esta grafia encontra-se somente nalguns manuscritos, entre os quais o Cantatorium (St. Gallen, Stiftsbibliothek 359, séc. X in.), o manuscrito mais antigo, mas também o mais perfeito do ponto de vista gráfico, o mais cuidado nos detalhes. Depois disto não há se não decadência. O Cantatorium usa o pequeno punctum no estilo ornado da missa.
Laon (cód. Laon, Bibl. Mun. 239, Graduale, cerca de 930) usa o pequeno punctum mais frequentemente que São Gallo.
Cada escola tem as suas vantagens e desvantagens. Não podem ter tudo nem exprimir tudo.

(continua)

terça-feira, 28 de maio de 2024

Dialética e paradigmas do sacro na música: Canto gregoriano, polifonia e instrumentos musicais

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dos brilhantes artigos contidos no 

  

“MODULAMINI ILLI PSALMUM NOVUM”
Estudos em homenagem a Alberto Turco


Saiu nas últimas semanas, pelos caracteres da Libreria Editrice Vaticana, Didattica e Saggistica, série do Pontifício Instituto de Música Sacra de Roma, o volume em homenagem ao maestro Dom Alberto Turco, coordenado por Dom Gilberto Sessantini: "Dialettica e paradigmi del sacro in musica". Foi colocado no exergo do livro “Modulamini illi psalmum novum” (Judite 16,1) como paradigma que sintetiza de maneira inequívoca todo o caminho científico e espiritual completo por Dom Alberto nestes sessenta anos de vida, dados ao canto sacro, sobretudo ao Canto Gregoriano. Bem escreve Dom Sessantini, um dos alunos e colaboradores, junto ao escritor, na apresentação do livro: O incipit do cântico de Judite exprime em poucas palavras a cifra interpretativa da vida sacerdotal e da actividade científica de Dom Alberto Turco. Antes de mais, pela referência semântica ao psalmum/cantum novum de agostiniana memória, aquele canto novo que deve distinguir a vida de todo o cristão, tornando-a mesmo nova, e que encontrará a sua perfeita consonância e entonação na nova Jerusalém (cfr. Ap. 5,9.21,2), mas que já aqui, nesta terra e durante a vida terrena, enquanto estamos em caminho, é chamado a expandir-se rumo às alturas sublimes da caridade perfeita, simbolizada pelo júbilo aleluiático. Um canto novo mas sempre antigo, como aquela sabedoria amplamente anelada pelo bispo de Hipona e doutor da Igreja, que precisamente na busca constante, apaixonada, obstinada e em certos aspectos obsessiva da verdade se destingue entre os pensadores do Ocidente cristão. Assim Dom Turco, no seu trabalho académico finalizado a fazer emergir dos abismos do tempo o canto antigo da Igreja para fazê-lo ressoar na sua redescoberta novidade. Em segundo lugar, aquele versículo bíblico, com o seu modulamini, recorda-nos por assonância o âmbito próprio para o qual se dirigiu a investigação científica de Dom Turco, na qual se iniciou pelas intuições de Dom Jean Claire da Abadia de Solesmes, aquela modalidade que para ele já não tem mais segredos, e pela qual todos aqueles que estudam mais de perto o canto da Igreja lhe são reconhecidos, para além de devedores".
Dom Alberto Turco, sacerdote da diocese de Verona, dedicou à liturgia, à música sacra, ao estudo e à interpretação do canto gregoriano a sua vida, até hoje. Insigne estudioso, reconhecido a nível internacional, formou uma gerações de músicos no estudo científico do Gregoriano. Durante anos docente, primeiro no Pontifício Instituto Ambrosiano de Música Sacra de Milão, depois no Pontifício Instituto de Música Sacra de Roma. Os seus estudos científicos, com o passar dos anos, concretizaram-se na publicação de diversos manuais de teoria do gregoriano, procurando divulgar o mais possível o inestimável valor deste canto, considerado pela Igreja o próprio canto oficial.  Podemos dizer mais: o canto gregoriano tornou-se, para ele, um estilo de vida, de pensamento, uma expressão profunda da sua fé e do seu sacerdócio.
A actividade científica de Dom Alberto tem como ponto de referência ineludível Solesmes (F), onde não foi nunca um hóspede qualquer, um hóspede passageiro. Precisamente nesta Abadia francesa, aprendeu a amar, a viver o gregoriano; eviscerando manuscritos, livros, postilas, "bilhetinhos" entre monges estudiosos, comentários. Na Oficina de paleografia pôde respirar a antiga tradição que trouxe o canto gregoriano até aos nossos dias. Incansável trabalhador, Don Alberto, continua a “desenfornar” projectos, propostas, obras; o seu ponto fixo é que nada se perca da bimilenar Tradição do Canto Gregoriano.

Esta publicação quer honrar o estudioso, o que formou tantos músicos direcionando-os para uma abordagem científica, leal, verídica da música sacra. Abre com dois estudos dedicados ao canto gregoriano, que documentam a complexidade desta matéria no campo da restituição melódica, ainda hoje, fonte de visões tantas vezes pessoais e pouco fundamentadas com estudos apropriados. Nestes dois artigos observa-se o método de trabalho ensinado pelo prof. Turco: uma abordagem unitária, não ligada somente a experiências circunscritas de um determinado território ou região, mas uma convergência mais ampla de várias fontes manuscritas, suportada por outras disciplinas do canto gregoriano como a modalidade, a semiologia, a estética e o estudo das várias fórmulas que compõem cada peça individual. O volume prossegue propondo estudos muito interessantes que vão desde as primeiras formas de polifonia ao alternatim órgão gregoriano; ao estudo dos códices medievais e instrumentos musicais capazes de introduzir o ânimo humano na espiritualidade da música. Por fim, um apêndice que recolhe a bibliografia, discografia e as teses discutidas sob a direcção do Maestro Turco. Tudo isto em demonstração do incansável labor daquele que nestas páginas queremos recordar com estima e gratidão.

No quanto respeita à sua relação com a diocese de Verona, exprimiu-se principalmente na sua initerrupta presença, de 1965 a 2017 (por cinquenta e dois anos), na Sé Catedral como Director da Capela musical do Duomo, não obstante os compromissos artísticos e científicos o tenham amiúde chamado para fora do âmbito diocesano.

Querido Dom Alberto, queremos concluir estas breves linhas citando o Salmo 91 no versículo 15: "Mesmo na velhice dará o seu fruto, cheio de seiva e de vigor, para proclamar que o Senhor é justo; n’Ele, que é o meu refúgio, não há iniquidade."
Ad multos annos, magister.

A Redacção



segunda-feira, 27 de maio de 2024

Turco: o canto do celebrante

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dos brilhantes artigos contidos no 

  

Alberto Turco

OS CANTOS DO CELEBRANTE

A forma cantada da liturgia tem por fim a sublimação da Palavra de Deus. Desvinculada de linguagem “habitual”, torna-se uma comunicação mais eficiente daquela. Por isto, desde a era apostólica, se fez uso do canto em todas as celebrações da liturgia cristã.
A participação activa e comunitária na liturgia cantada começa com a do celebrante principal e dos ministros da celebração.
«É possível não pedir a cada celebrante que cante peças musicais muito elaboradas que supõem um estudo aprofundado, mas pode-se exigir que se empenhe em "dizer" os textos litúrgicos respeitando a sua forma e realçando o seu significado: é a finalidade dos “recitativos” muito simples e antigos, que, desde os séculos mais remotos, sustiveram a oração de todos os celebrantes no exercício do seu sacerdócio ministerial”. [1]

[1] CLAIRE J., Presentazione a «Ecce Agnus Dei», CD, Libreria Editrice Vaticana, 2001

É quanto temos nós de mais fundamental, porque tudo partiu do estilo da “cantilação”. Constitui-se esta de uma corda de recitação, que pode subir um pouco pelo acento privilegiado do texto, ou descer para a cadência. É a característica da mais antiga forma estético-modal, que assim permaneceu nas orações simples: colecta, sobre as oblatas, pós-comunhão. Os cantos, também chamados de “tons” do celebrante, que a história da liturgia conservou na memória até o séc. XV, formam uma única família, aquela que em torno da corda de recitação comportava sons (notas) estáveis, sem possibilidade de alterações "semitonais", que poderiam comprometer a sua difusão homogénea.
Os tons recitativos do celebrante e dos ministros, que a história do canto litúrgico transmitiu às fontes manuscritas, pertencem à família de Ré e à família de Dó.
Como colocar na história a família dos recitativos em Dó em relação à família, bem mais completa, dos recitativos em Ré?
A crítica externa aos manuscritos, conhecidos até hoje, não nos consente tirarmos quaisquer conclusões sobre a sua origem e data.
À primeira vista, para os paleógrafos que têm longa experiência destas formas fragmentárias, os recitativos em Dó aparecem frequentemente como corrupções tardias daqueles em Ré. Na restauração do repertório milanês, estes recitativos foram eliminados como "intrusos". [2]

[2] Cfr. Ambrosius, Milano, 1927, p. 13; 1929, p. 202; 1930, p. 118; 1930, p. 139 e p. 152. Por outro lado: CLAIRE J., Les chants du Célébrant, in «Revue Grégorienne», n. 6, 1963, p. 131, nota 2.

Tratar-se-á talvez duma presunção desfavorável à autenticidade dos recitativos em Dó? Diante da riqueza de formas em Ré, o aporte de Dó parece à primeira vista de todo insignificante. A Vaticana admite o recitativo de Dó no tom das orações, leituras e monições. As fontes doutras tradições litúrgico-musicais concedem também ao tom de Dó uma elasticidade de fórmulas, que a Vaticano refuta.
O facto é que a Vaticana define o tom de Dó recentior e o tom de Ré antiquior.
No presente excursus sobre os tons do celebrante, são levados em consideração o canto das Orações simples e da Oração eucarística.

AS ORAÇÕES SIMPLES

Partamos do seguinte prospecto, no qual se mete em confronto o tom recitativo de Ré, na corda de recitação Lá, com o tom de Dó.


A oração consta de duas secções: a oração propriamente dita (A) e a doxologia (B).
Os sinais de pontuação da oração (A) são dois: o metrum e o punctum. No tom de Ré, o metrum é representado pela inflexão da voz no Sol; enquanto o punctum com acento na corda de recitação (Lá), precedido de duas sílabas em Sol.
No tom de Dó, o metrum é representado pelo acento na corda de recitação Dó, precedido por duas sílabas; enquanto no punctum há o acento na corda de recitação Dó e a nota final em Dó, no tom festivo, no Lá, no tom simples, e no Fá, no tom ferial. O tom de Dó mais antigo é aquele que tem a nota final em Lá.

A doxologia (B) acrescenta, no tom de Ré (= corda de recitação Lá), um terceiro elemento, ou seja, a conclusio. Esta termina em Sol, antes da resposta Ámen. Do ponto de vista composicional, parece um desdobramento do punctum da oração, por causa do Ámen.
Esta conclusio repete-se também nos demais textos dos recitativos, como introdução “habitual” à resposta da assembleia. Vejam-se os seguintes exemplos: a saudação Dominus vobiscum, a conclusio do Per ipsum, do Pater (in tentationem + resposta sed libera nos a malo), da Pax Domini, do Benedicat vos. Observemos o tom deste último.

A doxologia no tom de Dó, não tendo uma fórmula para a conclusio, faz preceder ao metrum a mesma pontuação do punctum, no Lá, chamando-o de flexa.
A cadência desta última e do punctum + o Àmen no Si é um sinal de corrupção, que foi finalmente removido das edições actuais do canto gregoriano. Trata-se duma cópia incorrecta do tom de Ré transferido para Dó.
É bom esclarecer desde já que a pontuação da flexa não se encontra no texto da oração tout court. A flexa está ausente nos tons recitativos mais antigos do celebrante. Não existe nos Prefácios, no Pater, etc..
No mesmo tom de Dó há um episódio curioso na fórmula da bênção, onde se encontram dois metrum de seguida.


Além disso, não há flexa nos tons salmódicos semi-ornados dos intróito e communio.

O Missale Romanum, editio typica tertia, ano 2002, no tom da oração, admite a flexa como facultativa (omitti potest) após o metrum, se o texto fôr longo.
O novo Missal Romano, terceira edição em língua italiana, 2020, mantém a forma iuxta typicam do tom da oração, não obstante as objecções dos ingénuos mestres do canto litúrgico ou neo-gregorianistas, que quereriam uniformizar também a pontuação da doxologia com o texto da oração.
A estes tais sugiro observar, no novo Missal em língua italiana, a pontuação dos prefácios, onde descobrirão que o metrum está sempre presente e repetido várias vezes, ao passo que é facultativo, depois do metrum, o emprego da cesura com acento no agudo, se o texto assim o exigir, antes da conclusio.

A ORAÇÃO EUCARÍSTICA

A Oração eucarística (Prex Eucharistica ou Cânon) abre-se com o diálogo do prefácio e conclui-se com a doxologia Per ipsum. É o coração de toda a celebração da missa.
Desenvolve-se em três momentos progressivos:
- na acção de graças, com o Prefácio e a aclamação Sanctus;
- no memorial dos principais mistérios da vida de Jesus Cristo. É a parte estritamente sacerdotal, confiada ao celebrante e aos concelebrantes, com a breve intervenção da assembleia na aclamação após as palavras da consagração;
- na doxologia ou glorificação trinitária, à qual a assembleia adere com o canto do Amém.

Cada uma das três partes possui uma especial entoação sonora. A acção de graças e a doxologia têm uma marcada entonação lírica: sobe com o tenor à terça, em Fá. O memorial tem a entonação típica da oração, em Ré, com acentuação melódica mais elevada que a corda de recitação, em Mi, para as palavras consagratórias. Tudo segundo um esquema de composição de tipo dramático, que se encontra também em outras bênçãos solenes (o círio pascal, a água baptismal) e as consagrações (dedicações, ordenações).
A aclamação da assembleia, por exemplo no antiquíssimo Sanctus XVIII, canta em Mi (= Si, na transcrição do Vaticano). Mas a sua conclusio ocorre em Ré (= Lá), com a fórmula clássica do tom arcaico de Re, para permitir a continuação da Prex eucharistica.
O tom recitativo da Oração Eucarística do Missale Romanum, editio typica tertia, entrou finalmente também na terceira edição (2020) do Missal Romano, promulgada pela Conferência Episcopal Italiana.

A ORAÇÃO DO SENHOR

A oração do Pai Nosso (Pater), reservada ao celebrante até à reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, é cantada inteiramente pela assembleia no tom das outras orações, mas com acentos melódico-verbais privilegiados em Mi (= Si) e Fá (= Dó) na escrita da Vaticana. A conclusio desce para Dó (= Sol), para a retomada do embolismo Líbera nos. É de assinalar o termo grave Lá (= Mi), o único em toda a melodia do Pater, no início de et ne nos indúcas in tentatiónem, com o objectivo de preparar a intervenção da assembleia com as palavras sed líbera nos a malo. Uma espécie de pseudo versus + responsa. Tanto no texto latino como no italiano, manteve-se a dicção melódica originária desta parte final do Pater, se bem que cantado inteiramente pela assembleia.

AS ACLAMAÇÕES

Com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II introduziu-se, na Oração Eucarística, uma aclamação após a consagração e uma segunda aclamação nos ritos de comunhão. Das três fórmulas textuais de aclamação após a consagração, apenas à Mortem tuam annuntiamus se atribuiu melodia. Qual melodia? A da ant. Crucem tuam adoramus (GT 175), cuja primeira parte coincide perfeitamente com o recitativo da oração eucarística:

Ant. Crucem tuam adoramus, Domine:
Acl. Mortem tuam annuntiamus, Domine: (igual melodia)
et sanctam ressurrectionem tuam
et tuam ressurrectionem confitemur
, (igual cadência)

donec venias: o texto e a melodia de donec veniam da ant. Hic est discipulus meus (AM 256). A Comissão De libris cantus liturgici revisendis et edendi não quis, de propósito, elaborar a melodia para as outras duas aclamações.

A aclamação Quia tuum est regnum repropõe o tom da embolia, com a única acentuação melódica à terça, em Dó (=Fá), de potestas.

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Sessantini: o "novo" Missal italiano

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Gilberto Sessantini

O "NOVO" MISSAL

Um antigo Pároco meu, cuja memória guardo com carinho, costumava dizer que não era necessário fazer qualquer reforma litúrgica, mas que teria sido suficiente mudar a cabeça dos padres (e depois acrescentava com um sorriso: "Mais fácil dizer do que fazer"...). Certamente não era contra as disposições do Vaticano II, mas com as suas palavras queria sublinhar que não era questão de latim ou italiano, de altar voltado para o Senhor ou de altar voltado para os fiéis, mas era tudo uma questão de como se posicionava em relação à liturgia e, em primeiro lugar, como o principal responsável pela celebração, o sacerdote, encarava a liturgia. Recordei estas suas palavras porque não gostaria que se depositassem demasiadas esperanças ilusórias na publicação da nova edição italiana do Missal Romano. Lemos elogios extensos e exagerados em todas as revistas especializadas e publicações do que outrora foi chamado de imprensa católica, como se a nova edição, finalmente libertada das garras dos escritórios do Vaticano, fosse em si um acontecimento salvífico... Não. A edição do Missal Romano não é e não será a panaceia que resolve os problemas da liturgia, aliás, talvez, os destaque ainda mais. Porque, devemos dizê-lo claramente, a liturgia está em crise. E está em crise porque em crise está a fé.
Daqui resulta, como várias vezes sublinhou lucidamente Bento XVI, que também a Igreja está em crise. Melhor, a crise de uma (a liturgia) surge da crise das outras, isto é, da crise da fé da Igreja, e, vice-versa, a crise da Igreja e da sua fé deriva da crise da liturgia, num movimento de recíproca dependência e influência. Tudo isto está diante dos olhos de cada um de nós, sacerdotes e fiéis. Portanto, não será a publicação e uso de um novo Missal a resolver as coisas. É preciso que primeiro mudar de perspectiva: é preciso recuperar a fé! Como? Antes de mais, recentrando a Liturgia – e consequentemente a vida – em Deus.
Aliás, que as orações litúrgicas sejam em latim, ou em italiano na primeira, na segunda ou na terceira versão, pouco importa se não nos lembramos que são dirigidas a Deus, que nos são dadas para podermos aceder ao mistério de Deus e entrar em comunhão com Ele, que constituem para nós fonte de santificação e meio para glorificar a Deus, como ensina o Concílio.
Que a oração do Pai-nosso seja traduzida de um modo e não de outro, pouco importará, se eu não sinto necessidade da conversão dos meus pecados, se eu não sei o que é pecado, se eu não considero mais nada como pecado, se eu não creio que exista alguém que me tente, isto é, que me empurre para o pecado, e que haja Alguém a quem eu pedir para ser poupado de uma tentação superior às minhas forças.
Que seja a “ceia do Senhor” ou a “ceia (das bodas) do Cordeiro”, pouco importa se eu não sei que o que faço na liturgia aqui na terra me prepara para a mesa escatológica do Reino; se não sei que a minha pátria está no céu; se não sei que a minha perspectiva final é a ressurreição e a vida eterna...
Pouco importa, se eu já não tenho o conceito do sagrado, do diálogo com Deus, se já não acredito na presença real de Cristo no Sacramento da Eucaristia.
Pouco importa, se considero a Missa apenas como uma reunião para fazer uma festa e não retenho mais a dimensão vertical da liturgia e o facto de que dentro dela, nas palavras e nos gestos do Missal, age Deus; e age para mim.
Claro, Deus na liturgia age através da mediação do homem: não é em vão que se utilizam sinais visíveis e capazes de antecipar e significar os dons sacramentais transmitidos pelos ritos. Mas qual homem? O homem, cuja mediação é necessária, não deve ser um homem “antropocêntrico”, totalmente concentrado e virado para si mesmo, voltado exclusivamente para o “humano”, auto-referencial a tal ponto de esquecer Deus ou colocá-lo entre parênteses; mas deve ser um homem “litúrgico”, isto é, aberto a Deus, desejoso de Deus, amigo de Deus, amante de Deus (diria Santo Agostinho), temente a Deus.
Eis por que é necessário recordar que na liturgia estamos na presença de Deus e O servimos, como nos recorda uma das Orações Eucarísticas: “damos-Vos graças porque nos tornastes dignos de estar na Vossa presença a cumprir o serviço sacerdotal" (PE II ). E é necessário recordarmos que este “estar na sua presença” e este “servi-lo nos santos mistérios” pressupõe que saibamos oferecer-lhe o melhor de nós mesmos, o melhor de quem somos, o melhor do que temos. E esse “melhor” não é o que nos agrada a nós, mas sim o que Lhe agrada a Ele. Pode até ser pouco, quanto possamos oferecer-Lhe, mas o importante é que seja “o melhor e tudo” que Lhe podemos dar, e é este "melhor e tudo" que devemos esforçar-nos por Lhe dar. Caso contrário, como poderemos ser na liturgia a “voz de toda a criatura” que se une à dos anjos, tal como a própria liturgia nos convida a cantar noutra das suas Orações eucarísticas: “Inúmeras hostes de anjos estão diante de Vós para Vos servir, contemplam a glória do vosso rosto e dia e noite cantam o vosso louvor. Junto com eles também nós, tornando-nos a voz de toda a criatura debaixo do céu, confessamos o vosso nome e exultantes Vos cantamos, ó Deus Três Vezes Santo” (PE IV)?
Como se vê, há muitas outros pressupostos a serem postos de antemão em jogo. Não bastará abrir o Missal no altar e ler alguma fórmula, seja ela nova ou velha. No fundo, o Missal é só um livro, enquanto a liturgia é vida. Vida de Deus que se nos comunica. A nossa vida que se oferece a Deus em sacrifício espiritual, em união com o sacrifício redentor de Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote.

Certamente, pensando na importância que assume o Missal não só para a nossa vida de oração mas também para a nossa vida de fé, é de esperar que seja cada vez mais fruto da Igreja e não o resultado de intervenções pessoais desta ou daquele outro liturgista ou pastor, como pelo contrário pareço intuir. Obviamente que os Missais ao longo dos séculos não foram escritos por anjos, mas as intervenções, que poderemos dizer de “desenvolvimento orgânico”, foram o resultado de uma partilha amplíssima do ponto de vista teológico, litúrgico, mistagógico, um “destilado” preparado por pessoas santas que trabalharam “de joelhos”, e não o fruto de correntes, reivindicações, partidarismos, caprichos, como a crónica da elaboração desta nova tradução infelizmente se nos apresentou.
Como todas as realidades humanas, o novo Missal apresenta aspectos positivos e negativos. Entre estes últimos é impossível não inserir o aspecto tipográfico: a falta do negrito, sempre utilizado nos Missais precedentes, torna a leitura extremamente cansativa, não obstante da defesa oficial: a escolha da fonte Requiem (sic!) apenas na sua variante normal foi efectuada “porque o negrito se considera pouco elegante e sobretudo pouco útil a fim de uma maior legibilidade” [1] (sic!!!). Na realidade o novo Missal mais parece um livro para se ler à mesa ou comodamente numa poltrona, do que um livro de altar, mais um livro de liturgista do que um livro de liturgo...

[1] Paolo Tomatis, Il Messale 2020: struttura, grafica, immagini, in Rivista di Pastorale Liturgica n 341 Luglio-Agosto 4/2020, p 36.

A falta de um critério unívoco e coerente para as traduções também evidencia o vai-e-vem a que a foi submetida a redacção. Por um lado, como por exemplo nas orações, temos novas traduções que respeitam admiravelmente o original latino e a mens contida na brevidade e profundidade teológica dos termos utilizados. Por outro lado, porém, temos traduções ad sensum ou verdadeiras e próprias interpretações como no caso do famigerado “não nos abandoneis na tentação...”. Houve uma briga pela tradução de um “et” (“assim como nós”) e deixou-se andar o muito mais significativo do ponto de vista teológico “pro multis”. Da série dois pesos e duas medidas. Com efeito, no caso do novo Missal os pesos e as medidas das traduções, segundo os especialistas, são três [2] ou mesmo cinco [3]. Um filólogo teria muito a dizer.

[2] Loris Della Pietra, La traduzione 2020: pregi e criticità, in Rivista di Pastorale Liturgica n 341 Luglio-Agosto 4/2020, p 30-34.

[3[ Angelo Lameri, Il Messale italiano 2020; i criteri della traduzione, in Rivista di Pastorale Liturgica n 341 Luglio-Agosto 4/2020, p 26-29.

Por outro lado, uma tradução mais atenta ao original latino responde também a uma necessidade destacada pela CEI, a de acompanhar a introdução e utilização do novo Missal com uma catequese mistagógica. De facto, assim está escrito na Apresentação:

o livro litúrgico permanece o primeiro e essencial instrumento para a digna celebração dos mistérios, para além do mais sólido fundamento de uma eficaz catequese litúrgica... Desta consciência deriva a importância de promover e encorajar uma acção pastoral destinada a valorizar o conhecimento e o bom uso do livro litúrgico, na dúplice perspectiva da celebração e do seu aprofundamento na mistagogia”. [4]

[4] MRI 2020, p VIII.

É claro que se uma tradução é banal e utiliza uma linguagem quotidiana, será bem difícil que possa dizer algo de profundo e que nos possa introduzir nos mistérios divinos através da mistagogia desse texto; mesmo que haja algum liturgista que considere a linguagem usada nos ritos ainda muito elevada e espere superá-la criando "uma linguagem litúrgica não religiosa" (sic!) para "diminuir o hiato cada vez maior que agora vemos existir entre os textos oficiais da liturgia e a concepção de Deus e a quotidiana experiência de fé dos crentes mais maduros”. Exatamente o contrário do que se deveria fazer: não é mais a liturgia que alimenta a fé dos crentes e abre ao mistério de Deus, mas sim os crentes (atenção, porém: os "mais maduros") que, a partir da sua concepção de Deus e da sua experiência, reescrevem a liturgia da Igreja e informam a fé...

[5] Goffredo Boselli, Le nozze dell’Agnello, San Paolo Cinisello Balsamo 2020, pp. 89-90.

Chegando aos elementos que mais de perto interessam aos leitores do nosso boletim, é de sublinhar como altamente positiva a expansão do número de Antífonas de Entrada e Comunhão. O auspício, obviamente, é que se produza quanto antes a recolha completa dos textos de todas as Antífonas de Entrada, Ofertório e Comunhão, com a respectiva salmodia, de modo a podermos ter um Gradual em língua italiana, completo e de referência primária para os compositores. Um ulterior elemento significativo do novo Missal, encontramo-lo no papel do canto, em particular no canto do celebrante em diálogo com os fiéis. A Apresentação afirma também que 

a beleza da liturgia surge da harmonia de gestos e palavras com que se é envolvido no mistério celebrado” e que, como ensina o Concílio, “[a] acção litúrgica reveste-se de maior nobreza quando é celebrada de modo solene com canto, com a presença dos ministros sagrados e a participação activa do povo.” (SC 113); na consciência de que o canto não é um mero elemento ornamental, mas uma parte necessária e integrante da solene liturgia (SC 112) e que, na escolha das partes destinadas ao canto, é oportuno dar a preferência «às que devem ser cantadas pelo sacerdote ou pelo diácono ou pelo leitor, com resposta do povo, bem como às que pertence ao sacerdote e ao povo proferir  conjuntamente" (IGMR 40), optou-se por inserir no corpo do texto algumas melodias que remetem às fórmulas gregorianas presentes na edição italiana do Missal Romano de 1983, adequando-as aos novos textos”. [6]

[6] MRI 2020, p. VII.

Se os princípios e recomendações aqui expressas não são uma novidade, é outrossim uma novidade, e não de pouca importância, ver inseridas estas partes com a sua notação no corpo do Missal, de modo que pareça também visualmente que o canto dos ministros é parte integrante e necessária da liturgia; e ainda mais interessante é a escolha preferencial pelas melodias gregorianas, uma escolha que ancora o nosso presente nas raízes profundas do fazer litúrgico, nesta uniformização com as escolhas das outras Conferências episcopais em todo o mundo. Por outro lado, é ainda o Concílio a sublinhar o papel que o canto gregoriano tem na liturgia: “como canto próprio da liturgia romana (...) terá este, por isso, na acção litúrgica, em igualdade de circunstâncias, o primeiro lugar.” (SC116). Se nos alegramos com a preferência dada às melodias que remetem aos módulos gregorianos, algumas perplexidades todavia ofuscam esta alegria. Em primeiro lugar, a escolha de usar o pentagrama e a notação redonda, uma escolha talvez mais ideológica do que prática, pois ao fazê-lo distanciamo-nos de uma tradição secular, empurrando ainda mais para o esquecimento o canto gregoriano que, ao invés, usa internacionalmente um seu bem preciso e testado tipo de escrita, que entre outras coisas goza de maior legibilidade e ocupa menos espaço tipográfico. De outros elementos, e melhor do que eu, tratará o artigo de Dom Alberto Turco neste mesmo número do nosso boletim.
Não nos resta mais, enfim, que acolher “in spiritu humilitatis” e em obediência quanto os ofícios da CEI nos ofereceram.

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