Alberto Turco
OS CANTOS DO CELEBRANTE
A forma cantada da liturgia tem por fim a sublimação da Palavra de Deus. Desvinculada de linguagem “habitual”, torna-se uma comunicação mais eficiente daquela. Por isto, desde a era apostólica, se fez uso do canto em todas as celebrações da liturgia cristã.
A participação activa e comunitária na liturgia cantada começa com a do celebrante principal e dos ministros da celebração.
«É possível não pedir a cada celebrante que cante peças musicais muito elaboradas que supõem um estudo aprofundado, mas pode-se exigir que se empenhe em "dizer" os textos litúrgicos respeitando a sua forma e realçando o seu significado: é a finalidade dos “recitativos” muito simples e antigos, que, desde os séculos mais remotos, sustiveram a oração de todos os celebrantes no exercício do seu sacerdócio ministerial”. [1]
[1] CLAIRE J., Presentazione a «Ecce Agnus Dei», CD, Libreria Editrice Vaticana, 2001
É quanto temos nós de mais fundamental, porque tudo partiu do estilo da “cantilação”. Constitui-se esta de uma corda de recitação, que pode subir um pouco pelo acento privilegiado do texto, ou descer para a cadência. É a característica da mais antiga forma estético-modal, que assim permaneceu nas orações simples: colecta, sobre as oblatas, pós-comunhão. Os cantos, também chamados de “tons” do celebrante, que a história da liturgia conservou na memória até o séc. XV, formam uma única família, aquela que em torno da corda de recitação comportava sons (notas) estáveis, sem possibilidade de alterações "semitonais", que poderiam comprometer a sua difusão homogénea.
Os tons recitativos do celebrante e dos ministros, que a história do canto litúrgico transmitiu às fontes manuscritas, pertencem à família de Ré e à família de Dó.
Como colocar na história a família dos recitativos em Dó em relação à família, bem mais completa, dos recitativos em Ré?
A crítica externa aos manuscritos, conhecidos até hoje, não nos consente tirarmos quaisquer conclusões sobre a sua origem e data.
À primeira vista, para os paleógrafos que têm longa experiência destas formas fragmentárias, os recitativos em Dó aparecem frequentemente como corrupções tardias daqueles em Ré. Na restauração do repertório milanês, estes recitativos foram eliminados como "intrusos". [2]
[2] Cfr. Ambrosius, Milano, 1927, p. 13; 1929, p. 202; 1930, p. 118; 1930, p. 139 e p. 152. Por outro lado: CLAIRE J., Les chants du Célébrant, in «Revue Grégorienne», n. 6, 1963, p. 131, nota 2.
Tratar-se-á talvez duma presunção desfavorável à autenticidade dos recitativos em Dó? Diante da riqueza de formas em Ré, o aporte de Dó parece à primeira vista de todo insignificante. A Vaticana admite o recitativo de Dó no tom das orações, leituras e monições. As fontes doutras tradições litúrgico-musicais concedem também ao tom de Dó uma elasticidade de fórmulas, que a Vaticano refuta.
O facto é que a Vaticana define o tom de Dó recentior e o tom de Ré antiquior.
No presente excursus sobre os tons do celebrante, são levados em consideração o canto das Orações simples e da Oração eucarística.
AS ORAÇÕES SIMPLES
Partamos do seguinte prospecto, no qual se mete em confronto o tom recitativo de Ré, na corda de recitação Lá, com o tom de Dó.
A oração consta de duas secções: a oração propriamente dita (A) e a doxologia (B).
Os sinais de pontuação da oração (A) são dois: o metrum e o punctum. No tom de Ré, o metrum é representado pela inflexão da voz no Sol; enquanto o punctum com acento na corda de recitação (Lá), precedido de duas sílabas em Sol.
No tom de Dó, o metrum é representado pelo acento na corda de recitação Dó, precedido por duas sílabas; enquanto no punctum há o acento na corda de recitação Dó e a nota final em Dó, no tom festivo, no Lá, no tom simples, e no Fá, no tom ferial. O tom de Dó mais antigo é aquele que tem a nota final em Lá.
A doxologia (B) acrescenta, no tom de Ré (= corda de recitação Lá), um terceiro elemento, ou seja, a conclusio. Esta termina em Sol, antes da resposta Ámen. Do ponto de vista composicional, parece um desdobramento do punctum da oração, por causa do Ámen.
Esta conclusio repete-se também nos demais textos dos recitativos, como introdução “habitual” à resposta da assembleia. Vejam-se os seguintes exemplos: a saudação Dominus vobiscum, a conclusio do Per ipsum, do Pater (in tentationem + resposta sed libera nos a malo), da Pax Domini, do Benedicat vos. Observemos o tom deste último.
A doxologia no tom de Dó, não tendo uma fórmula para a conclusio, faz preceder ao metrum a mesma pontuação do punctum, no Lá, chamando-o de flexa.
A cadência desta última e do punctum + o Àmen no Si é um sinal de corrupção, que foi finalmente removido das edições actuais do canto gregoriano. Trata-se duma cópia incorrecta do tom de Ré transferido para Dó.
É bom esclarecer desde já que a pontuação da flexa não se encontra no texto da oração tout court. A flexa está ausente nos tons recitativos mais antigos do celebrante. Não existe nos Prefácios, no Pater, etc..
No mesmo tom de Dó há um episódio curioso na fórmula da bênção, onde se encontram dois metrum de seguida.
Além disso, não há flexa nos tons salmódicos semi-ornados dos intróito e communio.
O Missale Romanum, editio typica tertia, ano 2002, no tom da oração, admite a flexa como facultativa (omitti potest) após o metrum, se o texto fôr longo.
O novo Missal Romano, terceira edição em língua italiana, 2020, mantém a forma iuxta typicam do tom da oração, não obstante as objecções dos ingénuos mestres do canto litúrgico ou neo-gregorianistas, que quereriam uniformizar também a pontuação da doxologia com o texto da oração.
A estes tais sugiro observar, no novo Missal em língua italiana, a pontuação dos prefácios, onde descobrirão que o metrum está sempre presente e repetido várias vezes, ao passo que é facultativo, depois do metrum, o emprego da cesura com acento no agudo, se o texto assim o exigir, antes da conclusio.
A ORAÇÃO EUCARÍSTICA
A Oração eucarística (Prex Eucharistica ou Cânon) abre-se com o diálogo do prefácio e conclui-se com a doxologia Per ipsum. É o coração de toda a celebração da missa.
Desenvolve-se em três momentos progressivos:
- na acção de graças, com o Prefácio e a aclamação Sanctus;
- no memorial dos principais mistérios da vida de Jesus Cristo. É a parte estritamente sacerdotal, confiada ao celebrante e aos concelebrantes, com a breve intervenção da assembleia na aclamação após as palavras da consagração;
- na doxologia ou glorificação trinitária, à qual a assembleia adere com o canto do Amém.
Cada uma das três partes possui uma especial entoação sonora. A acção de graças e a doxologia têm uma marcada entonação lírica: sobe com o tenor à terça, em Fá. O memorial tem a entonação típica da oração, em Ré, com acentuação melódica mais elevada que a corda de recitação, em Mi, para as palavras consagratórias. Tudo segundo um esquema de composição de tipo dramático, que se encontra também em outras bênçãos solenes (o círio pascal, a água baptismal) e as consagrações (dedicações, ordenações).
A aclamação da assembleia, por exemplo no antiquíssimo Sanctus XVIII, canta em Mi (= Si, na transcrição do Vaticano). Mas a sua conclusio ocorre em Ré (= Lá), com a fórmula clássica do tom arcaico de Re, para permitir a continuação da Prex eucharistica.
O tom recitativo da Oração Eucarística do Missale Romanum, editio typica tertia, entrou finalmente também na terceira edição (2020) do Missal Romano, promulgada pela Conferência Episcopal Italiana.
A ORAÇÃO DO SENHOR
A oração do Pai Nosso (Pater), reservada ao celebrante até à reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, é cantada inteiramente pela assembleia no tom das outras orações, mas com acentos melódico-verbais privilegiados em Mi (= Si) e Fá (= Dó) na escrita da Vaticana. A conclusio desce para Dó (= Sol), para a retomada do embolismo Líbera nos. É de assinalar o termo grave Lá (= Mi), o único em toda a melodia do Pater, no início de et ne nos indúcas in tentatiónem, com o objectivo de preparar a intervenção da assembleia com as palavras sed líbera nos a malo. Uma espécie de pseudo versus + responsa. Tanto no texto latino como no italiano, manteve-se a dicção melódica originária desta parte final do Pater, se bem que cantado inteiramente pela assembleia.
AS ACLAMAÇÕES
Com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II introduziu-se, na Oração Eucarística, uma aclamação após a consagração e uma segunda aclamação nos ritos de comunhão. Das três fórmulas textuais de aclamação após a consagração, apenas à Mortem tuam annuntiamus se atribuiu melodia. Qual melodia? A da ant. Crucem tuam adoramus (GT 175), cuja primeira parte coincide perfeitamente com o recitativo da oração eucarística:
Ant. Crucem tuam adoramus, Domine:
Acl. Mortem tuam annuntiamus, Domine: (igual melodia)
et sanctam ressurrectionem tuam
et tuam ressurrectionem confitemur, (igual cadência)
donec venias: o texto e a melodia de donec veniam da ant. Hic est discipulus meus (AM 256). A Comissão De libris cantus liturgici revisendis et edendi não quis, de propósito, elaborar a melodia para as outras duas aclamações.
A aclamação Quia tuum est regnum repropõe o tom da embolia, com a única acentuação melódica à terça, em Dó (=Fá), de potestas.
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