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segunda-feira, 29 de abril de 2024

Sessantini: a expressão “ceteris paribus” em Sacrossanctum Concilium 116

Continuamos a tradução e republicação
dos esplêndidos artigos contidos no 

Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano «Dom Jean Claire» - Verona
Ano II - n° 2 - Maio - Agosto 2020

  

Gilberto Sessantini

O significado da expressão “ceteris paribus”

AAS: Acta Apostolicae Sedis
IMSSL: Instr. De Música Sacra et Sacra Liturgia, 1958
MD: Mediador Dei, 1947
MS: Musicam Sacram, 1967
MSD: Música Sacrae Disciplina, 1955
SC: Sacrosanctum Concilium, 1963

Depois de nos termos debruçado num precedente artigo [1] sobre o estatuto do “canto próprio da liturgia romana” aplicado ao canto gregoriano pelo n° 116 da Sacrosanctum Concilium, queremos dedicar algumas linhas à expressão “ceteris paribus” ̶ normalmente traduzida como “ em igualdade de condições" ̶ presente no mesmo número da constituição conciliar e, em sua maioria, interpretada em sentido restritivo, ou seja, limitando o uso do canto gregoriano. Em primeiro lugar, revisemos integralmente o texto em questão, porque, como é óbvio e oportuno, a primeira operação a fazer quando se fala de um inciso é colocá-lo no seu justo contexto:

Ecclesia cantum gregorianum agnoscit ut liturgiae romanae proprium: qui ideo in actionibus liturgicis, ceteris paribus, principem locum obtineat. Alia genera Musicae sacrae, praesertim vero polyphonia, in celebrandis divinis Officiis minime excluduntur, dummodo spiritui actionis liturgicae respondeant, ad normam art. 30.” [2]

[1] G. SESSANTINI, Il gregoriano e il suo statuto di “canto proprio della liturgia romana, in Vox gregoriana, Bollettino informativo del centro di Canto Gregoriano e monodie "dom Jean Claire" Verona, anno I, n° 2 Maggio-Agosto 2019.

[2] SC 116.

A afirmação principal, que assim fundamenta todo o número 116, é que a Igreja reconhece o canto gregoriano como o canto próprio da liturgia romana. Desta afirmação de princípio derivam duas consequências práticas. A primeira é que nas celebrações deve reservar-se-lhe o lugar principal. A segunda, todavia, é que não devem ser excluídos, de modo algum, outros géneros de música sacra por causa desta primazia do canto gregoriano. Encontramo-nos perante um princípio claro e duas consequências práticas que dele decorrem e que são igualmente claras. Qual é, então, o significado de um aparte como aquele inserido na primeira consequência prática derivada do princípio básico afirmado precedentemente?

Para compreendê-lo, devemos antes de mais reconstruir a génese da referida passagem e, de forma mais geral, das declarações de princípio relativas ao canto gregoriano.

Como muitas outras declarações da Sacrosanctum Concilium, também aquela em questão é devedora do Magistério precedente, contrariamente ao que se crê. No que diz respeito à liturgia, à música sacra em geral e ao canto gregoriano em particular - para além das afirmações de princípio presentes nos documentos da primeira metade do século XX, cujo fundador foi o Motu proprio Inter sollicitudines [3] de Pio X -, é sobretudo o riquíssimo magistério de Pio XII a fazer escola, com uma primeira Encíclica, a Mediador Dei de 1947, estabelecendo todo o seu pensamento sobre a liturgia; uma segunda Encíclica, a Musicae Sacrae Disciplina de 1955, inteiramente dedicada à música sacra [4]; e finalmente uma Instructio de Musica Sacra et Sacra Liturgia, da Sagrada Congregação dos Ritos de 1958 [5], que pode considerar-se verdadeiramente como “o testamento espiritual de Pio XII em matéria litúrgica” [6]. É precisamente neste último documento que aparece pela primeira vez nos documentos magisteriais a expressão “ceteris paribus”:

Cantus gregorianus est cantus sacer, Ecclesiae romanae proprius et principalis; ideoque in omnibus actionibus liturgicis non solum adhiberi potest, sed, ceteris paribus, aliis Musicae sacrae generibus est praeferendus”. (IMSSL 16) [7]

[3] Ver também a Carta ao Card. Respighi: Acta Pii X, vol. I, pp. 68-74; v. p. 73s; Acta Apostolicae Sedis (AAS) 36 (1903-04), pp. 325-329, 395-398, v. 398. Também Pio XI disto se ocupa: ver PIUS XI, Const. apost. Divini cultus: AAS 21(1929), p. 33s.

[4] Em AAS 48(1956), pp. 5-25. Eis as expressões altamente elogiativas reservadas ao gregoriano: “A essa santidade se presta sobretudo o canto gregoriano, que desde tantos séculos se usa na Igreja, a ponto de se poder dizê-lo património seu. Pela íntima aderência das melodias às palavras do texto sagrado, esse canto não só quadra a este plenamente, mas parece quase interpretar-lhe a força e a eficácia, instilando doçura na alma de quem o escuta; e isso por meios musicais simples e fáceis, mas permeados de tão sublime e santa arte, que em todos suscitam sentimentos de sincera admiração, e se tornam para os próprios entendedores e mestres de música sacra uma fonte inexaurível de novas melodias. Conservar cuidadosamente esse precioso tesouro do canto gregoriano e fazer o povo amplamente participante dele, compete a todos aqueles a quem Jesus Cristo confiou a guarda e a dispensação das riquezas da Igreja. Por isso, aquilo que os Nossos predecessores são Pio X, com toda a razão chamado restaurador do canto gregoriano, e Pio XI, sabiamente ordenaram e inculcaram, também nós queremos e prescrevemos que se faça, prestando-se atenção às características que são próprias do genuíno canto gregoriano; isto é, que na celebração dos ritos litúrgicos se faça largo uso desse canto, e se providencie com todo o cuidado para que ele seja executado com exactidão, dignidade e piedade”.

[5] In AAS 50 (1958), pp. 630-663.

[6] F. ANTONELLI, L’Istruzione della Sacra Congregazione dei Riti sulla Musica Sacra e la Sacra Liturgia, Opera della Regalità, Milano 1958, p.5.

[7] Instr. De Musica Sacra et Sacra Liturgia, (IMSSL) n° 16. Texto em F. ANTONELLI, op. cit. Em italiano, na tradução oficial: “Il canto gregoriano è il canto sacro proprio e principale della Chiesa romana. Perciò in tutte le azioni liturgiche, non solo si può usare, ma anche, a parità di condizioni, è da preferirsi agli altri generi di Musica sacra”.
N. do T.: Em português, na Instrução sôbre a Música Sacra e a Sagrada Liturgia. 1958. Editôra Vozes Ltda., Petrópolis, R. J., Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte: «16. Canto gregoriano é o canto sacro principal e próprio da Igreja romana. Portanto, não só pode ser usado em todos os atos litúrgicos, mas, em igualdade de condições, deve ser preferido aos outros gêneros de Música sacra».

O contexto no qual este parágrafo dedicado ao canto gregoriano se insere é o “Capítulo II: Normas gerais". Sobre o gregoriano já se havia dito algo, mas num sentido mais genérico, no parágrafo n.º 5 do “Capítulo I: Noções gerais”. As “Normas gerais” do segundo capítulo da Instrução preocupam-se em traçar a execução das acções litúrgicas “conforme os livros litúrgicos devidamente aprovados pela Sé Apostólica” [8], especificando que “a língua dos atos litúrgicos é o latim” [9] e que, portanto, “nas Missas cantadas, ùnicamente a língua latina deverá ser usada” [10], assim como nas missas rezadas, à excepção de “algumas orações ou cantos populares” [11] que podem ser feitos em vernáculo, e ainda “o Evangelho e também a Epístola sejam lidos em vernáculo por algum leitor, para proveito dos fiéis” [12]. O n.º 16 prossegue com a exposição do princípio supracitado do qual derivam as seguintes consequências:

Por conseguinte: a) A língua do canto gregoriano, como canto litúrgico, é ùnicamente o latim. b) As partes dos atos litúrgicos que, conforme as rubricas, são cantadas pelo sacerdote celebrante e por seus ministros, o devem ser ùnicamente no canto gregoriano constante das edições típicas (...). c) Onde, por  Indultos particulares, fôr permitido que nas Missas cantadas o sacerdote celebrante, o diácono ou o subdiácono ou o leitor, depois de cantados em gregoriano os textos da Epístola ou da Lição e o Evangelho, possam proclamar os mesmos textos também na língua vernácula, deve isso ser feito por meio de uma leitura em voz alta e distinta, com exclusão de qualquer melodia gregoriana, autêntica ou imitada”. [13]

[8] IMSSL 12.

[9] IMSSL 13.

[10] IMSSL 14a.

[11] IMSSL 14b.

[12] IMSSL 14c.

[13] IMSSL 16.

É claro que o contexto legislativo de IMSSL 16 diz respeito à vontade explícita de reiterar a necessária fidelidade rubrical em relação à língua latina e o seu natural e exclusivo revestimento musical litúrgico que é precisamente o canto gregoriano tal como se encontra nos vários livros litúrgicos, desde o Missal ao Gradual e assim por diante. Tanto é assim que nos números seguintes aparecem indicadas as modalidades de uma possível inclusão da “Polifonia sacra” [14] (e é aqui que aparecem as condições às quais voltaremos), da “Música Sacra moderna” [15], a exclusão do “canto popular religioso” [15], salvo disposição em contrário por Indulto [16], e a exclusão de modo total da que está definida como Música religiosa” [17]. E isto se baseia no princípio, reiterado ulteriormente também no termo do segundo capítulo, de que “[t]udo quanto, conforme os livros litúrgicos, deve ser cantado (...) pertence integralmente à Sagrada Liturgia” [18].

[14] IMSSL 17.

[15] IMSSL 18.

[16] IMSSL 19.

[17] IMSSL 20.

[18] IMSSL 21.

Se este é o contexto para inserir o ditame de IMSSL 16, é inequívoco que este número seja o inspirador da posterior indicação conciliar. Mas com uma diferença que é bom não transcurar. No caso da Instrução de 1958, de facto, a referência a outros géneros de música sacra aos quais se deve preferir o canto gregoriano está presente na mesma frase. Em SC 116, porém, o inciso “ceteris paribus” é absoluto, não associado imediatamente aos outros géneros dos quais se pretende ser condição limitante. O significado que a expressão “ceteris paribus” assume na Instrução de 1958 é, portanto, o seguinte: o canto gregoriano deve, em qualquer caso, ser preferido aos outros géneros de música sacra, mesmo quando estes correspondam a todas as características exigidas a um verdadeiro canto litúrgico. Na verdade, neste caso "ceteris paribus"  ̶ que à letra se traduz como "a par dos outros" ̶ tem mais claramente o significado de "posto em confrontação com os outros (géneros)", ou ainda "estando assim as coisas" [18b] e "em paridade de circunstâncias", e portanto a tradução mais eficaz e clara resulta ser esta:

O canto gregoriano é canto sacro [por excelência], próprio e principal da Igreja romana; portanto, em todas as acções litúrgicas não só se pode utilizar, como, em paridade de circunstâncias, é de preferir-se aos outros géneros de Música sacra”.

O inciso "ceteris paribus" é, pois, um reforçante do uso ("não só se pode utilizar") e do uso preferencial ("como é de preferir-se") do gregoriano em comparação com os outros géneros de música sacra, mesmo quando estes superam as barreiras de admissibilidade, em coerência com toda a implantação de IMSSL, que, derivando das normativas precedentes, visa reintroduzir o canto gregoriano em todos os níveis de celebração, incluindo a nível popular com a participação dos fiéis no canto do liturgia segundo os diferentes graus individuados. É neste documento, de facto, que são propostos pela primeira vez os chamados “graus de participação” [19], que encontraremos mais tarde na Instrução Musicam Sacram de 1967 [20].

[18b] N. do T.: do latim jurídico rebus sic stantibus.

[19] IMSSL 24 e 25.

[20] MS 7 e 29,30,31.

Em SC 116, porém, o termo de comparação desaparece, uma vez que os “outros géneros de música sacra” são enunciados só no parágrafo seguinte e “ceteris paribus” se encontra, portanto, semântica e logicamente isolado. Além disso, a tradução oficial italiana insere uma nuance da conotação jurídica, no momento em que as “circunstâncias” se tornam “condições”, assimilando neste modo a frase às cláusulas contratuais com as quais geralmente se estabelece a igualdade sob certas condições. Ao fazê-lo, é o uso do gregoriano que resultaria estar sujeito a condições e não, vice-versa, a utilização dos outros géneros de música sacra, como claramente aparecia no documento de 1958. As traduções alemã de “ceteris paribus” como “Voraussetzungen” (pré-requisitos) e espanhola “circunstancias” (circunstâncias) avizinham-se mais do significado original, ao passo que o inglês “things” (coisas) e o francês “choses” (coisas) permanecem mais genéricas [21]. [21b]

[21] As traduções nas principais línguas ocidentais foram retiradas do sítio oficial do Vaticano:
“L’Église reconnaît dans le chant grégorien le chant propre de la liturgie romaine; c’est donc lui qui, dans les actions liturgiques, toutes choses égales d’ailleurs, doit occuper la première place”.
“The Church acknowledges Gregorian chant as specially suited to the Roman liturgy: therefore, other things being equal, it should be given pride of place in liturgical services.”
“La Iglesia reconoce el canto gregoriano como el propio de la liturgia romana; en igualdad de circunstancias, por tanto, hay que darle el primer lugar en las acciones litúrgicas.”
“Die Kirche betrachtet den Gregorianischen Choral als den der römischen Liturgie eigenen Gesang; demgemäß soll er in ihren liturgischen Handlungen, wenn im übrigen die gleichen Voraussetzungen gegeben sind, den ersten Platz einnehmen.”

[21b] N. do T.: Tradução oficial em língua portuguesa: "A Igreja reconhece como canto próprio da liturgia romana o canto gregoriano; terá este, por isso, na acção litúrgica, em igualdade de circunstâncias, o primeiro lugar."

Mas será esta realmente a interpretação a ser dada ao inciso “ceteris paribus” em SC 116, ou seja, uma limitação ao uso preferencial do canto gregoriano? Não creio. Em primeiro lugar, justamente pela origem desta expressão, como demonstrado. Em segundo lugar, porque se perderia a lógica de todo o quadro de SC116.
De que “condições” se fala, então, e a que se referem elas?
De “condições” dissemos que se fala na IMSSL. E são estas as condições de admissibilidade da “Polifonia Sacra” e da “Música Sacra moderna” na liturgia:

“A Polifonia sacra pode ser usada em todas os atos litúrgicos, sob a condição de haver uma schola que a execute conforme as regras da arte. Êste gênero de Música Sacra convém mais aos atos litúrgicos cuja celebração se reveste de maior esplendor.” (IMSSL 17) 
“A Música Sacra moderna pode também ser admitida em todos os atos litúrgicos, se corresponder realmente à dignidade, à gravidade e santidade da Liturgia e houver uma schola que a possa executar conforme as regras da arte.” (IMSSL 18)

As condições, portanto, seriam ainda aquelas individuadas pela normativa eclesiástica desde Pio X: santidade, bondade de formas e universalidade, para além das possibilidades técnico-artísticas dos intérpretes. Estas determinam a possibilidade ou não de inserção no projeto litúrgico-musical de outros repertórios além do canto gregoriano, que por sua natureza satisfaz plenamente essas condições, servindo também e até - justamente por isto - de modelo. [22]

[22] MSD 21-22.

Os textos escritos como comentário ao IMSSL não entram na argumentação, limitando-se a citar ou parafrasear os ditames da Instrução. Por exemplo, Gelineau comenta assim: “nas acções litúrgicas, [o canto gregoriano] deve ser preferido – suposta a paridade de condição – aos outros géneros de música sacra” [23]. Aqui as condições tornam-se “condição”, mas é claro que não é o gregoriano a ser condicionado, mas sim os outros géneros de música sacra, segundo o pensamento da IMSSL.

[23] J. GELINEAU, Canto e musica nel culto cristiano, LCD Torino 1963, p 327. A edição original francesa é de 1959.

Os comentadores de SC e MS, porém, interpretam o inciso “ceteris paribus” de SC 116 de variados modos, segundo a ideologia inspiradora. Os mais oficiais vão no sentido de um alargamento dos critérios que SC coloca para a admissão de outros géneros de música sacra, como faz, por exemplo, Bugnini, que, logo após haver afirmado que “o gregoriano continua a ser o canto próprio do Igreja e, portanto, ceteris paribus (sic), a ser preferido por direito nativo", assim interpreta e conclui: "note-se o inciso ceteris paribus, que estabelece o equilíbrio entre os vários géneros musicais" [24], quase contornando aquele outro tanto significativo "direito nativo” que ele mesmo atribuiu ao canto gregoriano. Num sentido restritivo do canto gregoriano, por sua vez, vão os comentadores que pertencem à área Universa Laus, lendo nas “condições exigidas” antes de mais a destinação exclusivamente assemblear que deve ter o canto litúrgico, destinação, segundo eles, dificilmente aplicável ao gregoriano e, por isso mesmo, decretando a completa marginalização se não o completo ostracismo do "canto próprio" da liturgia da própria liturgia. Por outro lado, os comentaristas pertencentes à área ceciliana não entram no tema, excepto para meter à luz a ambiguidade originário do inciso, ou para condenar a interpretação unilateral, ou para depreciar a perigosidade das consequências práticas das suas interpretações unilaterais. [25]

[24] A. BUGNINI, La musica sacra, in F. ANTONELLI- R. FALSINI (cur.), Costituzione Conciliare sulla Sacra Liturgia. Introduzione, testo latino-italiano, commento, Opera della Regalità, Roma 1964, p. 323. Mais adiante, consciente de que “se todos os géneros musicais têm doravante direito de cidadania no culto, o seu uso é regulado pelo quê?”, o principal fautor da reforma litúrgica assim conclui e responde: “Na minha opinião pelos seguintes elementos: a) pelas normas positivas da Constituição ou da legislação musical, emitidas e não superadas; b) por normas positivas dadas ou a serem dadas pela autoridade eclesiástica competente, referida no art. 22; c) pelo bom gosto e pelo bom senso” (ibidem, p. 324). Nos anos sucessivos, no que diz respeito à regulamentação dada, bom gosto e bom senso raramente foram aplicados.

[25] Uma revisão em V. DONELLA, Editoriale, in "Bollettino Ceciliano", Anno 104, N. 3, Março 2009.

Não devemos ignorar, porém, que uma pequena complicação provém ainda da Instrução Musicam Sacram de 1967, a qual no nº 50 assim se exprime: “Nas ações litúrgicas em canto, celebradas em língua latina, ao canto gregoriano, como canto próprio da liturgia romana, se reserve, a paridade de condições, o posto principal”. O aditamento "celebrado em língua latina" parece querer ulteriormente restringir o âmbito do ditame conciliar às celebrações apenas em língua latina, tendo presente que em Itália a CEI tornou, de facto, impossíveis as celebrações em língua latina quando se está na presença de fiéis, contradizendo com esta limitação até o que foi disposto pelo próprio concílio [26]. Todavia, mesmo neste documento, que nas intenções originais deveria ter respondido aos quesitos e às dificuldades entretanto surgidas, e deveria ter resolvido as dúvidas práticas sobre a aplicação da reforma litúrgica e da música sacra [27], o inciso “a paridade de condições” não chega a ser adequadamente considerado nem explicado, contribuindo deste modo para deixar a questão numa espécie de limbo linguístico e canónico.

[26] Cfr CEI, Precisazioni, n° 12. Messale Romano ed. 1983: “Nas Missas celebradas com o povo usa-se a língua italiana (...). Os Ordinários do local (...) podem estabelecer que em algumas igrejas frequentadas por fiéis de diversas nacionalidades se possa usar ou a língua própria dos presentes ou a língua latina (...). Noutros casos previstos com base numa verdadeira motivação peneirada pelo Ordinário do local, deve-se em todo o caso usar a edição típica do Missale Romanum”. Note-se o uso do indicativo “usa-se” com sabor absolutizante e exclusivo, ao invés de um “use-se”, conjuntivo de género exortativo e inclusivo.

[27] Cfr MS 2 e 3.

Do quanto dissemos e demonstrámos, parece-me poder concluir que na legislação eclesiástica a expressão “ceteris paribus”, longe de ser restritiva em relação ao gregoriano, mete ainda mais em evidência as suas preeminência e exemplaridade. Trata-se de um inciso que, mutuado de um documento precedente, mudou em parte de significado mudando de contexto e, assim fazendo, ofereceu o flanco a interpretações diversas. Todavia, sob pena de negar todo o magistério anterior, a única interpretação possível resulta ser a original, presente na Instrução pacelliana. E as condições selectivas que o inciso “ceteris paribus” pressupõe serão (re)encontradas naquelas tradicionais (santidade, bondade de formas, universalidade) que deveriam ser verificadas em cada repertório ou género musical que se queira incluir na liturgia cantada. Por outro lado, tal inciso deve ler-se sòmente no constante Magistério da Igreja e não na interpretação de indivíduos singulares, musicólogos ou liturgistas que sejam. A vontade da Igreja é extremamente clara e refere-se ao gregoriano, não só como ao seu “canto próprio”, mais ainda como oração viva para uma liturgia viva e lhe exige a sua presença não como património histórico ou historicizado, nem como peça de museu para mostrar em ocasiões particulares, mas como canto que orienta para Deus todo o “fazer” da liturgia, fazendo-lhe emergir o seu “ser”.

domingo, 10 de março de 2019

O Tempo e a Música

O musicólogo Rui Vieira Nery tem dedicadas várias emissões do seu programa radiofónico a temas que interessam ao público dêste blog; eis algumas:

O Natal:
O Te Deum na Música Antiga Portuguesa:
Polifonistas Portugueses dos séculos XVI e XVII:
As Lamentações de Jeremias:
A Música Sacra no Romantismo:

A Música Sacra no Modernismo:
Entre muitas outras.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Instrução De Musica Sacra de 1958


Pode ser acessado, numa tradução para Língua Portuguesa, aqui. Em Latim, na Acta Apostolicae Sedis 50, de 1958 (AAS 50 1958), às páginas 630 a 663, como está indicado no texto abaixo. Há também, em linha, uma tradução em Língua Inglesa.  O ficheiro em Língua Portuguesa foi disponibilizado pelo Apostolado Missa Gregoriana; vede o Twitter deles. 

"Pouco antes de sua piedosa morte, o Papa Pio XII, já benemérito pelas notáveis inovações litúrgicas, aprovou "de modo especial" esta Instructio de Musica Sacra et Sacra Liturgia ad mentem Litterarum Encyclicarum Pii Papae XII "Musicae Sacrae Disciplina" et "Mediator Dei", publicada na Acta Apostolicae Sedis, nº 12-13, de 19-22 de setembro de 1958, pp. 630-663. A extraordinária importância e o grande valor pastoral do documento pedem que seja publicado integralmente neste fascículo. A tradução que aqui damos foi feita pela Abadia Nossa Senhora das Graças especialmente para O Diário, de Belo Horizonte. O texto foi cuidadosamente revisto e cotejado com o original. Agradecemos à Sagrada Congregação dos Ritos tão preciosas instruções e congratulamo-nos com todos os nossos leitores pelo documento. " Transcrito da página 4 do referido ficheiro em Língua Portuguesa. 

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Missas de Advento do Gradual Simples

O nosso Amigo Lincoln Haas Hein teve a grande amabilidade de nos enviar a sua generosa transcrição para a língua portuguesa de algumas antífonas das Missas de Advento do Gradual Simples, mais concretamente as Antífonas de Entrada, Ofertório e Comunhão das Iª e IIª Missas de Advento.

O Gradual Simples vem responder a um pedido que o Concílio Vaticano II formulou no n.º 117 da constituição Sacrossanctum Concillium http://divinicultussanctitatem.blogspot.pt/2011/03/sacrosanctum-concilium-1963-do-concilio.html

"Convirá preparar uma edição com melodias mais simples para uso das igrejas menores."

A abadia de Solesmes respondeu a este pedido editando em 1974 o chamado Graduale Simplex, aprovado pelo Vaticano como edição típica para uso na Liturgia Romana, e que pode ser descarregado gratuitamente aqui http://www.chantcafe.com/2013/03/graduale-simplex-online.html?m=1

A referida edição, como qualquer outro livro litúrgico oficial, foi publicada originalmente em Latim, mas ao contrário das restantes nunca foi traduzida para o vernáculo português.

É nesta senda que se encaixa a oferta do Amigo Lincoln Haas Hein, que traduziu estas Antífonas e as transcreveu para o pentagrama moderno. As Missas de Advento do Gradual Simples podem cantar-se em qualquer Domingo (ou féria) do Advento, mas eu darei agora a minha opinião (baseando-me no original Gregoriano):

A vós, ó Senhor, elevei a minha alma: Intróito ou Ofertório do I Domigo do Advento.
Frustrado não será, Senhor, quem em Vós espera: Salmo Responsorial do I Domingo do Advento.
O Senhor fez o dom da bondade: Comunhão do I Domingo do Advento.
Céus, derramai o orvalho: Intróito do IV Domingo do Advento.
Avé, Maria: Ofertório do Iv Domingo do Advento.
Abençoastes, ó Senhor, vossa terra: Ofertório do III Domingo do Advento.

Este trabalho do Lincoln tem a vantagem adicional de permitir cantar as antífonas também no latim, criando uma interessante alternância idiomática no "canto dos Anjos". Ficai com as partituras e visitai o blog do autor! http://inspiradonogregoriano.blogspot.pt/2016/12/missa-i-de-advento-adaptada-do-gradual.html







domingo, 25 de setembro de 2016

Missa Cantada na Forma Ordinária?

Recentemente li na internet uma opinião segundo a qual na forma ordinária do rito romano não poderia existir "Missa Cantada", estando essa espécie de celebração apenas reservada à forma extraordinária.

Oxalá para corrigir esta opinião bastasse saber que um sacerdote formado e ordenado antes do Concílio Vaticano II, e doutorado em Música Sacra e Canto Gregoriano pelo Pontifício Instituto de Música Sacra e pela Universidade de Colónia, não tem qualquer escrúpulo em se referir à Missa Cantada na Forma Ordinária:




Mas se tal não fôr suficiente, procurarei nos próximos parágrafos esclarecer com mais razões este equívoco, e provar que a forma ordinária do rito romano admite, sim, uma Missa Cantada.

Poderíamos pensar que a razão de ser desta confusão prende-se com o facto de algumas normas posteriores ao Concílio Vaticano II carecerem talvez, aos nossos olhos, daquela clareza que pauta os documentos precedentes. Essa falta de clareza poderia fomentar em certos casos uma "hermenêutica de ruptura", para usar as palavras do Papa Bento XVI no Discurso de 22 de Dezembro de 2005, hermenêutica segundo a qual os documentos anteriores ao Concílio não teriam utilidade para a leitura dos documentos posteriores, os quais deveriam ser lidos à luz de um suposto espírito conciliar mal definido e em última análise heterodoxo; pelo contrário, seguir uma "hermenêutica da continuidade" significa aqui preencher (o que nos parecem ser) as lacunas dos documentos recentes com os conceitos dos antigos. Dito doutra forma: há que começar pelos documentos magisteriais anteriores ao Concílio, e actualizá-los com os mais recentes.

Mas nem será aqui este o caso, pois os documentos do Concílio apoiam claramente a nossa ideia de que existe Missa Cantada na liturgia reformada! Se não, leiamos a Instrução Musicam Sacram, emitida pela Sagrada Congregação dos Ritos em 1967:
28. Conserve-se a distinção entre missa solene, missa cantada e missa rezada estabelecida na Instrução de 1958 (n. 3), segundo as leis litúrgicas tradicionais e em vigor.
Continuemos então a leitura do belíssimo documento magisterial emitido pela mesma Sagrada Congregação, que apesar de anterior não perde utilidade para os nossos dias, por entre outras razões nela se definir claramente o que seja uma "Missa Cantada". Com efeito, no citado número 3, pode ler-se:
Há duas espécies de Missas: a Missa cantada e a Missa rezada. Diz-se Missa "cantada" quando o sacerdote celebrante canta as partes que deve cantar conforme as rubricas; do contrário, diz-se "rezada". A Missa cantada, se fôr celebrada com a assistência de Ministros sagrados, denomina-se Missa "solene"; se fôr celebrada sem Ministros sagrados, chama-se Missa "cantada".
Examinemos mais excertos desta Instrução para melhor robustecermos o nosso argumento sobre a legitimidade da existência de uma Missa cantada na forma ordinária.

Naturalmente, o documento nunca faz a distinção entre as duas formas do rito romano que hoje temos, pois essa distinção não existia à época. Outra distinção que tão-pouco aparece seria a existente entre os vários usos do rito romano, ou sobre os vários outros ritos latinos que não o romano, estes sim perfeitamente enraízados à data da publicação. Na verdade, mais adiante, no número 11, pode ler-se:
Esta Instrução vigora para todos os ritos da Igreja latina; por conseguinte, o que se diz acêrca do canto gregoriano vale também para o canto litúrgico próprio dos outros ritos latinos, no caso de haver algum.
Obviamente, à época, ao ler esta Instrução, não passaria pela cabeça de ninguém que a espécie da Missa cantada existisse apenas no rito romano e não nos outros ritos (p.ex. do rito bracarense, ou mozarábico, ou ambrosiano, ou outro qualquer); se fosse esse o caso, um documento que prima pela exactidão em tantos pormenores certamente apontaria para essa distinção, mas não o faz.

Convém ainda, nesta fase do nosso raciocínio, ler, mais adiante, o número 14:
Nas missas cantadas, unicamente a língua latina deverá ser usada, não só pelo sacerdote celebrante e pelos ministros, como também pela schola ou pelos fiéis.
E o número 16, alínea b, que esclarece que:
A língua do canto gregoriano, como canto litúrgico, é ùnicamente o latim.
Portanto, "Missa cantada" refere-se a toda e qualquer Missa que seja verdadeiramente "Missa", isto é validamente celebrada, e "cantada", isto é seguindo os textos e as melodias apresentadas nos livros litúrgicos em vigor à época e no local, em língua latina. Naturalmente, este conceito vem na linha da tradição milenar da Igreja latina, na qual sempre se cantaram todas as orações segundo melodias cuidadosamente mantidas por escrito ou oralmente, e isto já se fazia antes mesmo de existir o rito romano tal como o concebemos hoje, ou desde o Concílio de Trento, ou mesmo antes da crianção do reportório musical chamado gregoriano. (A bem da verdade, convém a dizer que tão-bem as igrejas do Oriente preservaram com grande estima o canto sacro como parte integrante da Liturgia, nomeadamente da Eucaristia.)

Por conseguinte, este conceito de Missa Cantada é de aplicar a qualquer rito latino hoje em vigor, entre os quais o romano, nas suas duas formas, ordinária e extraordinária. Digo isto porque, ainda que, por absurdo, a forma ordinária do rito romano fosse considerada um rito diverso da forma extraordinária do rito romano, isso nada interferiria com a nossa conclusão. Contudo, na verdade, as duas formas do rito romano são, nas palavras do Papa Bento XVI (Motu proprio Summorum Pontificum, art. 1), "dois usos do único rito romano". E ambas podem ser integralmente não só rezadas em língua latina, como tão-bem cantadas segundo as melodias dos respectivos Missais, Graduais, Antifonais &c..

Se continuarmos a leitura da supracitada Instrução, facilmente entenderemos o porquê de a Missa cantada ter "desaparecido" da práctica litúrgica da maioria das nossas comunidades paroquiais, diocesanas e até religiosas, salvo honrosas excepções: é que com a maior valorização do vernáculo e da cultura popular, simplesmente se passou a preferir a outra espécie de Missa que já era permitida antes do Concílio Vaticano II: a Missa rezada acompanhada de cânticos populares religiosos.

Leiamos a este respeito o número 9 da Instrução de 1958:
O Canto popular religioso é o canto que brota naturalmente do senso religioso com que a criatura humana foi enriquecida pelo próprio Criador e, visto ser universal, floresce em todos os povos. Sendo êste canto extremamente próprio para imbuir do espírito cristão a vida particular e social dos fiéis, foi, desde tempos remotíssimos, muito cultivado na Igreja [nota de rodapé: Cfr. Ef 5, 18-20; Col 3, 16] e também em nossos tempos é instantemente recomendado para o aumento da piedade dos fiéis e o brilho dos exercícios da piedade; pode mesmo ser algumas vêzes admitido nos próprios actos litúrgicos.
E o número 14, alínea b:
Nas Missas rezadas, o sacerdote celebrante, seu ministro e os fiéis que juntamente com o sacerdote celebrante participam directamente da acção litúrgica, isto é, dizem em voz alta as partes da Missa que lhes cabem (cf. n. 31) devem usar ùnicamente a língua latina. Se, entretanto, os fiéis, além dessa participação litúrgica directa, desejarem acrescentar algumas orações ou cantos populares, conforme o costume local, poderão fazê-lo na língua vernácula.
Esta ideia é mais adiante confirmada, no número 33:
Nas Missas rezadas, os fiéis podem cantar cânticos populares religiosos, mantendo-se entretanto a determinação de serem perfeitamente adequados a cada uma das partes da Missa (cf. n. 14 b).
Portanto, os cânticos populares entram na Liturgia no contexto da Missa rezada, e não da Missa cantada. Isto é, quando os fiéis cantarem em vernáculo, o Magistério não exige o cântico das várias orações "que o sacerdote deve cantar"; o mesmo não podemos dizer em relação ao canto gregoriano. Com efeito, onde se cantar o Ordinário e o Próprio gregorianos (o mesmo é dizer: onde houver uma schola capaz), o sacerdote deverá cantar também (obrigatoriamente) as orações que a ele competem exclusivamente.

É que o Magistério define, para a Missa cantada, três graus de solenização da Missa com o canto gregoriano; fá-lo na Instrução de 1958, e também (de modo ligeiramente diferente em alguns pormenores mas no essencial igual) na de 1957. Leiamos o número 7 desta última:
Entre a forma solene e mais plena das celebrações litúrgicas (em que se canta realmente tudo quanto exige canto) e a forma mais simples em que não se emprega o canto, pode haver vários graus, conforme o canto tenha maior ou menor lugar. Todavia, na escolha das partes que se devem cantar, começar-se-á por aquelas que por sua natureza são de importância maior: em primeiro lugar, por aquelas que devem ser cantadas pelo sacerdote ou pelos ministros, com resposta do povo; ou pelo sacerdote juntamente com o povo; juntar-se-ão depois, pouco a pouco, as que são próprias só do povo ou só do grupo de cantores.
E os 28 a 31, onde se concretiza esta ideia:
(...) O uso destes graus de participação regular-se-á da maneira seguinte: o primeiro grau pode utilizar-se só; o segundo e o terceiro não serão empregados, íntegra ou parcialmente, senão unidos com o primeiro grau. Deste modo, os fiéis serão sempre orientados para uma plena participação no canto.
Comentário meu a esta última frase: "Deste modo, serão orientados para uma plena participação no canto", uma vez que, se o sacerdote não cantar o 1º grau, o povo não lhe poderá responder, e portanto ouvir-se-á somente a schola (2º e 3º graus). Concluamos então a leitura dos números supracitados:
29.  Pertencem ao primeiro grau:

a) nos ritos de entrada:
- a saudação do sacerdote com a resposta do povo;
- a oração;
b) na liturgia da Palavra:
- as aclamações ao Evangelho;
c) na liturgia eucarística:
- a oração sobre as oblatas,
- o prefácio com o respectivo diálogo e o "Sanctus",
- a doxologia final do cânone,
- a oração do Senhor - Pai nosso - com a sua admonição e embolismo,
- o "Pax Domini",
- a oração depois da comunhão,
- as fórmulas de despedida.

30. Pertencem ao segundo grau:
a) "Kyrie", "Glória" e "Agnus Dei";
b) o Credo;
c) a Oração dos Fiéis.

31. Pertencem ao terceiro grau:
a) os cânticos processionais da entrada e comunhão;
b) o cântico depois da leitura ou Epístola;
c)  o "Alleluia" antes do Evangelho;
d)  o cântico do ofertório;
e) as leituras da Sagrada Escritura (...)
Vemos portanto que a preferência, hoje em dia, pela Missa rezada com cânticos populares religiosos (que simplesmente exige ao sacerdote a leitura em voz alta dos livros litúrgicos, e permite aos fiéis expressarem a fé na sua própria língua, com maior economia na preparação dos cânticos), em deterimento da Missa cantada (que exige ao sacerdote uma maior preparação quer no latim quer no canto gregoriano, ademais da desejável existência de uma "schola cantorum"), resulta sobretudo de uma opção pastoral e pragmática, e não de uma mudança na estrutura do rito.

É uma "moda".

sábado, 15 de agosto de 2015

Crítica a concerto de música sacra

Ontem à noite fui ao concerto do Côro de Santa Cecília de Florença, sob a direcção do maestro Alessandro Benassai, na Igreja Matriz de Portimão. A minha opinião:

NOTAS POSITIVAS:
Todo o reportório interpretado foi sacro, tendo sido escolhidos textos cristãos, litúrgicos ou devocionais, em várias línguas e de várias tradições (judaica, cristianismo oriental e ocidental) com respectiva tradução portuguesa num livrete para os ouvintes acompanharem. (Também  a única peça exclusivamente instrumental foi inspirada num texto sacro.)
O concerto foi enriquecido por comentários de uma senhora que muito oportunamente apresentou o côro e as peças, tanto no início como a meio do concerto.
Todas as composições foram originais, da autoria do maestro, num estilo certamente inspirado na homofonia dos ritos orientais e (menos) no canto-chão, permitindo a boa inteligibilidade do texto (escanção métrica à italiana), e com um nível de dificuldade adequado à capacidade do côro, o qual teve a felicidade de cantar tudo de cór.
Na indumentária, os músicos apresentaram-se com decôro e aprumo, como se
de uma formação profissional se tratasse.

NOTAS NEGATIVAS:
Perdeu-se uma excelente oportunidade para dar a conhecer ao público de Portimão os géneros mais perfeitos da música sacra cristã do Ocidente (o canto gregoriano e a polifonia do Renascimento), os quais não são oferecidos habitualmente na Liturgia e por isso permanecem largamente desconhecidos dos Algarvios.
Apesar de todas as peças serem homorrítmicas e portanto relativamente fáceis, a técnica do côro apresentou imperfeições nas sincronização das vozes, e por vezes na afinação.
Também no plano instrumental, foi desprezado o valiosíssimo órgão de tubos do final do século XIX,  existente no côro-alto da Igreja, da construção do organeiro inglês Henry Fincham.
Os músicos colocaram-se no presbitério do templo e a comentadora no ambão, contrariamente às recomendações da Cúria Romana, apropriando-se do espaço sagrado e virando as costas à imagem da Virgem Maria.

No global, dou os parabéns à organização e aos músicos, que souberam oferecer ao pôvo de Portimão um concerto de música sacra decente e gratuito, e ao público, que soube manter-se concentrado e aplaudir generosa e atempadamente!

Francisco Vilaça Lopes

terça-feira, 19 de maio de 2015

Música no Paraíso - O universo musical e cultural da Igreja Cristã ao longo de 2000 anos


Um programa radiofónico de Pedro Miguel Nunes na Antena 2.

Uma viagem iniciática pela história da Música da Igreja Cristã, que começa na Alta Idade Média, até aos nossos dias. Um programa que pretende fazer uma viagem musical e espiritual pela música cristã, aproximando-nos através da música daquilo que se entende ser a visão do Paraíso.

A música sacra, no sentido estrito do termo, refere-se à música erudita de tradição religiosa judaico-cristã. Esta expressão foi usada pela primeira vez na Idade Média aquando da teorização musical e da vontade de separar a música do culto divino da música profana.

Hoje, é difícil compreendermos o impacto que a música sacra tinha antigamente nas populações, no decorrer do culto divino. Isto, porque, hoje em dia, facilmente temos acesso a gravações, e somos bombardeados a toda a hora com música proveniente de registos de CD, da rádio, da televisão, de instrumentos informáticos, e das telecomunicações. No entanto, esta democratização da música e êste acesso generalizado apenas foi possível a partir do século XX, com o registo sonoro.

Até então, o ser humano apenas podia ouvir música realizada na hora, fosse em contexto profano, palaciano, ou mesmo em contexto sacro. As pessoas entravam nas igrejas, e através da música viajavam para outros universos, aproximavam-se das entidades divinas - Cristo, Nossa Senhora, os Mártires e os Santos - e concebiam a sua existência post mortem numa ideia de Paraíso onde viviam eternamente, na companhia dos Santos e a ouvirem os córos celestes com agradáveis melodias a cantar e a louvar a magnificência de Deus.

Um agradecimento especial à Ana Sofia pela divulgação deste curso.
A negrito os meus episódios preferidos:
  1. A música bizantina: psaltês, íson, terirem
  2. O canto gregoriano
  3. A Ars antiqua e a Ars nova
  4. O canto monástico de Ildegarda de Bingem: espiritualidade musical
  5. A música cristã renascentista
  6. Palestrina, Allegri e a nova música católica
  7. O barroco
  8. Bach e a instituição de uma nova música
  9. A música cristã e o iluminismo
  10. O romantismo cristão (Nota: neste episódio o apresentador diz que a Missa Requiem possui Glória, o que é todavia errado, quer consideremos o hino Gloria in excelsis, ausente desta Missa assim como o Credo, quer consideremos os versículos Gloria Patri etc. no fim do intróito e da comunhão, os quais nesta Missa são substituídos pelo texto Requiem etc.; neste aspecto não há qualquer diferença entre os ritos anteriores ao Concílio Vaticano II e a liturgia reformada.)
  11. A música ortodoxa russa: apostolado musical
  12. O gospel
  13. A música sacra no pós-modernismo

sexta-feira, 16 de maio de 2014

domingo, 20 de abril de 2014

Concerto de Órgão em Lorvão, Penacova, 3-5-2014, 21h

O fantástico órgão de tubos do Mosteiro de Lorvão, no concelho de Penacova, diocese de Coimbra, foi ultimamente restaurado pelo brilhante organeiro nacional, Dinarte Machado, o qual publicou umas fotografias do respectivo restauro. Este órgão tem três caixas de eco no seu interior, onde se acomodam quase 4000 tubos sonoros, labiais e de palheta, divididos por dois teclados. Apresenta duas fachadas de 24 palmos, desafiando as leis acústicas.





A inauguração terá a presença de Harald Vogel e João Vaz, os quais apresentarão este instrumento nas suas várias vertentes, explorando as suas capacidades no limite de um concerto de 55 minutos.

domingo, 29 de dezembro de 2013

Os Três Graus da Participação Activa

O Reverendo Padre da minha Paróquia pediu-me que eu colaborasse num curso de música sacra por ele organizado para um grupo de paroquianos interessados, tendo em vista a formação de um côro mais bem preparado e a solenização da Liturgia. Encarregou-me de leccionar uma cadeira de canto gregoriano, sendo as matérias de história da música sacra católica, ensinamentos do magistério da Igreja sobre a música sacra, solfejo, técnica vocal, e polifonia, entregues a outros colaboradores.

Na programação das aulas, ocorreram-me os três "graus de participação" propostos pela Sagrada Constituição dos Ritos, em 1967, para a introdução do canto sacro na Santa Missa. Leiamos, então, uns poucos parágrafos da instrução Musicam Sacram, que certamente nos mereceria uma atenção mais integral:
7. Entre a forma solene e mais plena das celebrações litúrgicas (em que se canta realmente tudo quanto exige canto) e a forma mais simples em que não se emprega o canto, pode haver vários graus, conforme o canto tenha maior ou menor lugar. Todavia, na escolha das partes que se devem cantar, começar-se-á por aquelas que por sua natureza são de importância maior: em primeiro lugar, por aquelas que devem ser cantadas pelo sacerdote ou pelos ministros, com resposta do povo; ou pelo sacerdote juntamente com o povo; juntar-se-ão depois, pouco a pouco, as que são próprias só do povo ou só do grupo de cantores. 
(...) 
III. O canto na celebração da missa
27. Para a celebração da Eucaristia com o povo, sobretudo nos domingos e festas, há-de preferir-se na medida do possível a forma de missa cantada, até várias vezes no mesmo dia. 
28. Conserve-se a distinção entre missa solene, missa cantada e missa rezada estabelecida na Instrução de 1958 (n. 3), segundo as leis litúrgicas tradicionais e em vigor. No entanto, para a missa cantada e por razões pastorais propõem-se aqui vários graus de participação para que se torne mais fácil, conforme as possibilidades de cada assembleia, melhorar a celebração da missa por meio do canto. O uso destes graus de participação regular-se-á da maneira seguinte: o primeiro grau pode utilizar-se só; o segundo e o terceiro não serão empregados, íntegra ou parcialmente, senão unidos com o primeiro grau. Deste modo, os fiéis serão sempre orientados para uma plena participação no canto. 
29. Pertencem ao primeiro grau:
a) nos ritos de entrada:
- a saudação do sacerdote com a resposta do povo;
- a oração;
b) na liturgia da Palavra:
- as aclamações ao Evangelho;
c) na liturgia eucarística:
- a oração sobre as oblatas,
- o prefácio com o respectivo diálogo e o "Sanctus",
- a doxologia final do cânone,
- a oração do Senhor - Pai nosso - com a sua admonição e embolismo,
- o "Pax Domini",
- a oração depois da comunhão,
- as fórmulas de despedida.
30. Pertencem ao segundo grau:
a) "Kyrie", "Glória" e "Agnus Dei";
b) o Credo;
c) a Oração dos Fiéis.
31. Pertencem ao terceiro grau:
a) os cânticos processionais da entrada e comunhão;
b) o cântico depois da leitura ou Epístola;
c) o "Alleluia" antes do Evangelho;
d) o cântico do ofertório;
e) as leituras da Sagrada Escritura, a não ser que se julgue mais oportuno proclamá-las sem canto.
Note-se que por participação activa deve entender-se, não só a participação vocal dos ministros e do povo nas orações respectivas, mas também, e até primeiramente, aquela verdadeira participação activa, que é espiritual e se dá no coração de cada um: a primeira nunca dispensa a segunda; a segunda, serve-se da primeira, mas pode tão-bem dispensá-la, inclusive até ao extremo do absoluto silêncio.

Com efeito, pareceu-me muito conveniente esta sugestão do Magistério para programar semelhantes aulas como as que me foram pedidas, dividindo para tal o extenso e variado reportório do canto gregoriano em três partes, de crescente complexidade. O que se segue é o resultado dessa divisão, tendo algumas orações sido deslocadas para outro grau em razão da sua natureza musical, como adiante especifico. Este método, que ainda não passou do papel à práctica, parece-me, para já, o mais apropriado para a formação duma schola cantorum de raíz, pelo menos a nível duma paróquia. Por este motivo, partilho desde já os recursos que compus, e peço encarecidamente os vossos comentários.

No 1º grau de dificuldade, ou seja, para um côro principiante, proporia o estudo das seguintes peças:

a) nos Ritos Iniciais:
- a saudação do sacerdote com a resposta do povo
- o acto penitencial
- a oração colecta
b) na liturgia da Palavra:
- a 1ª leitura
- as aclamações da 1ª leitura
- a 2ª leitura
- a aclamação da 2ª leitura
- a leitura do Evangelho
- as aclamações ao Evangelho
- a oração dos fiéis
c) na liturgia eucarística:
- a oração sobre as oblatas;
- os diálogo e prefácio da O.E.;
- o cânone;
- a doxologia final do cânone;
- o Pater noster com admonição e embolismo;
- o Pax Domini e outras aclamações e diálogos, e respectivas orações do celebrante;
- a oração depois da comunhão;
- as fórmulas de despedida;

Ou seja, excluí o Sanctus, que no Kyrial Romano ou na polifonia assume formas bastante elaboradas, e reuni todas as orações entoadas em recto tono, mesmo que o seu canto não seja prioritário na maioria das celebrações (p.ex. Canon, Lectiones). No seu conjunto, cada uma destas orações tem 2 ou 3 versões diferentes, que se mantêm as mesmas em todas as Missas ao longo do ano litúrgico nas mais variadas localizações onde se reza pelo rito romano. E, embora a maioria dos textos se destine ao sacerdote celebrante (ou a outros ministros, leitores, et al.) e não ao povo, as respostas pertencem - essas sim - ao povo, e são practicamente as mesmas, sempre; um coro que as aprenda pode ajudar o resto da assembleia a cantá-las. E o facto de se começar pelas entoações simples, e não pelos tradicionais modos gregorianos (octoechos), tem ainda a vantagem de evitar uma sobrecarga cognitiva nos aprendizes, que poderão focar-se primeiramente:
  • na busca da melhor técnica vocal;
  • no discernimento da correcta afinação, mantida imperturbável ao longo da entoação rectilínea;
  • na descoberta e no entendimento da língua latina;
  • na boa dicção e pronúncia do texto;
  • na sincronia com os restantes membros do côro;
  • na descoberta da notação quadrada e suas particularidades, por oposição à notação moderna;
  • na detecção das principais unidades rítmicas, definidas pela pontuação e sintaxe do texto;
  • na acentuação do início ou fim das tais unidades rítmicas com os acidentes melódicos tradicionais;
  • na percepção dos principais intervalos melódicos (meio tom, tom inteiro, terceira menor, terceira maior, etc.);
  • na desintoxicação tonal e na aceitação do ambiente modal, mais propício que é ao recolhimento e oração;
  • no conhecimento de como as entoações da Missa formam um todo sólido, um esqueleto musical ao qual se apendem outros géneros musicais mais complexos (canto melismático, polifonia).
Para além disso, permite-me também a mim ganhar a experiência que não possuo para dirigir peças mais complexas. Deixo-vos, então, um manual (Dropbox, Scribd) em que reuni (com manifesto amadorismo) todas estas entoações, e que inclui, no final, os seguintes cantus varii propostos pelo Papa Paulo VI em 1974 a toda a Igreja de rito romano: O salutaris hostia, Adoro te devote, Tantum ergo sacramentum, Laudate Dominum, Parce Domine, Da pacem, Ubi caritas, Veni creator Spiritus, Regina cæli, Salve Regina, Ave maris stella, Magnificat, Tu es Petrus, e Te Deum.


Depois de bem sabido o 1º grau, proporia para o 2º o estudo das peças do Kyriale Romanum, as quais, embora preservando o mesmo texto ao longo do ano litúrgico, convém que se variem na música (mais ou menos como se mudam as côres dos paramentos):
  • Kyrie, incluindo algumas versões com tropo (fons bonitatis II, firmator sancte VIII ad lib., orbis factor XI);
  • Gloria in excelsis Deo;
  • Credo;
  • Sanctus;
  • Agnus Dei;
  • Ite missa est.
Estas peças vêm em grupos no Gradual Romano, de forma que se pode começar pelas mais simples (missas com n.º mais elevado) e ir crescendo na dificuldade. As peças do ordinário são úteis para o ensino dos modos gregorianos, que se poderá fazer nesta altura. Deixaria para o fim as antífonas da aspersão com água benta (Asperges me, Vidi aquam) e os oito tons do Gloria Patri da Missa (começando pelos VII e VIII modos, que se cantam nestas antífonas, respectivamente); estas peças exigem alguns conhecimentos de semiologia gregoriana, até aqui desconhecida, e que se revelará indispensável no 3º grau. Mas antes o PDF do Kyriale Romanum:



Finalmente, chegamos ao 3º grau: que inclui as peças do próprio de cada Missa:
  • Introitus
  • Graduale
  • Tractus
  • Alleluia
  • Sequentia
  • Offertorium
  • Communio
Estas peças, cujos texto e melodia variam practicamente todas as missas, são as mais belas do reportório gregoriano, mas também as mais difíceis. As peças mais fáceis são as sequências, com o seu estilo silábico. As restantes, semi-ornamentadas e melismáticas, exigem que se coordene tudo quanto se aprendeu até aqui, e se aprenda a modelação rítmica tão característica da música medieval. Para isso, encaminhamos o leitor interessado aos seguintes livros: Graduale Triplex, Offertoriale Triplex, Graduale Novum e Graduale Restitutum, que publicam as partituras a cantar em cada Missa; e para outros manuais, que ensinam a ler a notação arcaica.

Uma vez dominado este nível, resta cantar a polifonia do Renascimento, e voar!...

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Magistério da Igreja sobre Música Litúrgica

No último par de anos temos tentado publicar e organizar alguns documentos pouco acessíveis na internet (ou apenas em línguas que não a nossa) sobre o assunto em epígrafe.

Acontece que encontrei recentemente no portal da Escola Diocesana de Música Sacra da Diocese de Coimbra a seguinte secção de "Documentos" na qual se completa com maior perfeição e arranjo a tarefa que idealizámos cumprir:
Nesta secção pretende-se disponibilizar documentos do magistério da Igreja relacionados com a Música Sacra. Pretende-se assim não só apoiar os alunos da EDMS e todos aqueles que se dedicam a este ministério, bem como divulgar a posição oficial da Igreja sobre a música sacra em geral, e em particular sobre a sua interacção com a liturgia.

Os documentos são naturalmente divididos em 4 subsecções dedicadas, respectivamente:

- aos documentos directamente relacionados com a EDMS emitidos pelo Bispo Diocesano de Coimbra (EDMS);

- aos documentos emitidos pelos Sumos Pontífices e pelo Concílio Vaticano II (Pontifícios / Conciliares);

- aos documentos produzidos pelos diversos dicastérios da Cúria Romana que apoiam a missão dos Papas (Dicastérios da Cúria Romana);

- aos documentos da responsabilidade de outras entidades, como a Conferência Episcopal Portuguesa ou diversos bispos diocesanos (Outros);
Portanto, é com muita alegria que encaminhamos todos os nossos leitores para a referida página. Passaremos a dedicar mais templo ao que considerardes ser mais útil.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Aclamações Depois da Consagração, em Português

A música é do Padre Estêvão Luís Jardim, sacerdote da Companhia de Jesus que esteve 50 anos nas Missões em Moçambique e Angola, e lá ensinou os locais a saudarem o Corpo de Deus com estas melodias. Ao que parece, só há música publicada para uma das três aclamações que o Missal Romano de Paulo VI prevê para este momento, pelo que o Padre compôs para as outras duas:


JPEG. PDF.

Acclamationes post consecrationem

Anno B: Mistério admirável da nossa fé.
R/ Quando comemos deste pão,
e bebemos deste cálice,
anunciamos, Senhor, a vossa morte,
esperando a vossa vinda gloriosa.
AnnoC: Mistério da fé para a salvação do mundo.
R/ Glória a Vós, que morrestes na Cruz,
e agora viveis para sempre.
Salvador do mundo, salvai-nos.
Vinde, Senhor, Jesus.

sábado, 6 de abril de 2013

Concerto de Polifonia . 11/Abr/2013 . 21h30

Programa: Palestrina, Ave Maria; James MacMillan, Ave Maris stella; Filipe de Magalhães, Missa de B. Virgine Maria; Poulenc, Salve Regina; John Tavener, Nunc Dimitis; James MacMillan, The Canticle of Zacariah, St Patrick’s Magnificat.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Sacrificium laudis (1966), Papa Paulo VI


Tradução portuguesa não-oficial, das versões
italiana e latina disponíveis na página do
Vaticano. Por favor avisai-nos de alguma
incorrecção. Muito obrigado.
PAPA PAULO VI

SACRIFICIUM LAUDIS *

EPÍSTOLA APOSTÓLICA

Aos Chefes das Ordens Religiosas,
Sobre a língua latina a ser usada no Ofício Litúrgico coral
por parte dos religiosos obrigados ao coro.

Dilectos filhos,
Saudação e Bênção Apostólica, 

As vossas Famílias religiosas, devotadas ao serviço de Deus, sempre tiveram em grande consideração, numa tradição jamais interrompida, o Sacrifício de louvor oferecido pelos lábios dos que anunciam o Senhor, no canto dos salmos e dos hinos, com os quais são sanctificadas pela piedade religiosa as horas, os dias e os tempos do ano, estando no centro de tudo o Sacrifício Eucarístico como um sol esplendoroso que tudo a si atrai. Com efeito, justamente se pensava que nada deveria ser anteposto a uma tão santa práctica religiosa. Compreende-se com facilidade quanta glória de tal resulte para o Creador de todas as coisas, e quão grande a utilidade para a Igreja. Com esta forma de oração, fixa e mantida perene através dos séculos, haveis ensinado que o culto divino é de suma importância para a humana convivência.

Das cartas dalguns de vós e das muitas missivas enviadas de várias partes chegámos ao conhecimento que os cenóbios ou as províncias de vós dependentes - falamos somente daqueles de rito Latino - adoptaram diferente modos de celebrar a divina Liturgia: alguns são muito contrários à língua Latina, outros no Ofício coral vão pedindo o uso das línguas nacionais, ou querem até que o chamado canto Gregoriano seja substituído cá e lá com os cânticos hoje em voga; outros reclamam mesmo a abolição da própria língua latina.

Devemos confessar que tais pedidos Nos abalaram não levemente e nos entristeceram não pouco; e levaram-nos a perguntar de onde saiu  e porque se difundiu, esta mentalidade e este fastio desconhecidos no passado.

Certamente vos é notório, nem podeis duvidar, o quanto Nós vos amamos, nem às vossas Famílias religiosas, o quanto as estimamos. Frequentemente são para Nós causa de admiração os testemunhos de insigne piedade e os monumentos de refinado engenho, que [a todos] enobrecem. Conservaremos a Nossa alegria se surgir qualquer possibilidade, desde que lícita e conveniente, de favorecer, e de aceder aos vossos pedidos, para melhorar a situação.

Mas, quanto dissemos acima, vem depois de o Concílio Ecuménico Vaticano II se ter pronunciado sobre esta matéria de modo meditado e solene (Cf. CONC. VAT. П, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 101 § 1) e depois de terem sido emanadas normas precisas com sucessivas Instruções; na primeira Instrução, para a exacta aplicação da Constituição sobre a Sagrada Liturgia, emanada a 26 de Setembro de 1964, estabele-se o seguinte: «Na récita do Ofício Divino em coro, os clérigos usem a língua latina» (n. 85); e na outra, que trata da língua a usar na celebração do Ofício e da Missa «conventuais», «nas comunidades» próximas às Religiosas, emanada a 23 de Novembro de 1965, aquela disposição ficou confirmada e também tendo em conta a utilidade espiritual dos fiéis e das particulares condições que subsistem nos países da missões. Portanto, enquanto não se determinar em sentido diferente por razões legítimas, estas leis permanecem em vigor e requerem obediência, na qual devem sobressair principalmente os religiosos, filhos caríssimos da Igreja.

Com efeito, não se trata somente de conservar a língua latina no Ofício coral - indubitavelmente digna, nem seria para menos que a guardássemos com cuidado, sendo na Igreja Latina fonte fecundíssima de civilidade cristã e riquíssimo tesouro de piedade -, mas, tão-bem de defender indemne a qualidade, a beleza e o originário vigor de tais orações e de tais cantos: trata-se, de facto, do Ofício coral, expresso «com as vozes da Igreja que docemente canta» (Cf St.º AGOSTINHO, Confissões, 9, 6: PL 32, 769), e que os vossos fundadores e mestres, e ademais Santos no Céu, luminárias das vossas Famílias religiosas, vos transmitiram. Não são de menosprezar as tradições dos que vos antecederam e ao longo dos séculos construíram a vossa glória. Este maneira de recitar o Ofício divino em coro foi uma das principais razões para a solidez e o feliz crescimento das vossas Famílias. É portanto de espantar que, surgindo com inesperada excitação, alguns pareçam ter negligenciado estas motivações.

Que língua, ou que cânticos vos parece que possam na presente situação substituir as formas de piedade católica que usastes atègora? Haveis de reflectir bem, para que as coisas não piorem depois de renegardes a esta gloriosa herança. Porquanto vos é de temer que o Ofício coral seja reduzido a uma recitação disforme, cujas pobreza e monotonia vós sereis certamente os primeiros a notar. Surge ainda uma outra interrogação: os homens desejosos de sentir os valores sagrados entrarão à mesma, e em tão grande número, nos vossos templos, se não ressoar em vós a piedade antiga e a nativa língua daquelas orações, unidas a um canto pleno de gravidade e de beleza? Pedimos portanto a todos os interessados que ponderem bem o que se perderia, e que não deixem secar a fonte que até hoje brotou abundantemente. Sem dúvida que a língua latina cria algumas dificuldades, talvez não leves, aos novatos da vossa sagrada milícia. Mas estas dificuldades, como sabeis, não são tais que não se possam superar e vencer, sobretudo entre vós que, longe dos afã e estrépito do mundo, vos podeis dedicar mais facilmente ao estudo. De resto, aquelas preces repletas de antiga grandeza e nobre majestade continuarão a atrair até vós os jovens chamados à herança do Senhor; de contrário, uma vez eliminado o coro em questão, que supera os confins das Nações e está dotado de admirável força espiritual, e a melodia que flui do profundo da alma, onde reside a fé e arde a caridade, ou seja o canto gregoriano, sereis como uma vela apagada que já não mais ilumina, e não mais atrai a si os olhos e as mentes dos homens.

Seja como fôr, filhos caríssimos, os pedidos dos quais falámos acima referem-se a uma realidade tão grave que neste momento não Nos é possível de aceder, anulando as normas do Concílio e as Instruções mencionadas. Exortamo-vos portanto que calorosamente pondereis bem sobre todos os aspectos desta questão tão complexa. Pela benevolência com que vos envolvemos, e pela boa estima com que vos acompanhamos, não queremos permitir aquilo que poderia ser causa de uma queda, para pior, de não breve malefício e decerto de mal-estar e tristeza para toda a Igreja. Permiti-Nos, ainda que contra a vossa vontade, que defendamos a vossa causa. A Igreja, que por razões de índole pastoral, isto é, para o bem do povo que não sabe latim, introduziu as línguas nacionais na sagrada Liturgia, dá-vos o mandato de proteger a tradicional dignidade, a beleza, e a gravidade do Ofício coral, seja na língua como no canto.

Assim, com um coração sincero e dócil, sede obedientes às prescrições que não surgiram por um amor exagerado aos modos antigos, mas propostas antes pela caridade paterna que temos por vós e aconselhadas pelo zelo para com o culto divino.

Enfim, concedemo-vos de coração no Senhor a vós e aos vossos religiosos a Bênção Apostólica, propiciadora dos dons celestes e testemunha da boa disposição do nosso ânimo.

Dada em Roma, junto a S. Pedro, a 15 de Agosto do ano de 1966, festa da Assumpção da Virgem Maria, quarto do Nosso Pontificado.

PAULO PP. VI

Notitiae 2 (1966), pp. 252-255

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