Alberto Turco
INICIAÇÃO À PALEOGRAFIA
Iniciação à «paleografia musical», à antiga escrita musical, é o tema do presente curso de canto gregoriano. A que nós temos nos nossos livros é uma «neografia» da escrita musical. Entre a paleografia e a neografia musical não há solução de continuidade. Não se decidiu num determinado dia passar da paleo... para a neo... -grafia, para se encontrar ainda nos livros actuais e também na música moderna - mais uma vez, não há solução de continuidade - os sinais paleográficos um pouco evoluídos. Todavia, será interessante descobrir o que da escrita evoluiu e o que mudou.
Digamos imediatamente que a notação neumática é «quironómica». O termo de origem grega χείρ = «mão» e νόμος = "regra" ou, mais provável, νευμα = «sinal», quer dizer que o gesto da mão traduz o neuma que segue a melodia. A definição de Dom E. Cardine é ainda mais significativa: «o ductus da pena desposa o ductus da voz».
É realmente verdade! Para aqueles que procuravam escrever no pergaminho tudo o que podiam - não muito, de facto! -, a sua mão seguiu a sua voz. Em palavras mais simples, a sua mão procurava exprimir o que estavam efectivamente executando. Daqui, o desenho gráfico dos «neumas»:
Capítulo I
A origem do neumas é assaz misteriosa. Mas, crê-se - e parece lógico - que os primeiras anotadores houvesses tomados em empréstimo os sinais que então usados para a música da palavra, isto é, os sinais de acentuação. Com efeito, era a única notação musical possível, mesmo que para nós não se trata de uma verdadeira notação musical.
«Acento», do latim accentus, composto por ad e cantus, é sinónimo de sílaba acentuada, cantada acima das outras e desenhada um sinal, um acento.
Os músicos tomaram os sinais dos acentos gramaticais para escrever a música, pelo facto de que já havia na sua palavra latina este elemento cantante, o chamado «cantus obscurior». Acentos havia dois, o acento agudo e o acento grave, e não era necessário inventar um outro.
Tomaram-se estes dois acentos como sinais neumáticos. Chamam-se sinais comuns, naturais, gerais, em contraposição a tudo o que é artificial, se assim se pode dizer.
O acento "agudo" () é traçado de baixo para cima e inclinado um pouco para a direita, quando é "sangalês".
O acento "grave" deveris ser o oposto de agudo; mas de facto, tomou uma extensão mais pequena e, na maioria das vezes, foi escrito horizontalmente (). Foi escrito de "esguelha" () para indicar um grande intervalo melódico descendente de terça ou quarta.
Eis quanto podiam fazer os músicos com estes dois sotaques, que porém não marcavam os intervalos.
Com os dois sinais fundamentais dos acentos - o acento agudo que sobe e o acento grave que desce - os músicos escreveram uma boa parte da música. Mas, não somente com sinais isolados, mas também com sinais "combinados":
Neste ponto, percebem-se já os limites deste sistema. Quando há duas notas, é claro que uma é grave e a outra é aguda, a menos que estejam em uníssono. Mas quando houver duas notas graves ou duas notas agudas de seguida? Seguramente haverá uma com um segundo emprego, que não se adaptará plenamente à definição. Tudo isto é muito relativo!
Tomemos o caso da sucessão de tractulus, à qual segue virga e tractulus:
Esta escrita neumática diz-nos que os dois últimos sons são inferiores ao último dó. A virga que os precede sublinha o acento. Na hipótese do exemplo citado, o acento está em uníssono com o que o preceder. Portanto, o uníssono dos dois últimos tractulus não é o mesmo que aquele que precede a virga. Ao invés, na hipótese que a virga indique um som mais agudo que o uníssono dos tractulus precedentes, não temos modo de saber se os tractulus depois da virga coincidem com o uníssono dos que a precedem. Tudo é relativo! Uma coisa é certa: com dois sinais, não se poderão nunca meter em relevo três intervalos. É inútil procurar! É metafisicamente impossível!
O verdadeiro drama tem que ver outrossim com o significado “mensuralístico” que se quis atribuir a estes dois sinais: o tractulus, a ser interpretado como “som breve”; a virga, “som longo”. Não se sabe quando isto aconteceu; mas sabe-se que esta interpretação mensuralista dos dois sinais durou até meados do séc. XIX.
E isto poderia ter-se verificado no séc. XII e XIII, na época em que a virga e o tractulus eram ainda as unidades de base. Uma vez transferidos os neumas para a pauta musical, a diferença entre nota alta e nota baixa era evidente e, portanto, não havia mais necessidade de virga e tractulus.
Todavia, a tradição de considerar a virga e o tractulus de diferentes valores rítmicos permaneceu por longo tempo. Nas velhas edições de Solesmes existem ainda algumas notas quadradas com hastes: por exemplo, na sequência Lætabundus de Natal, em Variæ preces (p. 70). Não nos é dado porém saber se os teóricos atribuíam efectivamente a estas virga um valor mais longo que às outras!
Foram necessários as provas de Dom J. Pothier [1] e Dom A. Moquereau [2] para demonstrar o contrário.
[1] POTHIER J., Mélodies Grégoriennes d’après la tradition, 1880 (ed. italiana : Le melodie gregoriane secondo la tradizione, Tournai-Roma, 1890). No Congresso de Arezzo, em 1882, três relatos: De la virga dans les neumes (48 p.), Une petite question de grammaire à propos du plain-chant (24 p.), La tradition dans la notation du plain-chant (32 p.) : cfr. COMBE P., Histoire de la restauration du chant grégorien d’après des documents inédits, Solesmes, 1969, p. 102.
[2] MOCQUEREAU A., Les accents grammaticaux et la mélodie du discours, in «Le nombre musical grégorien ou Rythmique grégorienne», t. I, Rome, Tournai, 1908, p. 132.
Vêm mais argumentos ao caso; mas o mais convincente é o do Versicularium sangalês (cód. St. Gallen, Stiftsbibliothek 381, século XI), o manuscrito que contém os versetos dos intróitos e das communio de todo o ano.
Os versetos mostram os tons solenes. Em muitos destes tons, descobre-se que
- a 1ª parte do verso é assinalada com virga;
- a 2ª parte (após o asterisco), com tractulus;
O emprego diferente das duas grafias é determinado pela posição do recitativo, com referência ao movimento melódico precedente e seguinte:
Pelo exemplo do tom relatado, é impossível crer que, na primeira parte, se cantassem sílabas de dois tempos (virga) e, na segunda parte, sílabas breves (tractulus). E no entanto, músicos de igreja e presidentes do Pontifício de música sacra acreditaram e praticaram isto. É a base do mensuralismo:
punctum = breve virga = longa
e, por consequência, o resto:
podatus = três tempos: 1 breve + 1 longa
Em defesa de um certo mensuralismo, os teóricos do séc. XII e XIII sustinham que a música é paragonável à poesia, onde existem pés longos e pés breves. Era efectivamente uma realidade para eles? Tratava-se duma sua invenção ou, mais provavelmente, uma tentativa de explicar como cantar música? É difícil dizê-lo!
Dom Pothier e Dom Mocquereau falam de ritmo oratório: o ritmo do canto gregoriano é o ritmo do discurso.
Portanto, virga e tractulus: dois sinais de alternância relativa, não de longueza!
A escrita sangalesa tem uma preferência pela virga: nos casos incertos, tendo que escolher, escolhe a virga.
Quando uma linha melódica sobe em modo regular, obviamente, pode indicar-se com um punctum ou tractulus, metendo uma virga no agudo para o som mais alto... ou se não apenas virgas. Bem! São Galo escolhe a virga. Por que motivo? Porque a virga oferece indicações adicionais em comparação com o punctum (tractulus).
Tomemos o seguinte texto:
Hartker (f° 25) escreve quatro virga dispostas de maneira ascendente, indicando assim uma diastemacia que poderíamos definir como "precisa", no sentido de que, quando conhecemos o que o compositor pretende, podemos segui-lo; mas quando o não sabemos, estamos seguros de nos enganarmos seguindo-o.
É preciso admitir que a virga é mais adequada que o punctum/tractulus para indicar esta diastemacia, este meter em cena das notas.
Os compositores procuraram de vários modos precisar a diastemacia da virga empregando virga de várias dimensões: cfr. exemplo seguinte, retirado do Antifonário-Gradual de Mont-Renaud, séc. X-XI, f° 73v;
ou recorrendo a letras adjuntivas de significado melódico:
s = superius: um pouco mais alto;
i = inferius: um pouco mais baixo, etc.
Isso para dizer o quão adiante tiveram que seguir! Infelizmente, os compositores não haviam inventada ainda a “linha” para indicar o uníssono. Tome-se o exemplo de Reges Tharsis, o ofertório da Epifania:
Neste exemplo, os neumistas ainda não tinham qualquer ideia da representação gráfica do uníssono. Há essa mudança de posição da segunda virga que ofusca a ideia de uma linha horizontal.
Todavia, neste exemplo, evidencia-se a diferença entre:
uma virga episemada
e o punctum tornado stropha, no estilo ornado.
Entre as duas grafias há uma diferença, não de longueza, mas de expressão.
Com o tractulus, não se podem fazer grandes coisas. Vem escrito horizontalmente ou com grafia inclinada:
A grafia inclinada do tractulus indica a descida da nota por um intervalo de terça ou de quarta.
Os «Episemas»
- a grafia com dois episemas
Uma redução gráfica do tractulus é assinalada com um ponto ( . ). Esta grafia encontra-se somente nalguns manuscritos, entre os quais o Cantatorium (St. Gallen, Stiftsbibliothek 359, séc. X in.), o manuscrito mais antigo, mas também o mais perfeito do ponto de vista gráfico, o mais cuidado nos detalhes. Depois disto não há se não decadência. O Cantatorium usa o pequeno punctum no estilo ornado da missa.
Laon (cód. Laon, Bibl. Mun. 239, Graduale, cerca de 930) usa o pequeno punctum mais frequentemente que São Gallo.
Cada escola tem as suas vantagens e desvantagens. Não podem ter tudo nem exprimir tudo.
(continua)
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