Gilberto Sessantini
O "NOVO" MISSAL
Um antigo Pároco meu, cuja memória guardo com carinho, costumava dizer que não era necessário fazer qualquer reforma litúrgica, mas que teria sido suficiente mudar a cabeça dos padres (e depois acrescentava com um sorriso: "Mais fácil dizer do que fazer"...). Certamente não era contra as disposições do Vaticano II, mas com as suas palavras queria sublinhar que não era questão de latim ou italiano, de altar voltado para o Senhor ou de altar voltado para os fiéis, mas era tudo uma questão de como se posicionava em relação à liturgia e, em primeiro lugar, como o principal responsável pela celebração, o sacerdote, encarava a liturgia. Recordei estas suas palavras porque não gostaria que se depositassem demasiadas esperanças ilusórias na publicação da nova edição italiana do Missal Romano. Lemos elogios extensos e exagerados em todas as revistas especializadas e publicações do que outrora foi chamado de imprensa católica, como se a nova edição, finalmente libertada das garras dos escritórios do Vaticano, fosse em si um acontecimento salvífico... Não. A edição do Missal Romano não é e não será a panaceia que resolve os problemas da liturgia, aliás, talvez, os destaque ainda mais. Porque, devemos dizê-lo claramente, a liturgia está em crise. E está em crise porque em crise está a fé.
Daqui resulta, como várias vezes sublinhou lucidamente Bento XVI, que também a Igreja está em crise. Melhor, a crise de uma (a liturgia) surge da crise das outras, isto é, da crise da fé da Igreja, e, vice-versa, a crise da Igreja e da sua fé deriva da crise da liturgia, num movimento de recíproca dependência e influência. Tudo isto está diante dos olhos de cada um de nós, sacerdotes e fiéis. Portanto, não será a publicação e uso de um novo Missal a resolver as coisas. É preciso que primeiro mudar de perspectiva: é preciso recuperar a fé! Como? Antes de mais, recentrando a Liturgia – e consequentemente a vida – em Deus.
Aliás, que as orações litúrgicas sejam em latim, ou em italiano na primeira, na segunda ou na terceira versão, pouco importa se não nos lembramos que são dirigidas a Deus, que nos são dadas para podermos aceder ao mistério de Deus e entrar em comunhão com Ele, que constituem para nós fonte de santificação e meio para glorificar a Deus, como ensina o Concílio.
Que a oração do Pai-nosso seja traduzida de um modo e não de outro, pouco importará, se eu não sinto necessidade da conversão dos meus pecados, se eu não sei o que é pecado, se eu não considero mais nada como pecado, se eu não creio que exista alguém que me tente, isto é, que me empurre para o pecado, e que haja Alguém a quem eu pedir para ser poupado de uma tentação superior às minhas forças.
Que seja a “ceia do Senhor” ou a “ceia (das bodas) do Cordeiro”, pouco importa se eu não sei que o que faço na liturgia aqui na terra me prepara para a mesa escatológica do Reino; se não sei que a minha pátria está no céu; se não sei que a minha perspectiva final é a ressurreição e a vida eterna...
Pouco importa, se eu já não tenho o conceito do sagrado, do diálogo com Deus, se já não acredito na presença real de Cristo no Sacramento da Eucaristia.
Pouco importa, se considero a Missa apenas como uma reunião para fazer uma festa e não retenho mais a dimensão vertical da liturgia e o facto de que dentro dela, nas palavras e nos gestos do Missal, age Deus; e age para mim.
Claro, Deus na liturgia age através da mediação do homem: não é em vão que se utilizam sinais visíveis e capazes de antecipar e significar os dons sacramentais transmitidos pelos ritos. Mas qual homem? O homem, cuja mediação é necessária, não deve ser um homem “antropocêntrico”, totalmente concentrado e virado para si mesmo, voltado exclusivamente para o “humano”, auto-referencial a tal ponto de esquecer Deus ou colocá-lo entre parênteses; mas deve ser um homem “litúrgico”, isto é, aberto a Deus, desejoso de Deus, amigo de Deus, amante de Deus (diria Santo Agostinho), temente a Deus.
Eis por que é necessário recordar que na liturgia estamos na presença de Deus e O servimos, como nos recorda uma das Orações Eucarísticas: “damos-Vos graças porque nos tornastes dignos de estar na Vossa presença a cumprir o serviço sacerdotal" (PE II ). E é necessário recordarmos que este “estar na sua presença” e este “servi-lo nos santos mistérios” pressupõe que saibamos oferecer-lhe o melhor de nós mesmos, o melhor de quem somos, o melhor do que temos. E esse “melhor” não é o que nos agrada a nós, mas sim o que Lhe agrada a Ele. Pode até ser pouco, quanto possamos oferecer-Lhe, mas o importante é que seja “o melhor e tudo” que Lhe podemos dar, e é este "melhor e tudo" que devemos esforçar-nos por Lhe dar. Caso contrário, como poderemos ser na liturgia a “voz de toda a criatura” que se une à dos anjos, tal como a própria liturgia nos convida a cantar noutra das suas Orações eucarísticas: “Inúmeras hostes de anjos estão diante de Vós para Vos servir, contemplam a glória do vosso rosto e dia e noite cantam o vosso louvor. Junto com eles também nós, tornando-nos a voz de toda a criatura debaixo do céu, confessamos o vosso nome e exultantes Vos cantamos, ó Deus Três Vezes Santo” (PE IV)?
Como se vê, há muitas outros pressupostos a serem postos de antemão em jogo. Não bastará abrir o Missal no altar e ler alguma fórmula, seja ela nova ou velha. No fundo, o Missal é só um livro, enquanto a liturgia é vida. Vida de Deus que se nos comunica. A nossa vida que se oferece a Deus em sacrifício espiritual, em união com o sacrifício redentor de Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote.
Certamente, pensando na importância que assume o Missal não só para a nossa vida de oração mas também para a nossa vida de fé, é de esperar que seja cada vez mais fruto da Igreja e não o resultado de intervenções pessoais desta ou daquele outro liturgista ou pastor, como pelo contrário pareço intuir. Obviamente que os Missais ao longo dos séculos não foram escritos por anjos, mas as intervenções, que poderemos dizer de “desenvolvimento orgânico”, foram o resultado de uma partilha amplíssima do ponto de vista teológico, litúrgico, mistagógico, um “destilado” preparado por pessoas santas que trabalharam “de joelhos”, e não o fruto de correntes, reivindicações, partidarismos, caprichos, como a crónica da elaboração desta nova tradução infelizmente se nos apresentou.
Como todas as realidades humanas, o novo Missal apresenta aspectos positivos e negativos. Entre estes últimos é impossível não inserir o aspecto tipográfico: a falta do negrito, sempre utilizado nos Missais precedentes, torna a leitura extremamente cansativa, não obstante da defesa oficial: a escolha da fonte Requiem (sic!) apenas na sua variante normal foi efectuada “porque o negrito se considera pouco elegante e sobretudo pouco útil a fim de uma maior legibilidade” [1] (sic!!!). Na realidade o novo Missal mais parece um livro para se ler à mesa ou comodamente numa poltrona, do que um livro de altar, mais um livro de liturgista do que um livro de liturgo...
[1] Paolo Tomatis, Il Messale 2020: struttura, grafica, immagini, in Rivista di Pastorale Liturgica n 341 Luglio-Agosto 4/2020, p 36.
A falta de um critério unívoco e coerente para as traduções também evidencia o vai-e-vem a que a foi submetida a redacção. Por um lado, como por exemplo nas orações, temos novas traduções que respeitam admiravelmente o original latino e a mens contida na brevidade e profundidade teológica dos termos utilizados. Por outro lado, porém, temos traduções ad sensum ou verdadeiras e próprias interpretações como no caso do famigerado “não nos abandoneis na tentação...”. Houve uma briga pela tradução de um “et” (“assim como nós”) e deixou-se andar o muito mais significativo do ponto de vista teológico “pro multis”. Da série dois pesos e duas medidas. Com efeito, no caso do novo Missal os pesos e as medidas das traduções, segundo os especialistas, são três [2] ou mesmo cinco [3]. Um filólogo teria muito a dizer.
[2] Loris Della Pietra, La traduzione 2020: pregi e criticità, in Rivista di Pastorale Liturgica n 341 Luglio-Agosto 4/2020, p 30-34.
[3[ Angelo Lameri, Il Messale italiano 2020; i criteri della traduzione, in Rivista di Pastorale Liturgica n 341 Luglio-Agosto 4/2020, p 26-29.
Por outro lado, uma tradução mais atenta ao original latino responde também a uma necessidade destacada pela CEI, a de acompanhar a introdução e utilização do novo Missal com uma catequese mistagógica. De facto, assim está escrito na Apresentação:
“o livro litúrgico permanece o primeiro e essencial instrumento para a digna celebração dos mistérios, para além do mais sólido fundamento de uma eficaz catequese litúrgica... Desta consciência deriva a importância de promover e encorajar uma acção pastoral destinada a valorizar o conhecimento e o bom uso do livro litúrgico, na dúplice perspectiva da celebração e do seu aprofundamento na mistagogia”. [4]
[4] MRI 2020, p VIII.
É claro que se uma tradução é banal e utiliza uma linguagem quotidiana, será bem difícil que possa dizer algo de profundo e que nos possa introduzir nos mistérios divinos através da mistagogia desse texto; mesmo que haja algum liturgista que considere a linguagem usada nos ritos ainda muito elevada e espere superá-la criando "uma linguagem litúrgica não religiosa" (sic!) para "diminuir o hiato cada vez maior que agora vemos existir entre os textos oficiais da liturgia e a concepção de Deus e a quotidiana experiência de fé dos crentes mais maduros”. Exatamente o contrário do que se deveria fazer: não é mais a liturgia que alimenta a fé dos crentes e abre ao mistério de Deus, mas sim os crentes (atenção, porém: os "mais maduros") que, a partir da sua concepção de Deus e da sua experiência, reescrevem a liturgia da Igreja e informam a fé...
[5] Goffredo Boselli, Le nozze dell’Agnello, San Paolo Cinisello Balsamo 2020, pp. 89-90.
Chegando aos elementos que mais de perto interessam aos leitores do nosso boletim, é de sublinhar como altamente positiva a expansão do número de Antífonas de Entrada e Comunhão. O auspício, obviamente, é que se produza quanto antes a recolha completa dos textos de todas as Antífonas de Entrada, Ofertório e Comunhão, com a respectiva salmodia, de modo a podermos ter um Gradual em língua italiana, completo e de referência primária para os compositores. Um ulterior elemento significativo do novo Missal, encontramo-lo no papel do canto, em particular no canto do celebrante em diálogo com os fiéis. A Apresentação afirma também que
“a beleza da liturgia surge da harmonia de gestos e palavras com que se é envolvido no mistério celebrado” e que, como ensina o Concílio, “[a] acção litúrgica reveste-se de maior nobreza quando é celebrada de modo solene com canto, com a presença dos ministros sagrados e a participação activa do povo.” (SC 113); na consciência de que o canto não é um mero elemento ornamental, mas uma parte necessária e integrante da solene liturgia (SC 112) e que, na escolha das partes destinadas ao canto, é oportuno dar a preferência «às que devem ser cantadas pelo sacerdote ou pelo diácono ou pelo leitor, com resposta do povo, bem como às que pertence ao sacerdote e ao povo proferir conjuntamente" (IGMR 40), optou-se por inserir no corpo do texto algumas melodias que remetem às fórmulas gregorianas presentes na edição italiana do Missal Romano de 1983, adequando-as aos novos textos”. [6]
[6] MRI 2020, p. VII.
Se os princípios e recomendações aqui expressas não são uma novidade, é outrossim uma novidade, e não de pouca importância, ver inseridas estas partes com a sua notação no corpo do Missal, de modo que pareça também visualmente que o canto dos ministros é parte integrante e necessária da liturgia; e ainda mais interessante é a escolha preferencial pelas melodias gregorianas, uma escolha que ancora o nosso presente nas raízes profundas do fazer litúrgico, nesta uniformização com as escolhas das outras Conferências episcopais em todo o mundo. Por outro lado, é ainda o Concílio a sublinhar o papel que o canto gregoriano tem na liturgia: “como canto próprio da liturgia romana (...) terá este, por isso, na acção litúrgica, em igualdade de circunstâncias, o primeiro lugar.” (SC116). Se nos alegramos com a preferência dada às melodias que remetem aos módulos gregorianos, algumas perplexidades todavia ofuscam esta alegria. Em primeiro lugar, a escolha de usar o pentagrama e a notação redonda, uma escolha talvez mais ideológica do que prática, pois ao fazê-lo distanciamo-nos de uma tradição secular, empurrando ainda mais para o esquecimento o canto gregoriano que, ao invés, usa internacionalmente um seu bem preciso e testado tipo de escrita, que entre outras coisas goza de maior legibilidade e ocupa menos espaço tipográfico. De outros elementos, e melhor do que eu, tratará o artigo de Dom Alberto Turco neste mesmo número do nosso boletim.
Não nos resta mais, enfim, que acolher “in spiritu humilitatis” e em obediência quanto os ofícios da CEI nos ofereceram.
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