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segunda-feira, 25 de março de 2024

Sessantini: o nº 116 da Sacrosanctum Concilium do Concílio Vaticano II ou o que significa o canto gregoriano ser próprio da liturgia romana


Continuamos a tradução e republicação dos magníficos artigos contidos no 

Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano «Dom Jean Claire» - Verona
n° 2 - Maio - Agosto 2019

 

Gilberto Sessantini

O gregoriano e o seu estatuto de
"canto próprio da liturgia romana".

Entre as diversas definições que tentam determinar, cada uma segundo diversas perspectivas [1], o que seja o canto gregoriano, a mais inerente à teologia litúrgica, e por consequência a que mais deve interessar a todos os amantes das duas disciplinas envolvidas [2], é a seguinte: o canto gregoriano é “o canto próprio da liturgia romana” [3]. Esta definição é explicitada no n.º 116 da Sacrosanctum Concilium, a constituição do Vaticano II sobre a liturgia. Este número diz assim:

Ecclesia cantum gregorianum agnoscit ut liturgiae romanae proprium: qui ideo in actionibus liturgicis, ceteris paribus, principem locum obtineat.
Alia genera Musicae sacrae, praesertim vero polyphonia, in celebrandis divinis Officiis minime excluduntur, dummodo spiritui actionis liturgicae respondeant, ad normam art. 30.
O facto de que seja um documento conciliar a afirmar uma realidade tão significativa deveria, por si só, não deixar margem para dúvidas quanto à precípua relevância que o canto gregoriano deverá assumir na liturgia da Igreja, nem de que deva manter um "locum principem". Todavia, sabemos que as interpretações práticas e “pastorais” das normativas conciliares determinaram, de facto, o desaparecimento do gregoriano das celebrações, tanto que se tornou “um estranho na sua própria casa” [4]. Uma análise deste número do documento conciliar permite-nos formular algumas reflexões que podem contribuir para clarificar o alcance do ditame e a vontade dos Padres conciliares sobre o conceito de "cantum proprium", reservando-nos o direito de num próximo artigo debruçarmo-nos sobre a expressão “ceteris paribus”, imediatamente sucessiva e normalmente interpretada como o que tornou possível a negação da primeira afirmação, graças à sua pressuposta vaga ambiguidade.

[1] Para uma definição histórico-musical do canto gregoriano poderemos dizer que, num sentido geral, sob o termo canto gregoriano se coloca um enorme corpus de peças monódicas, compostas ao longo dos séculos e distribuídas em vários livros litúrgicos. Em sentido estrito, porém, o gregoriano é aquele canto que surge da fusão do canto romano antigo com as instâncias musicais próprias do mundo franco-germânico, fusão que ocorreu no século VIII e respondeu a lógicas unificadoras, a liturgia e o canto, mas também a cultura e a política. Para dar “peso político” e autoridade a esta operação litúrgico-musical, atribuiu-se a a Gregório Magno, Papa de 590 a 604, a inspiração divina das composições presentes nos Antifonários e Graduais, como recorda o poema litúrgico Gregorio Presul, posteriormente feito tropo do Intróito do Primeiro Domingo do Advento, presente nos Graduais da região franca do século IX: daí o nome de canto gregoriano.

[2] Ou seja, teologia litúrgica e estudos gregorianos. Dificilmente os dois âmbitos de pesquisa têm seguido até aqui um caminho comum, uma ocupando-se apenas dos aspectos musicais histórico-interpretativos, a outra considerando o canto gregoriano apenas como um dos tantos repertórios possíveis com os quais cantar a liturgia. Este meu contributo pretende ser uma tentativa de superar esta falta de diálogo. Era diferente, na verdade, a sinergia que caracterizava até ao Concílio Vaticano II as pesquisas semiológica e de âmbitos histórico-litúrgicos, que andavam de par e passo.

[3] A definição de “canto próprio” aplicada ao gregoriano é utilizada pela primeira vez nos documentos do Magistério por São Pio X no Motu proprio Tra le sollecitudini de 1903. Neste documento, o gregoriano é denominado “canto próprio da Igreja romana”.  Pode encontrar-se um extenso exame da legislação canónica relativa ao canto gregoriano no precioso volume de GIANNICOLA D'AMICO, Il canto gregoriano nel Magistero della Chiesa, Conservatorio di Rovigo, 2009.

[4] FULVIO RAMPI, Il canto gregoriano: un estraneo in casa sua, discurso proferido em 19 de maio de 2012 em Lecce no primeiro encontro: “Colloqui sulla musica sacra. Cinquant'anni dal Concilio Vaticano II alla luce del magistero di Benedetto XVI”.

Em primeiro lugar, convém partir do sujeito que rege gramaticalmente toda a primeira frase, que está na base do estatuto do canto gregoriano: o sujeito é “Ecclesia”, a Igreja.
É a Igreja, de facto, que reconhece o gregoriano como o canto próprio da liturgia romana. É importante recordar o sujeito. Este acto de reconhecimento é um acto eclesial, no sentido mais profundo do termo. É a própria Igreja que, considerando-se a si mesma, a sua realidade, a sua história, define algo. É uma acção magisterial, e no sentido mais elevado do termo, visto que se trata de uma definição conciliar. Esta acção da Igreja, reconhecida pela própria Igreja como uma acção própria, uma acção que lhe pertence, é uma acção que lhe compete naturalmente como “mater et magistra” e enquanto “lumen gentium”; categorias, estas últimas, que certamente se aplicam à Igreja Católica em áreas bem mais importantes, mas que, de qualquer forma, definem o seu papel de discernimento e guia e, consequentemente e em última instância, a sua potestas legislativa. É portanto a Igreja qua talis, e não o indivíduo, quem determina o que ela é, o que pertence à Igreja, o que lhe é próprio, o que a distingue e, no caso da liturgia, também quem regula cada parte, incluindo o canto, como muito bem nos lembra SC 22: “Regular a sagrada liturgia pertence unicamente à autoridade da Igreja, a qual reside na Sé Apostólica e, de acordo com o direito, no bispo... dentro dos limites determinados pelas conferências episcopais... Por consequência, absolutamente ninguém mais, mesmo que seja sacerdote, ouse, por sua própria iniciativa, acrescentar, retirar ou alterar qualquer coisa em matéria litúrgica”. E esta ação eclesial de discernimento e regulamentação, no nosso caso, diz respeito ao canto gregoriano. É importante reiterar que se trata de uma ação eclesial e magisterial, autorizada e autoritativa, porque isto deveria automaticamente redimensionar qualquer veleidade de superar o ditame conciliar com simples opiniões pessoais, que, embora possam ser formuladas por eminentes estudiosos e eclesiásticos, permanecem o que são: opiniões pessoais. Respeitabilíssimas, mas que certamente não têm a força cogente e obrigatória de um ditame conciliar, a menos que se ponha em causa toda a natureza e estrutura da Igreja...

De que acção se trata? “Ecclesia agnoscit”: a Igreja reconhece, diz a tradução oficial. O verbo latino utilizado, porém, é semanticamente bem mais eficaz e esclarecedor. Agnoscere (ad-gnoscere), de facto, com a sua partícula prefixal ad-, indica uma operação cognitiva realizada através de um discernimento, uma escolha efectuada em relação a alguns ou muitos elementos, a partir dos quais se escolhe e seleciona o objecto reconhecido como próprio, como pertencente a si mesmo. Este reconhecimento selectivo é operado graças a elementos reconhecíveis imediata e naturalmente pelo sujeito, com os quais se reencontra, se identifica, e admite estarem presentes no objeto. O sujeito - a Igreja - encontra portanto no canto gregoriano elementos que lhe permitem afirmar que é o canto próprio da liturgia romana, o canto próprio da sua liturgia, enxertando uma equivalência fundamental entre a sua liturgia e o canto que a esta liturgia corresponde, e que, consequentemente, passa a ser o “seu” canto [5]. A Igreja encontra no canto gregoriano elementos que a reconduzem inequivocamente à sua liturgia, tanto que se pode dizer que a liturgia e o canto gregoriano são partes indistintas um do outro. O valor deste reconhecimento é dado precisamente pelo uso do verbo latino agnoscere. Na verdade, para um “reconhecer” mais vago e menos cogente, estão disponíveis outros verbos latinos: reconhecer no sentido de aprovar e elogiar teria exigido o verbo laudare ou probare; no sentido de apreciar o verbo magni facere ou indicare; no sentido de distinguir cernere ou discernere; no sentido de considerar, porém, o verbo mais adequado teria sido extimare ou habere. Além disso, há toda uma área semântica legalística conexa ao verbo agnoscere que deve ter em conta: este verbo é usado para reconhecer um filho como legítimo, uma pessoa como cidadão, uma coisa como propriedade. Finalmente, a partícula prefixa ad indica um movimento ascendente, um trazer à luz, um manifestar duma verdade diante de todos e para todos. O reconhecimento da parte da Igreja do canto gregoriano como canto próprio da liturgia romana reveste-se, portanto, de todos estes significados e não pode ser reconduzido ou reduzido a uma piedosa exortação ou a uma genérica indicação de máxima.

[5] Precisamente por isto, o Motu proprio Tra le sollecitudini afirmava que o gregoriano é “o canto próprio da Igreja Romana”, fazendo a equivalência entre Igreja e liturgia e entre liturgia e canto.

Se tal é a acção realizada pelo sujeito Ecclesia, qual é o conteúdo desta operação de reconhecimento? O canto gregoriano é reconhecido como “próprio” da liturgia romana. O conceito de proprio, seja no original latino proprium ou na tradução italiana “proprio” [6], refere-se a algo exclusivo, pertencente a, característico e peculiar, preciso e especial.
Próprio, de facto, quer dizer, em primeiro lugar, propriedade. Diz-se do que pertence em modo inequívoco a alguém, do que é verdadeiramente seu e não de outros, constituindo, em sentido adjectival, uma característica identificadora.
Próprio também se diz apropriado: a qualidade peculiar, que pertence íntima e singularmente ao objecto, distinguindo-o de qualquer outro. Diz-se de uma palavra ou locução que expressa com exactidão a ideia que quer significar: o uso exacto, e não aproximado. Em sentido figurado significa também “ordenado” e “decoroso”, chegando à função adverbial de “exactamente” e “precisamente”, reforçando o conceito da palavra que determina [6b].
E se passarmos da semântica à filosofia e precisamente à lógica aristotélica, o “próprio” é um dos quatro predicáveis: é o que é inerente ao ser sem contudo defini-lo, é o que faz referência ao ser mesmo que não o inclua totalmente. No nosso caso, o canto gregoriano, reconhecido como pertencente à liturgia da Igreja, é inerente à Igreja mas sem a definir. A Igreja, de facto, é um sujeito mais amplo que o canto gregoriano, o qual obviamente não esgota toda a actividade ou essência da Igreja, mas, todavia, sendo “próprio” da liturgia da Igreja, é-lhe um elemento constitutivo que lhe permite a identificação como Igreja e enquanto Igreja. Em palavras simples: quem diz gregoriano diz inequivocamente Igreja. Mesmo que nem sempre o contrário seja verdadeiro: de facto, quem diz Igreja diz gregoriano, se, e só se, da actividade da Igreja se limita a considerar-lhe o aspecto musical, sendo o gregoriano reconhecido como proprium em relação aos aspectos musicais da liturgia da Igreja. liturgia. E, no entanto, o nexo entre Igreja e canto gregoriano, por via desse “proprium”, é talmente forte que a correspondência, pelo menos no mundo cultural ocidental, é certamente biunívoca [7].

[6] Mas esta ênfase também pode ser reconhecida em outras línguas neolatinas: as traduções oficiais em francês e espanhol, de facto, rezam propre e propio. O alemão também usa um termo semelhante: eigenen; ao passo que o inglês usa a perífrase “specially suited to the Roman liturgy”, que entra num campo semânthttps://divinicultussanctitatem.blogspot.com/ico diverso e mais débil: “um canto particularmente adequado à liturgia romana”, um exemplo claro de tradução por traição.

[6b] N. do T.: em italiano, "proprio" pode equivaler a "propriamente dito".

[7] Prova irrefutável disto mesmo são as “inserções” de melodias gregorianas em contextos particulares (ópera lírica, música pop rock e disco...) quando se quer recordar imediatamente o mundo religioso e cultual católico.

Esta lógica precisa e férrea contida no ditame conciliar que define de modo totalmente exclusivo o canto gregoriano é apoiada pelo parágrafo seguinte de SC116, onde se fala de “alia genera musicae sacrae”. Note-se bem que o original latino, assim construído, deve ser traduzido como “outros géneros de música sacra” [8] e não “os outros géneros de música sacra” como acontece na tradução oficial italiana, tanto mais que quer a versão oficial alemã quer a inglesa traduzem justa e respectivamente como “andere Arten der Kirchenmusik” e “other kinds of sacred music”, sem artigo, tornando assim ainda mais evidente o distanciamento entre o canto gregoriano e o resto da música, ainda que identificada como “sacrmelhora”. Este distaque, semântico e conceptual ao mesmo tempo, faz sim com que a definição de “canto próprio” aponte o canto gregoriano não como um repertório entre tantos, mas algo diferente de todos os outros repertórios possíveis, tornando-o justamente o “canto próprio da liturgia romana”. Poderemos dizer O canto da Igreja, o canto por excelência e por antonomásia da Igreja e da sua liturgia. Seria, de facto, sobremanira redutor considerar o canto gregoriano apenas como um elemento musical dentro da liturgia. A linguagem sonora, por assim dizer a música, dá corpo ao gregoriano, mas o canto gregoriano não é apenas música, é algo mais: é a forma musical da liturgia e, consequentemente, é ele próprio liturgia. É liturgia no sentido mais elevado do termo, liturgia em canto, liturgia que se faz canto, canto que se faz liturgia; não música dentro de um contexto litúrgico, mas liturgia pura e simples que, pela sua própria natureza, nasce “com” e “por meio” do canto e só daquele canto concreto que é o canto gregoriano. Precisamente porque a forma musical da liturgia, como tudo o que diz respeito à liturgia, acaba por ser uma obra de fé e de arte que transcende as fronteiras do tempo e os condicionamentos das culturas, ao contrário de outros repertórios, e por isso mesmo não pode considerar-se um repertório entre tantos repertórios. Ou seja, trata-se de um corpus musical que ultrapassa as fronteiras históricas para se tornar, em certo sentido, meta-histórico. Se, na verdade, o chamado “fundo autêntico” do gregoriano nasce entre os séculos IV e VIII, enxertando-se sobre material musical dos três primeiros séculos do cristianismo, também é verdade que cada celebração acrescentada ao calendário litúrgico foi acompanhada de composições que poderiam ser emprestadas de outras celebrações, mas que, quando compostas ex-novo, vinham confeccionadas respeitando, se bem que por vezes com resultados desiguais, as características composicionais próprias do canto gregoriano; e isto aconteceu até meados do século passado [9]. Uma operação que talvez nos pareça estranha e possa ser acusada de academicismo, mas que indica a vontade de nos atermos a um modelo muito específico, a um determinado "som", a uma “música própria”. Inserido nos livros litúrgicos oficiais, o gregoriano torna-se não mais a expressão musical de um determinado período histórico, mas sim um canto da Igreja; assim acontece, por exemplo, com todo o material eucológico que, embora atribuível à intervenção de um autor determinado, a partir do momento em que se funde no Missal, torna-se liturgia da Igreja. Em segundo lugar, trata-se de um corpus musical que atravessa fronteiras culturais para se tornar metacultural. A sua evolução músico-modal baseia-se em alguns sons e intervalos que pertencem a todas as culturas do Mediterrâneo e do Médio Oriente, utilizados por estas culturas quando querem trazer para a dimensão do sagrado uma determinada expressão musical [10]. Aqui reside a verdadeira raiz da música sacra. São elementos ancestrais que tocam particulares cordas de ressonâncias espirituais e emocionais e que encontramos no nosso “subconsciente” musical e religioso; ignorar ou pior negar esta realidade significaria negar o evidente. Não se trata, portanto, apenas de textos sagrados revestidos de qualquer estrutura melódica, mas de textos tornados musicalmente “sacros” por meio de particulares sons e intervalos, utilizados de modo exclusivo e capazes de evocar um mundo musicalmente “outro” que não o quotidiano. O canto gregoriano pertence a este género de música; nele e por meio dele nasceu e construiu-se a liturgia da Igreja.

[8] Aqui “género” deve ser entendido em sentido geral e não estritamente técnico-musical tendo em base critérios formais e estilísticos. Também neste caso a terminologia utilizada deve-se a Tra le sollecitudini. Sobre os géneros musicais na liturgia, ver JOSEPH GELINEAU, Canto e musica nel culto cristiano, LDC Torino 1963, pp 183ss., ao qual fazem referência todos os estudos subsequentes.

[9] Como prescrevia ainda a encíclica Musicae Sacrae Disciplina (1955): para as festas recentemente introduzidas, novas melodias deveriam ser compostas "por mestres verdadeiramente competentes, de modo que se observem fielmente as leis próprias do verdadeiro canto gregoriano, e as novas composições porfiem, em valor e pureza, com as antigas.

[10] Cfr. em particular as obras de JACQUES VIRET: Id., Le chant gregorien, Paris 2012, pp 15ss; Id., Le Chant grégorien, musique de la parole sacrée, Lausanne 1986; Id., La modalité grégorienne: un language pour quel message? Lyon, 1987. Viret mete em evidência não tanto as raízes hebraicas do canto gregoriano, mas sobretudo aquelas ligadas à oratória clássica e sobretudo aquelas comuns ao substrato mais antigo das populações europeias e da bacia mediterrânica, ligadas à tradição oral (e consequentemente à memorização textual) e a uma certa música primordial que atravessa todas as grandes sociedades do passado, sugerindo também uma interpretação da monodia gregoriana muito vizinha dos modelos orientais. Trata-se de um ramo da etnologia e da antropologia da música que deveria ser profundamente investigado. Ver também MAURICE EMMANUEL (ed), L'Histoire de la langue musicale : complété d'un aperçu d'éthnomusicologie par Jacques Viret. Tome 1, antiquité - moyen âge, Paris, Henry Laurens ed., 1981.

O que o Vaticano II afirmou, portanto, longe de ser uma “exaltação romântica” [11] é a escolha preferencial da Igreja. Uma escolha pastoral ponderada, exclusiva, unívoca, que exige uma adesão inteligente e construtiva. Uma escolha que, no que diz respeito a outras disciplinas artísticas como a arquitectura, a pintura, a escultura, a Igreja nunca fez, precisamente porque expressões artísticas não tão intimamente ligadas à liturgia (como o está o canto gregoriano) mas consideradas justamente elementos acessórios e secundários e, por isto, passíveis de estarem também ligadas ao passar do tempo e à mudança de gostos. Com o canto gregoriano não se trata de gosto, pessoal ou comunitário, mas do que é constitutivo, musicalmente falando, da oração litúrgica da Igreja - que nasce sempre como oração cantada - e, consequentemente, da própria Igreja, como reiterado pelo adágio “lex orandi statuat lex credendi” [12]. Em última análise, o canto gregoriano é a única expressão musical que resume em si totalmente e no máximo grau aquela característica principal e exclusiva da música sacra expressa no n.º 112 da Sacrosanctum Concilium: “A música sacra será, por isso, tanto mais santa quanto mais intimamente unida estiver à acção litúrgica”.

[11] Esta e outras expressões semelhantes foram formuladas numa conferência que pode muito bem ser considerada precursora de uma interpretação diferente do ditame conciliar e que conduziu efectivamente ao redimensionamento do canto gregoriano, considerado um entre outros repertórios históricos. Cfr. GINO STEFANI, “Friburgo: Prima settimana mondiale della nuova musica sacra”, in Rivista Liturgica, ano 1965, n°4, pp.492-498. A visão do conhecido semiólogo musical Gino Stefani (1929-2019), ex-jesuíta, cujo pensamento antropocêntrico e uma semiologia da música “funcional aos ritos” encontra em “L'espressione vocale e musicale nella liturgia", Torino-Leumann, LDC 1967, o seu manifesto, condicionou não pouco os debates e as práticas subsequentes com uma evolução descendente da prática musical italiana na liturgia.

[12] É o axioma cunhado com toda a probabilidade por Próspero da Aquitânia (†455) e que encontramos codificado no Indiculus de gratia, por ele compilado sob o pontificado de Leão Magno: “ut legem credendi lex statuat supplicandi” cuja tradução é “a fim que a lei da oração estabeleça a lei da fé”. Sobre a história, o significado e o alcance deste axioma teológico, cfr. CESARE GIRAUDO, In unum corpus. Trattato mistagogico sull’eucaristia, San Paolo, Cinisello Balsamo 2001, pp. 22-32.

Se esta é a condição do canto gregoriano que a Igreja oficialmente lhe reconhece, é claro que pô-lo ao mesmo nível doutros tipos de repertório musical é uma operação culturalmente insustentável e eclesialmente impossível, visto que a própria Igreja, como me parece haver evidenciado, com o termo “canto próprio” quis reconhecer ao gregoriano um estatuto particular e exclusivo, metendo no mesmo plano a liturgia nos seus conteúdos textuais com o seu revestimento musical, composto para estender da melhor forma no tempo e no espaço precisamente aquele determinado conteúdo e permitir assim à liturgia a sua máxima eficácia possível em ordem aos fins a que ela própria se propõe e para os quais existe: a glória de Deus e a santificação dos fiéis (SC 112).

domingo, 25 de setembro de 2016

Missa Cantada na Forma Ordinária?

Recentemente li na internet uma opinião segundo a qual na forma ordinária do rito romano não poderia existir "Missa Cantada", estando essa espécie de celebração apenas reservada à forma extraordinária.

Oxalá para corrigir esta opinião bastasse saber que um sacerdote formado e ordenado antes do Concílio Vaticano II, e doutorado em Música Sacra e Canto Gregoriano pelo Pontifício Instituto de Música Sacra e pela Universidade de Colónia, não tem qualquer escrúpulo em se referir à Missa Cantada na Forma Ordinária:




Mas se tal não fôr suficiente, procurarei nos próximos parágrafos esclarecer com mais razões este equívoco, e provar que a forma ordinária do rito romano admite, sim, uma Missa Cantada.

Poderíamos pensar que a razão de ser desta confusão prende-se com o facto de algumas normas posteriores ao Concílio Vaticano II carecerem talvez, aos nossos olhos, daquela clareza que pauta os documentos precedentes. Essa falta de clareza poderia fomentar em certos casos uma "hermenêutica de ruptura", para usar as palavras do Papa Bento XVI no Discurso de 22 de Dezembro de 2005, hermenêutica segundo a qual os documentos anteriores ao Concílio não teriam utilidade para a leitura dos documentos posteriores, os quais deveriam ser lidos à luz de um suposto espírito conciliar mal definido e em última análise heterodoxo; pelo contrário, seguir uma "hermenêutica da continuidade" significa aqui preencher (o que nos parecem ser) as lacunas dos documentos recentes com os conceitos dos antigos. Dito doutra forma: há que começar pelos documentos magisteriais anteriores ao Concílio, e actualizá-los com os mais recentes.

Mas nem será aqui este o caso, pois os documentos do Concílio apoiam claramente a nossa ideia de que existe Missa Cantada na liturgia reformada! Se não, leiamos a Instrução Musicam Sacram, emitida pela Sagrada Congregação dos Ritos em 1967:
28. Conserve-se a distinção entre missa solene, missa cantada e missa rezada estabelecida na Instrução de 1958 (n. 3), segundo as leis litúrgicas tradicionais e em vigor.
Continuemos então a leitura do belíssimo documento magisterial emitido pela mesma Sagrada Congregação, que apesar de anterior não perde utilidade para os nossos dias, por entre outras razões nela se definir claramente o que seja uma "Missa Cantada". Com efeito, no citado número 3, pode ler-se:
Há duas espécies de Missas: a Missa cantada e a Missa rezada. Diz-se Missa "cantada" quando o sacerdote celebrante canta as partes que deve cantar conforme as rubricas; do contrário, diz-se "rezada". A Missa cantada, se fôr celebrada com a assistência de Ministros sagrados, denomina-se Missa "solene"; se fôr celebrada sem Ministros sagrados, chama-se Missa "cantada".
Examinemos mais excertos desta Instrução para melhor robustecermos o nosso argumento sobre a legitimidade da existência de uma Missa cantada na forma ordinária.

Naturalmente, o documento nunca faz a distinção entre as duas formas do rito romano que hoje temos, pois essa distinção não existia à época. Outra distinção que tão-pouco aparece seria a existente entre os vários usos do rito romano, ou sobre os vários outros ritos latinos que não o romano, estes sim perfeitamente enraízados à data da publicação. Na verdade, mais adiante, no número 11, pode ler-se:
Esta Instrução vigora para todos os ritos da Igreja latina; por conseguinte, o que se diz acêrca do canto gregoriano vale também para o canto litúrgico próprio dos outros ritos latinos, no caso de haver algum.
Obviamente, à época, ao ler esta Instrução, não passaria pela cabeça de ninguém que a espécie da Missa cantada existisse apenas no rito romano e não nos outros ritos (p.ex. do rito bracarense, ou mozarábico, ou ambrosiano, ou outro qualquer); se fosse esse o caso, um documento que prima pela exactidão em tantos pormenores certamente apontaria para essa distinção, mas não o faz.

Convém ainda, nesta fase do nosso raciocínio, ler, mais adiante, o número 14:
Nas missas cantadas, unicamente a língua latina deverá ser usada, não só pelo sacerdote celebrante e pelos ministros, como também pela schola ou pelos fiéis.
E o número 16, alínea b, que esclarece que:
A língua do canto gregoriano, como canto litúrgico, é ùnicamente o latim.
Portanto, "Missa cantada" refere-se a toda e qualquer Missa que seja verdadeiramente "Missa", isto é validamente celebrada, e "cantada", isto é seguindo os textos e as melodias apresentadas nos livros litúrgicos em vigor à época e no local, em língua latina. Naturalmente, este conceito vem na linha da tradição milenar da Igreja latina, na qual sempre se cantaram todas as orações segundo melodias cuidadosamente mantidas por escrito ou oralmente, e isto já se fazia antes mesmo de existir o rito romano tal como o concebemos hoje, ou desde o Concílio de Trento, ou mesmo antes da crianção do reportório musical chamado gregoriano. (A bem da verdade, convém a dizer que tão-bem as igrejas do Oriente preservaram com grande estima o canto sacro como parte integrante da Liturgia, nomeadamente da Eucaristia.)

Por conseguinte, este conceito de Missa Cantada é de aplicar a qualquer rito latino hoje em vigor, entre os quais o romano, nas suas duas formas, ordinária e extraordinária. Digo isto porque, ainda que, por absurdo, a forma ordinária do rito romano fosse considerada um rito diverso da forma extraordinária do rito romano, isso nada interferiria com a nossa conclusão. Contudo, na verdade, as duas formas do rito romano são, nas palavras do Papa Bento XVI (Motu proprio Summorum Pontificum, art. 1), "dois usos do único rito romano". E ambas podem ser integralmente não só rezadas em língua latina, como tão-bem cantadas segundo as melodias dos respectivos Missais, Graduais, Antifonais &c..

Se continuarmos a leitura da supracitada Instrução, facilmente entenderemos o porquê de a Missa cantada ter "desaparecido" da práctica litúrgica da maioria das nossas comunidades paroquiais, diocesanas e até religiosas, salvo honrosas excepções: é que com a maior valorização do vernáculo e da cultura popular, simplesmente se passou a preferir a outra espécie de Missa que já era permitida antes do Concílio Vaticano II: a Missa rezada acompanhada de cânticos populares religiosos.

Leiamos a este respeito o número 9 da Instrução de 1958:
O Canto popular religioso é o canto que brota naturalmente do senso religioso com que a criatura humana foi enriquecida pelo próprio Criador e, visto ser universal, floresce em todos os povos. Sendo êste canto extremamente próprio para imbuir do espírito cristão a vida particular e social dos fiéis, foi, desde tempos remotíssimos, muito cultivado na Igreja [nota de rodapé: Cfr. Ef 5, 18-20; Col 3, 16] e também em nossos tempos é instantemente recomendado para o aumento da piedade dos fiéis e o brilho dos exercícios da piedade; pode mesmo ser algumas vêzes admitido nos próprios actos litúrgicos.
E o número 14, alínea b:
Nas Missas rezadas, o sacerdote celebrante, seu ministro e os fiéis que juntamente com o sacerdote celebrante participam directamente da acção litúrgica, isto é, dizem em voz alta as partes da Missa que lhes cabem (cf. n. 31) devem usar ùnicamente a língua latina. Se, entretanto, os fiéis, além dessa participação litúrgica directa, desejarem acrescentar algumas orações ou cantos populares, conforme o costume local, poderão fazê-lo na língua vernácula.
Esta ideia é mais adiante confirmada, no número 33:
Nas Missas rezadas, os fiéis podem cantar cânticos populares religiosos, mantendo-se entretanto a determinação de serem perfeitamente adequados a cada uma das partes da Missa (cf. n. 14 b).
Portanto, os cânticos populares entram na Liturgia no contexto da Missa rezada, e não da Missa cantada. Isto é, quando os fiéis cantarem em vernáculo, o Magistério não exige o cântico das várias orações "que o sacerdote deve cantar"; o mesmo não podemos dizer em relação ao canto gregoriano. Com efeito, onde se cantar o Ordinário e o Próprio gregorianos (o mesmo é dizer: onde houver uma schola capaz), o sacerdote deverá cantar também (obrigatoriamente) as orações que a ele competem exclusivamente.

É que o Magistério define, para a Missa cantada, três graus de solenização da Missa com o canto gregoriano; fá-lo na Instrução de 1958, e também (de modo ligeiramente diferente em alguns pormenores mas no essencial igual) na de 1957. Leiamos o número 7 desta última:
Entre a forma solene e mais plena das celebrações litúrgicas (em que se canta realmente tudo quanto exige canto) e a forma mais simples em que não se emprega o canto, pode haver vários graus, conforme o canto tenha maior ou menor lugar. Todavia, na escolha das partes que se devem cantar, começar-se-á por aquelas que por sua natureza são de importância maior: em primeiro lugar, por aquelas que devem ser cantadas pelo sacerdote ou pelos ministros, com resposta do povo; ou pelo sacerdote juntamente com o povo; juntar-se-ão depois, pouco a pouco, as que são próprias só do povo ou só do grupo de cantores.
E os 28 a 31, onde se concretiza esta ideia:
(...) O uso destes graus de participação regular-se-á da maneira seguinte: o primeiro grau pode utilizar-se só; o segundo e o terceiro não serão empregados, íntegra ou parcialmente, senão unidos com o primeiro grau. Deste modo, os fiéis serão sempre orientados para uma plena participação no canto.
Comentário meu a esta última frase: "Deste modo, serão orientados para uma plena participação no canto", uma vez que, se o sacerdote não cantar o 1º grau, o povo não lhe poderá responder, e portanto ouvir-se-á somente a schola (2º e 3º graus). Concluamos então a leitura dos números supracitados:
29.  Pertencem ao primeiro grau:

a) nos ritos de entrada:
- a saudação do sacerdote com a resposta do povo;
- a oração;
b) na liturgia da Palavra:
- as aclamações ao Evangelho;
c) na liturgia eucarística:
- a oração sobre as oblatas,
- o prefácio com o respectivo diálogo e o "Sanctus",
- a doxologia final do cânone,
- a oração do Senhor - Pai nosso - com a sua admonição e embolismo,
- o "Pax Domini",
- a oração depois da comunhão,
- as fórmulas de despedida.

30. Pertencem ao segundo grau:
a) "Kyrie", "Glória" e "Agnus Dei";
b) o Credo;
c) a Oração dos Fiéis.

31. Pertencem ao terceiro grau:
a) os cânticos processionais da entrada e comunhão;
b) o cântico depois da leitura ou Epístola;
c)  o "Alleluia" antes do Evangelho;
d)  o cântico do ofertório;
e) as leituras da Sagrada Escritura (...)
Vemos portanto que a preferência, hoje em dia, pela Missa rezada com cânticos populares religiosos (que simplesmente exige ao sacerdote a leitura em voz alta dos livros litúrgicos, e permite aos fiéis expressarem a fé na sua própria língua, com maior economia na preparação dos cânticos), em deterimento da Missa cantada (que exige ao sacerdote uma maior preparação quer no latim quer no canto gregoriano, ademais da desejável existência de uma "schola cantorum"), resulta sobretudo de uma opção pastoral e pragmática, e não de uma mudança na estrutura do rito.

É uma "moda".

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Padre Paulo Ricardo pede um movimento para renovar a música litúrgica

Episódio 109 da série "ao vivo com o Padre Paulo Ricardo":




E como neste blog nada mais se pretende do que divulgar a boa música católica, escutai a versão portuguesa do Agnus Dei XVIII (MP3), o qual é cantado nas missas feriais do Advento, da Quaresma, e de defuntos, e cuja partitura adiante se apresenta (PDF):

Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo, apieda-Te de nós.
Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo, dá-nos a paz.
Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo, dá-lhes o descanso.
Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo, dá-lhes o descanso sempiterno.

domingo, 29 de dezembro de 2013

Os Três Graus da Participação Activa

O Reverendo Padre da minha Paróquia pediu-me que eu colaborasse num curso de música sacra por ele organizado para um grupo de paroquianos interessados, tendo em vista a formação de um côro mais bem preparado e a solenização da Liturgia. Encarregou-me de leccionar uma cadeira de canto gregoriano, sendo as matérias de história da música sacra católica, ensinamentos do magistério da Igreja sobre a música sacra, solfejo, técnica vocal, e polifonia, entregues a outros colaboradores.

Na programação das aulas, ocorreram-me os três "graus de participação" propostos pela Sagrada Constituição dos Ritos, em 1967, para a introdução do canto sacro na Santa Missa. Leiamos, então, uns poucos parágrafos da instrução Musicam Sacram, que certamente nos mereceria uma atenção mais integral:
7. Entre a forma solene e mais plena das celebrações litúrgicas (em que se canta realmente tudo quanto exige canto) e a forma mais simples em que não se emprega o canto, pode haver vários graus, conforme o canto tenha maior ou menor lugar. Todavia, na escolha das partes que se devem cantar, começar-se-á por aquelas que por sua natureza são de importância maior: em primeiro lugar, por aquelas que devem ser cantadas pelo sacerdote ou pelos ministros, com resposta do povo; ou pelo sacerdote juntamente com o povo; juntar-se-ão depois, pouco a pouco, as que são próprias só do povo ou só do grupo de cantores. 
(...) 
III. O canto na celebração da missa
27. Para a celebração da Eucaristia com o povo, sobretudo nos domingos e festas, há-de preferir-se na medida do possível a forma de missa cantada, até várias vezes no mesmo dia. 
28. Conserve-se a distinção entre missa solene, missa cantada e missa rezada estabelecida na Instrução de 1958 (n. 3), segundo as leis litúrgicas tradicionais e em vigor. No entanto, para a missa cantada e por razões pastorais propõem-se aqui vários graus de participação para que se torne mais fácil, conforme as possibilidades de cada assembleia, melhorar a celebração da missa por meio do canto. O uso destes graus de participação regular-se-á da maneira seguinte: o primeiro grau pode utilizar-se só; o segundo e o terceiro não serão empregados, íntegra ou parcialmente, senão unidos com o primeiro grau. Deste modo, os fiéis serão sempre orientados para uma plena participação no canto. 
29. Pertencem ao primeiro grau:
a) nos ritos de entrada:
- a saudação do sacerdote com a resposta do povo;
- a oração;
b) na liturgia da Palavra:
- as aclamações ao Evangelho;
c) na liturgia eucarística:
- a oração sobre as oblatas,
- o prefácio com o respectivo diálogo e o "Sanctus",
- a doxologia final do cânone,
- a oração do Senhor - Pai nosso - com a sua admonição e embolismo,
- o "Pax Domini",
- a oração depois da comunhão,
- as fórmulas de despedida.
30. Pertencem ao segundo grau:
a) "Kyrie", "Glória" e "Agnus Dei";
b) o Credo;
c) a Oração dos Fiéis.
31. Pertencem ao terceiro grau:
a) os cânticos processionais da entrada e comunhão;
b) o cântico depois da leitura ou Epístola;
c) o "Alleluia" antes do Evangelho;
d) o cântico do ofertório;
e) as leituras da Sagrada Escritura, a não ser que se julgue mais oportuno proclamá-las sem canto.
Note-se que por participação activa deve entender-se, não só a participação vocal dos ministros e do povo nas orações respectivas, mas também, e até primeiramente, aquela verdadeira participação activa, que é espiritual e se dá no coração de cada um: a primeira nunca dispensa a segunda; a segunda, serve-se da primeira, mas pode tão-bem dispensá-la, inclusive até ao extremo do absoluto silêncio.

Com efeito, pareceu-me muito conveniente esta sugestão do Magistério para programar semelhantes aulas como as que me foram pedidas, dividindo para tal o extenso e variado reportório do canto gregoriano em três partes, de crescente complexidade. O que se segue é o resultado dessa divisão, tendo algumas orações sido deslocadas para outro grau em razão da sua natureza musical, como adiante especifico. Este método, que ainda não passou do papel à práctica, parece-me, para já, o mais apropriado para a formação duma schola cantorum de raíz, pelo menos a nível duma paróquia. Por este motivo, partilho desde já os recursos que compus, e peço encarecidamente os vossos comentários.

No 1º grau de dificuldade, ou seja, para um côro principiante, proporia o estudo das seguintes peças:

a) nos Ritos Iniciais:
- a saudação do sacerdote com a resposta do povo
- o acto penitencial
- a oração colecta
b) na liturgia da Palavra:
- a 1ª leitura
- as aclamações da 1ª leitura
- a 2ª leitura
- a aclamação da 2ª leitura
- a leitura do Evangelho
- as aclamações ao Evangelho
- a oração dos fiéis
c) na liturgia eucarística:
- a oração sobre as oblatas;
- os diálogo e prefácio da O.E.;
- o cânone;
- a doxologia final do cânone;
- o Pater noster com admonição e embolismo;
- o Pax Domini e outras aclamações e diálogos, e respectivas orações do celebrante;
- a oração depois da comunhão;
- as fórmulas de despedida;

Ou seja, excluí o Sanctus, que no Kyrial Romano ou na polifonia assume formas bastante elaboradas, e reuni todas as orações entoadas em recto tono, mesmo que o seu canto não seja prioritário na maioria das celebrações (p.ex. Canon, Lectiones). No seu conjunto, cada uma destas orações tem 2 ou 3 versões diferentes, que se mantêm as mesmas em todas as Missas ao longo do ano litúrgico nas mais variadas localizações onde se reza pelo rito romano. E, embora a maioria dos textos se destine ao sacerdote celebrante (ou a outros ministros, leitores, et al.) e não ao povo, as respostas pertencem - essas sim - ao povo, e são practicamente as mesmas, sempre; um coro que as aprenda pode ajudar o resto da assembleia a cantá-las. E o facto de se começar pelas entoações simples, e não pelos tradicionais modos gregorianos (octoechos), tem ainda a vantagem de evitar uma sobrecarga cognitiva nos aprendizes, que poderão focar-se primeiramente:
  • na busca da melhor técnica vocal;
  • no discernimento da correcta afinação, mantida imperturbável ao longo da entoação rectilínea;
  • na descoberta e no entendimento da língua latina;
  • na boa dicção e pronúncia do texto;
  • na sincronia com os restantes membros do côro;
  • na descoberta da notação quadrada e suas particularidades, por oposição à notação moderna;
  • na detecção das principais unidades rítmicas, definidas pela pontuação e sintaxe do texto;
  • na acentuação do início ou fim das tais unidades rítmicas com os acidentes melódicos tradicionais;
  • na percepção dos principais intervalos melódicos (meio tom, tom inteiro, terceira menor, terceira maior, etc.);
  • na desintoxicação tonal e na aceitação do ambiente modal, mais propício que é ao recolhimento e oração;
  • no conhecimento de como as entoações da Missa formam um todo sólido, um esqueleto musical ao qual se apendem outros géneros musicais mais complexos (canto melismático, polifonia).
Para além disso, permite-me também a mim ganhar a experiência que não possuo para dirigir peças mais complexas. Deixo-vos, então, um manual (Dropbox, Scribd) em que reuni (com manifesto amadorismo) todas estas entoações, e que inclui, no final, os seguintes cantus varii propostos pelo Papa Paulo VI em 1974 a toda a Igreja de rito romano: O salutaris hostia, Adoro te devote, Tantum ergo sacramentum, Laudate Dominum, Parce Domine, Da pacem, Ubi caritas, Veni creator Spiritus, Regina cæli, Salve Regina, Ave maris stella, Magnificat, Tu es Petrus, e Te Deum.


Depois de bem sabido o 1º grau, proporia para o 2º o estudo das peças do Kyriale Romanum, as quais, embora preservando o mesmo texto ao longo do ano litúrgico, convém que se variem na música (mais ou menos como se mudam as côres dos paramentos):
  • Kyrie, incluindo algumas versões com tropo (fons bonitatis II, firmator sancte VIII ad lib., orbis factor XI);
  • Gloria in excelsis Deo;
  • Credo;
  • Sanctus;
  • Agnus Dei;
  • Ite missa est.
Estas peças vêm em grupos no Gradual Romano, de forma que se pode começar pelas mais simples (missas com n.º mais elevado) e ir crescendo na dificuldade. As peças do ordinário são úteis para o ensino dos modos gregorianos, que se poderá fazer nesta altura. Deixaria para o fim as antífonas da aspersão com água benta (Asperges me, Vidi aquam) e os oito tons do Gloria Patri da Missa (começando pelos VII e VIII modos, que se cantam nestas antífonas, respectivamente); estas peças exigem alguns conhecimentos de semiologia gregoriana, até aqui desconhecida, e que se revelará indispensável no 3º grau. Mas antes o PDF do Kyriale Romanum:



Finalmente, chegamos ao 3º grau: que inclui as peças do próprio de cada Missa:
  • Introitus
  • Graduale
  • Tractus
  • Alleluia
  • Sequentia
  • Offertorium
  • Communio
Estas peças, cujos texto e melodia variam practicamente todas as missas, são as mais belas do reportório gregoriano, mas também as mais difíceis. As peças mais fáceis são as sequências, com o seu estilo silábico. As restantes, semi-ornamentadas e melismáticas, exigem que se coordene tudo quanto se aprendeu até aqui, e se aprenda a modelação rítmica tão característica da música medieval. Para isso, encaminhamos o leitor interessado aos seguintes livros: Graduale Triplex, Offertoriale Triplex, Graduale Novum e Graduale Restitutum, que publicam as partituras a cantar em cada Missa; e para outros manuais, que ensinam a ler a notação arcaica.

Uma vez dominado este nível, resta cantar a polifonia do Renascimento, e voar!...

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Música para Órgão na Missa

Nota prévia: para a melhor execução da música litúrgica, recomenda-se a frequência dos cursos com Monsenhor Alberto Turco.

Todos os documentos do Magistério da Igreja (que eu conheço) são unânimes ao afirmar que «o canto gregoriano sempre foi considerado como o modelo supremo da música sacra, podendo com razão estabelecer-se a seguinte lei geral: uma composição religiosa será tanto mais sacra e litúrgica quanto mais se aproxima no andamento, inspiração e sabor da melodia gregoriana, e será tanto menos digna do templo quanto mais se afastar daquele modelo supremo» (S. Pio X, 22-11-1903).

Ora, tocar num órgão de tubos as velhas melodias gregorianas compostas para serem cantadas a uma só voz, em uníssono coral, pode parecer um empobrecimento das potencialidades deste instrumento, o qual, «desde sempre e com boa razão, (...) é classificado como o rei dos instrumentos musicais, porque retoma todos os sons da criação e (...) dá ressonância à plenitude dos sentimentos humanos, da alegria à tristeza, do louvor à lamentação. Além disso, como toda a música de qualidade, ao transcender a esfera simplesmente humana, remete para o divino. A grande variedade dos timbres do órgão, do piano até ao fortíssimo arrebatador, faz dele um instrumento superior a todos os outros. Ele é capaz de dar ressonância a todos os aspectos da existência humana. De algum modo, as múltiplas possibilidades do órgão recordam-nos a imensidade e a magnificência de Deus» (Bento XVI, 13-9-2006).

Com efeito, encontram-se na net várias partituras para acompanhar o canto gregoriano. No entanto, muitas destas harmonizações retiram importância ao desenho melódico original, dão-lhe um carácter tonal e não modal, e deixam o organista na ignorância quanto ao ritmo correcto, o qual não pode ser expresso sem recorrer aos neumas originais de S. Gall e Laon.

Por isso, é fundamental que o organista estude primeiro o canto gregoriano per se, que se imbua do espírito mais perfeito da música sacra e depois o transporte para o órgão. Quando estiver à vontade no tangimento da melodia gregoriana, com o ritmo e registo mais apropriados, poderá querer, por exemplo, acrescentar-lhe um pedal que acompanhe a melodia, e a destaque.

De facto, foi de modo semelhante que surgiram os primeiros géneros de música polifónica na Idade Média, a chamada polifonia gótica: uma melodia muito elaborada (melismática) inspirada no canto gregoriano clássico era cantada pela voz principal, enquanto as outras lhe criavam um ambiente harmónico coerente. Com o tempo, as outras vozes foram ganhando também destaque, umas vezes imitando a melodia gregoriana original, outras vezes nem tanto. Por altura do Renascimento (séculos XV-XVII), muitas das composições litúrgicas ainda se inspiravam claramente na melodia gregoriana original; outras, mais livres - os motetes -, embora não seguissem o desenho melódico gregoriano, nem por isso abandonavam o ambiente modal e a suavidade rítmica que garantem aquele sabor a solenidade e respeito indispensável duma celebração litúrgica.

Na verdade, a polifonia do Renascimento é considerada o género musical mais nobre e digno de integrar a Liturgia de Rito Romano - claro está que a seguir ao canto gregoriano -, como reafirmou em Novembro de 2012 o Papa Bento XVI:

«Comprometei-vos por melhorar a qualidade do canto litúrgico, sem ter receio de recuperar e valorizar a grande tradição musical da Igreja, que no gregoriano e na polifonia tem duas das expressões mais nobres (cf. Concílio Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, 116).»

Significa isto que muito do repertório composto no período barroco e seguintes, na verdade não será o mais conveniente de ser interpretado durante a Liturgia - inclusive Bach, e Mozart! -, a pesar de ser música sacra de suprema beleza, que sem dúvida a tanta gente toca e aproxima de Deus.

Alguns Papas (p.ex. S. Pio X em 1903, Pio XI em 1928) apontam mesmo como o mais digno de ser interpretado durante a Liturgia o compositor italiano Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-94), cujas belas obras ainda hoje se ouvem durante a Liturgia Papal. Mas há muitos outros autores a conhecer: Johannes Ockeghem, Orlando di Lasso, Josquin des Prés, Thomas Thallis, William Byrd, Francisco Guerrero, Tomás Luis de Victoria, entre tantos, e tantos outros.

E lusófonos? Também os temos: Pedro de Escobar, Manoel Cardoso, Filipe de Magalhães, Francisco Martins, João Lourenço Rebello, Diogo Dias Melgaz, D. João IV, Frei Roque da Conceição... Para obter as suas partituras, há alguns recursos úteis, tais como o sítio dos Órgãos de Portugal, a CPDL, a colecção Portugaliae Musica, ou ainda, para os puristas que gostam da notação mensural branca, a Portuguese Early Music Database.

Este repertório, composto originalmente para côro (por vezes com outros instrumentos), não está, de modo algum, ao alcance da esmagadora maioria dos nossos córos litúrgicos. Muitas paróquias não têm cantores em número e qualidade suficientes para interpretarem o canto gregoriano ou a polifonia do Renascimento com a dignidade que estes exigem, sobretudo se pensarmos que o texto litúrgico do próprio varia diariamente, o que obriga a uma mudança contínua de repertório. Neste aspecto, um organista interessado e persistente poderá mais facilmente estudar uma ou outra peça para tocar durante a Liturgia, e desempenhar um papel insubstituível para a glorificação de Deus e santificação dos fiéis, para que mais e mais deles se sintam em casa quando ouvem a Sua música.

Sim: tocar no órgão de tubos as composições polifónicas para múltiplas vozes que a Igreja nos legou através dos séculos. Deste modo, não correremos o risco do improviso genérico fora da tradição. Pode parecer estranho tocar a partir de um sistema de 4 pentagramas ou mais, mas no passado era o que os tangedores do órgão faziam, como se vê por exemplo pelas Flores de Música do Padre Manuel Rodrigues Coelho (1620):




Aliás, os organistas da época tocavam peças de polifonia escrita em livro de côro, com as vozes separadas:




E já que o repertório polifónico oferece um tão vasto leque de peças adequadas à Liturgia, poderemos escolher uma que se adecúe à circunstância na qual vamos tocar. O que faz colocar a questão: em que momento da Missa tocar? Para responder a esta pergunta, é necessário ter em atenção que:
  1. esses momentos são os que o celebrante considerar apropriados;
  2. o organista não deve atrasar a cerimónia nem deixar o celebrante à espera;
  3. há momentos da Missa em que é conveniente manter o silêncio (p.ex. depois da homilia);
  4. há tempos litúrgicos em que é conveniente haver especial moderação no uso de instrumentos musicais (Advento e Quaresma, cfr. IGMR 313);
  5. há orações da Missa que não devem ser nunca suprimidas ou abafadas pela música; nestes casos, o órgão manter-se-á em silêncio ou, quando muito, sustentando o canto, como fôr julgado mais conveniente;
  6. o povo deve interiorizar que o som do órgão serve para facilitar a oração e não para permitir o desrespeito pelo espaço sagrado (conversa com as pessoas do lado, deslocação ruidosa pela igreja, etc.).
Dito isto, sobram poucos momentos em que o órgão possa soar sozinho:
  • aqueles para os quais os livros litúrgicos não prescrevem que se diga qualquer texto (antes de começar a Missa, depois de cantada a antífona da comunhão, depois de concluída a Missa), devendo ponderar-se o benefício do órgão em relação ao silêncio (p.ex. na acção de graças);
  • aqueles em que o texto litúrgico prescrito pode ser omitido ou apenas lido secretamente pelo celebrante (antífona do intróito, antífona do ofertório, antífona da comunhão);
  • aqueles que são sobejamente conhecidos de todos e podem ser substituídos pelo órgão de tubos conforme o uso alternatim (p.ex. Kyrie), em que órgão e côro intervêm alternadamente como se dialogando.
Assim, por exemplo:
  • Se vou tocar durante o rito penitencial da aspersão do povo com água benta, fora do tempo Pascal, eu sei que o texto indicado pelo Graduale Romanum (pág.707) para esse momento é o Asperges me, Domine, hyssopo, et mundabor: lavabis me, et super nivem dealbabor (Salmo 50,9), pelo que posso escolher a peça homónima de Manoel Mendes:
  • Se me pedem que toque durante ou depois da comunhão na Missa da Vigília do Nascimento do Senhor, vejo que o Graduale Romanum (p.40) indica para este momento o texto Revelabitur gloria Domini: et videbit omnis caro salutare Dei nostri (cf. Isaías 40,5), pelo que poderei tocar a peça de Estêvão Lopes Morago:





E assim para qualquer outra ocasião. Deste modo, o som do órgão aproxima-se da perfeição da voz humana e «converte-se num sinal eminente do cântico novo que devemos cantar a Deus. De facto, cantamos verdadeiramente um cântico novo quando vivemos dignamente, quando aderimos à vontade de Deus com alegria e entusiasmo, quando cumprimos o mandamento novo, amando-nos uns aos outros» (Ritual de Bênção do Órgão).

Órgão da Catedral de Mariana,
em Minas Gerais, no Brasil.

sábado, 24 de novembro de 2012

Bento XVI: canto gregoriano e polifonia do Renascimento para o Ano da Fé


Queridos irmãos e irmãs!

É com grande alegria que vos recebo, por ocasião da peregrinação organizada pela Associação Italiana Santa Cecília, à qual dirijo antes de tudo as minhas felicitações, com a saudação cordial ao Presidente, ao qual agradeço pelas gentis palavras, e a todos os colaboradores. Com afecto vos saúdo a vós, que pertenceis a numerosas Scholae Cantorum de todas as partes da Itália! Sinto-me muito feliz por vos encontrar, e também por saber — como aqui foi recordado — que amanhã participareis na Basílica de São Pedro na celebração eucarística presidida pelo Cardeal Arcipreste Angelo Comastri, oferecendo naturalmente o serviço do louvor com o canto.

Este vosso congresso situa-se intencionalmente na celebração do cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II. E vi com prazer que a Associação Santa Cecília pretendeu deste modo repropôr à vossa atenção o ensinamento da Constituição conciliar sobre a liturgia, em particular onde — no sexto capítulo — trata da música sacra. Nesta circunstância, como bem sabeis, quis para toda a Igreja um especial Ano da fé, a fim de promover o aprofundamento da fé em todos os baptizados e o comum compromisso pela nova evangelização. Por isso, ao encontrar-me convosco, quereria ressaltar brevemente como a música sacra pode, antes de tudo, favorecer a fé e, além disso, cooperar para a nova evangelização.

Sobre a fé, é espontâneo pensar na vicissitude pessoal de Santo Agostinho — um dos grandes Padres da Igreja, que viveu entre o IV e o V século depois de Cristo — para cuja conversão contribuiu certamente de maneira relevante a escuta do canto dos salmos e dos hinos, nas liturgias presididas por Santo Ambrósio. Se, de facto, a fé nasce sempre da escuta da Palavra de Deus — uma escuta naturalmente não só dos sentidos, mas que dos sentidos passa para a mente e para o coração — não há dúvida de que a música e sobretudo o canto podem conferir à recitação dos salmos e dos cânticos bíblicos maior força comunicativa. Entre os carismas de Santo Ambrósio havia precisamente o de uma aguda sensibilidade e capacidade musical, e ele, uma vez ordenado Bispo de Milão, meteu este dom ao serviço da fé e da evangelização. Em relação a isto, é muito significativo o testemunho de Agostinho, que naquele tempo era professor em Milão e procurava a Deus, procurava a fé. No décimo livro das Confissões, da sua Autobiografia, ele escreve: «Quando me voltam à mente as lágrimas que os cânticos da Igreja me fizeram derramar nos primórdios da minha fé reconquistada, e a comoção que ainda hoje suscita em mim não o cântico, mas as palavras cantadas, se são cantadas com voz límpida e com a modulação mais conveniente, reconheço de novo a grande utilidade desta prática» (33, 50). A experiência dos hinos ambrosianos foi tão forte, que Agostinho os levou impressos na memória e citou-os com frequência nas suas obras; aliás, escreveu uma obra precisamente sobre a música, a De Musica. Ele afirma que não aprova, durante as liturgias cantadas, a busca do mero prazer sensível, mas reconhece que a música e o canto bem feitos podem ajudar a acolher a Palavra de Deus e a sentir uma salutar comoção. Este testemunho de Santo Agostinho ajuda-nos a compreender o facto de que a Constituição Sacrosanctum Concilium, em linha com a tradição da Igreja, ensina que «o canto sacro, unido às palavras, é parte necessária e integrante da liturgia solene» (n. 112). Porquê «necessária e integrante»? Certamente não por motivos estéticos, num sentido superficial, mas porque coopera, precisamente pela sua beleza, para nutrir e expressar a fé e, por conseguinte, para a glória de Deus e a santificação dos fiéis, que são os fins da música sacra (cf. ibid.). Precisamente por este motivo gostaria de vos agradecer o serviço precioso que prestais: a música que executais não é um acessório ou só um embelezamento exterior da liturgia, mas ela mesma é liturgia. Vós ajudais toda a Assembleia a louvar a Deus, a fazer penetrar no profundo do coração a sua Palavra: com o canto rezais e fazeis rezar, e participais no canto e na oração da liturgia que abraça a criação inteira na glorificação do Criador.

O segundo aspecto que proponho à vossa reflexão é a relação entre o canto sacro e a nova evangelização. A Constituição conciliar sobre a liturgia recorda a importância da música sacra na missão ad gentes e exorta a valorizar as tradições musicais dos povos (cf. n. 119). Mas também precisamente nos países de antiga evangelização, como a Itália, a música sacra — com a sua grande tradição que lhe é própria, que é cultura nossa, ocidental — pode ter de facto uma tarefa relevante, para favorecer a redescoberta de Deus, uma renovada abordagem da mensagem cristã e dos mistérios da fé. Pensamos na célebre experiência de Paul Claudel, poeta francês, que se converteu ouvindo o canto do Magnificat durante as Vésperas de Natal na Catedral de Notre-Dame de Paris: «Naquele momento — escreve ele — deu-se o acontecimento que domina toda a minha vida. Num instante o meu coração foi tocado e eu acreditei. Acreditei com uma força de adesão tão grande, com uma tal elevação de todo o meu ser, com uma convicção tão poderosa, numa certeza que não deixava lugar a espécie alguma de dúvida e que, a partir daquele momento, raciocínio algum ou circunstância da minha vida movimentada puderam abalar a minha fé nem afectá-la». Mas, já sem incomodarmos personagens ilustres, pensemos em quantas pessoas foram tocadas no fundo do ânimo ouvindo música sacra; e ainda mais em quantos se sentiram de novo atraídos por Deus através da beleza da música litúrgica como Claudel. E aqui, queridos amigos, vós desempenhais um papel importante: comprometei-vos por melhorar a qualidade do canto litúrgico, sem ter receio de recuperar e valorizar a grande tradição musical da Igreja, que no gregoriano e na polifonia tem duas das expressões mais nobres, como afirma o Vaticano II (cf. Sacrosanctum Concilium, 116). E gostaria de ressaltar que a participação activa de todo o Povo de Deus na liturgia não consiste só em falar, mas também em escutar, em acolher com os sentidos e com o espírito a Palavra, e isto vale também para a música sacra. Vós, que tendes o dom do canto, podeis fazer cantar o coração de tantas pessoas nas celebrações litúrgicas.

Queridos amigos, faço votos de que na Itália a música litúrgica tenda cada vez mais para o alto, para louvar dignamente o Senhor e para mostrar como a Igreja é o lugar no qual a beleza está em casa. Mais uma vez obrigado a todos por este encontro! Obrigado.

domingo, 19 de agosto de 2012

61ª Semana de Estudos Gregorianos



Recomendamos vivamente a todos os interessados em música sacra litúrgica a frequência deste curso completo e leccionado por experientes docentes. Uma óptima desculpa para desfrutar da bela cidade de Viseu. Mais informações no site do Centro Ward - Júlia d'Almendra:

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Bento XVI: «Giuseppe Verdi contempla o Cristo encarnado, que abre o reino dos céus»

[S]exta-feira, 11 [de de Maio], a Sala Paulo VI foi palco de um concerto oferecido por Giorgio Napolitano, presidente da República Italiana, em homenagem ao Santo Padre Bento XVI, por ocasião do sétimo aniversário de seu pontificado.

A Orquestra e Coro do Teatro da Ópera de Roma, dirigidos respectivamente pelo maestro Riccardo Muti e pelo Maestro Roberto Gabbiani, executaram o Magnificat em Sol menor, RV 611, de Antonio Vivaldi, e o Stabat Mater e o Te Deum das Quatro Peças Sacras de Giuseppe Verdi.

(...)

O Magnificat [de Antonio Vivaldi] que ouvimos é o cântico de louvor de Maria e de todos os humildes de coração, que reconhecem e celebram com alegria e gratidão a ação de Deus na sua vida e na história. Deus tem um "estilo" diferente do estilo do homem, porque ele se coloca ao lado do homem para lhe dar esperança. E a música de Vivaldi expressa o louvor, a exultação, a gratidão e também a admiração diante da obra de Deus, com uma extraordinária riqueza de sentimentos: do solene coral no início, no qual se encontra toda a Igreja que venera o Senhor, até ao "Et exultavit" e ao belíssimo coral do "Et misericordia", onde a música pousa com ousadas harmonias, ricas de modulações inesperadas, que nos convidam a meditar sobre a misericórdia do Deus fiel, que se estende a todas as gerações.


Já com as duas peças sacras de Giuseppe Verdi, que escutamos, o registro é outro: nos deparamos com a dor de Maria ao pé da cruz. Stabat Mater dolorosa. O grande compositor italiano, assim como tinha manifestado a tragédia de tantos personagens em suas obras, aqui penetra no drama de Maria, que contempla o Filho na cruz. A música se torna mais essencial, quase "agarrando-se" às palavras para expressar da maneira mais intensa possível o seu conteúdo, numa vasta gama de sentimentos. Basta pensar no doloroso sentimento de "piedade" com que a sequência começa; no dramático "Pro peccatis suae gentis"; no sussurrado "dum emisit spiritum"; nas invocações corais carregadas de emoção, mas também de serenidade, dirigidas a Maria, "fons amoris", para podermos compartilhar da sua dor de mãe e fazer os nossos corações arderem de amor por Cristo, até a última estrofe, súplica intensa e poderosa a Deus para que a alma receba a glória do Paraíso, aspiração última da humanidade.

O Te Deum também é um subseguir-se de contrastes, mas o foco de Verdi no texto sagrado oferece uma interpretação diferente da tradição. Ele não vê tanto o canto de vitórias e de coroações, mas uma sucessão de situações: a euforia inicial, "Te Deum", "Sanctus"; a contemplação do Cristo encarnado, que liberta e abre o Reino dos Céus; a invocação ao "Judex Venturus" para que tenha misericórdia e, finalmente, o grito repetido pelo soprano e pelo coro, "In te, Domine, speravi", que fecha a peça, quase um pedido do próprio Verdi de esperança e luz no último trecho da vida. As peças que ouvimos esta noite são as últimas duas composições escritas pelo autor, não destinadas à publicação, mas escritas para si próprio. Mais ainda: ele queria ter sido sepultado com a partitura do Te Deum.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Música Própria da 24ª Semana do Tempo Comum / Hebdomada XXIV per annum

Partituras:
Próprio completo (PDF)
Ofertório com versículos (PDF)

Traduções Portuguesas do Próprio (GDrive)

«Poder fazer penitência é uma graça de Deus»

24º Domingo do Tempo Comum, ano A



Cântico de Entrada Da pacem Domine sustinentibus te
e a Antífona Salve Regina , numa versão mais antiga e solene, cantada pelos Cantori Gregoriani, com a majestosa explicação do seu maestro, Fúlvio Rampi.




Comentário de Tiago Barófio sôbre êste intróito.





Salmo responsorial para a Missa de Sábado, ano par:
Na presença do Senhor, andarei na luz da vida.




Canta-se a Alleluia Timébunt gentes, aqui na voz do francês:




Ofertório Sanctificauit Moyses, pelo francês:




Ofertório no ano C: Precatus est Moyses in conspectu Domini Dei sui (a partir dos 5:37)



Comunhão Tollite hóstias, aqui cantada pelo Pêro Emanuel Desmazeiros:



No Domingo do Ano B canta-se Qui vult venire.
No Domingo do Ano C canta-se Dico vobis: Gaudium.
Na 2ª feira dos anos ímpares canta-se Hoc corpus quod pro vobis tradétur.

domingo, 28 de agosto de 2011

Música própria do 22º Domingo do Tempo Comum / Dominica Vigesima Secunda per Annum


Partituras:
Próprio autêntico (PDF)
Ofertório com versículos (PDF)

Evangelho do Ano A na arte sacra tradicional da Igreja e nas palavras do Santo Padre:




Evangelho do ano A,
01:08 Intróito do VIII modo: Miserere mihi Domine quoniam ad te clamavi tota die
05:05 Interessantíssima explicação de Fulvio Rampi, maestro dos Cantori
08:17 Sanctus & Benedictus polifónico a 4 vozes díspares de Antonio Lotti, pelo Coro Sicardo:


 
Comentário (PDF , facebook) de Tiago Barófio a êste mesmo intróito:



Ofertório Domine in auxilium, pelo francês:

Senhor, em meu auxílio atenta: confundam-se e espantem-se os que procuram [matar] a minha alma, para que fujam dela.
V.1 Afastem-se para trás, e corem [de vergonha], os que me pensam o mal.
V.2 Esperando, esperei no Senhor, e deteve-se comigo: e ouviu a minha prece.

Senhor, no meu auxílio atenta.





Comunhão Dómine memorabor, pelo francês:

Senhor, lembrei-me da tua justiça sozinho: Deus, guiaste-me desde a minha juventude, e até à velhice e á decrepitude nunca me abandones.




Comunhão Qui vult venire, no Domingo A, pelo francês:

Quem quiser vir após Mim, abnegue-se a si mesmo, e carregue a sua cruz, e siga-Me.



Lêde o pacificantíssimo comentário de Tiago Barófio a esta comunhão (PDF)


Partituras e gravação de 1-9-2018
ĩt. Miserere michi http://pemdatabase.eu/image/1445 & http://pemdatabase.eu/image/35084
ky. http://pemdatabase.eu/image/4500
gl. http://pemdatabase.eu/image/11612
gr. Beata gens http://pemdatabase.eu/image/497
al. Quoniam http://pemdatabase.eu/musical-item/44861
of. Domine in auxilium http://pemdatabase.eu/musical-item/44862
sã. = ky.
ag. http://pemdatabase.eu/image/4501
cõ. Domine memorabor http://pemdatabase.eu/musical-item/44863
hỹ. Pãge lĩgua gloriosi
ãt. Salve Regĩa http://divinicultussanctitatem.blogspot.pt/2011/09/santa-missa-cantada-ao-domingo.html

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Música própria do 21º Domingo do Tempo Comum / Dominica XXI per Annum


Partituras:
Próprio autêntico completo (PDF)
Ofertório autêntico com versículos (PDF)

O Evangelho do Ano A na Arte da Igreja e na pregação do Papa Bento XVI:




Música do Ordinário: Gloria in excelsis Deo polifónico da Missa Brevis de Andrea Gabrielli (8:35)



Outra interpretação do intróito Inclina Domine:




Outra interpretação, do Pedro francês.


Comentário de Tiago Barófio acerca deste intróito:







Gradual Bonum est confiteri, aqui na voz do eslovaco:

Bom é louvar o Senhor: e salmodiar o teu nome, Altíssimo.
V. Com o propósito de anunciar pela manhã a tua misericóridia,
e a tua verdade à noite.




Alleluia que se canta no Domingo do ano A: Tu es Petrus. Este Alleluia canta-se também na solenidade de S. Pedro e S. Paulo, na missa do dia.





Ofertório Exspectans, pelo Pedro francês:

Atento, esperei o Senhor, e [Ele] olhou-me: e ouviu a minha prece, e meteu na minha boca um cântico novo, um hino ao nosso Deus.
V.1 Colocou sôbre a pedra os meus pés, e dirigiu os meus passos.
V.2 Muito fizeste Tu, Senhor; meu Deus, as tuas maravilhas, e nas tuas cogitações não há igual a Ti: bem anunciei a tua justiça na igreja grande.
V.3 Senhor, Deus, tu conheceste a minha justiça: não escondi no meu coração a tua verdade, e a tua salvação eu disse: o meu adjuvante é o Senhor, e o meu protector.




A antífona da Comunhão é a De fructu óperum tuórum, aqui comentada por Tiago Barófio:
Il Missale Romanum come secondo canto propone l’antifona “Qui manducat carnem meam” (Gv 6, 57 già assegnata alla solennità del Corpo e Sangue di Cristo). La prima antifona è un centone salmico “De fructu operum tuorum, Domine, satiabitur terra, / ut educas panem de terra, /et vinum laetificet cor hominis” (Sal 103, 13b.14c.15a). La recensione in musica del Graduale completa il verso 15 aggiungendo “ut exhilaret faciem in oleo, et panis cor hominis confirmet” (15bc).
La melodia del Graduale Romanum è in VI modo, mentre il Graduale Novum opta per una recensione in III modo con finale sol. La melodia in fa plagale si apre con una lunga recitazione oscillante tra fa e la. È la premessa in cui si afferma l’intervento creativo e provvidenziale di D-i-o. Due verbi – apice melodico il do acuto – evidenziano le ripercussioni dell’evento salvifico nel quotidiano (laetificetexhilaret). La condizione di vita rinnovata è sotto il segno della gioia (exhilaret) e della solidità (confirmet). Il senso della totalità è espresso dal canto che si dispiega lungo tutto l’ambito dal do grave al si bemolle.
La voce del cantore interpella una società che ha perso il senso della creazione. Lo si vede dalla mancanza di rispetto nei confronti di una natura sempre più preda di una voracità convulsa e arrogante da parte dell’uomo. Come se la signorìa sul creato autorizzasse la sua frantumazione e decomposizione da parte di chi, in realtà, è stato chiamato da D-i-o a collaborare in un impegno creativo per rifondare l’armonia, per ricuperare la bellezza, per scoprire le ricchezze che sono patrimonio di tutti: anziani e giovani, ricchi e poveri, vicini e lontani.
D-i-o ha donato alla terra potenzialità capaci di soddisfare tutte le esigenze della terra stessa e di quanti con rispetto e riconoscenza la coltivano senza sfruttarla sino alla stremo della desertificazione, senza soffocarla con una cementificazione selvaggia. Pane e vino e olio sono quello che sono nel concreto, le materie prime cioè del sostentamento e della convivialità solidale. Ma sono pure il simbolo di quanto la terra – in vegetali, minerali e altro ancora – è in grado di donare all’uomo per rendere la sua vita più sana, più comoda, più attraente e bella.
Disegno folle di un’utopia alienante che, insidiosa, rischia di far inciampare le persone e le scaraventa fuori della realtà? Esagerazione provocatoria di un manipolo anarcoide? Con qualche battuta al vetriolo è facile liquidare le voci del dissenso che periodicamente s’affacciano alle coscienze intorpidite. Dai profeti d’Israel a Gesù a papa Francesco è tutto un grido che cerca di ridestare menti e cuori ubriachi e frastornati dall’ebbrezza corrosiva del potere oligarchico, monopolio di pochi. Mentre masse allo sbando non sanno più dove trovare un tozzo di pane per sfamare se stessi e i figli, un mestolo di acqua con cui lenire l’aridità ...
L’antifona di comunione ci ricorda che il benessere è uno stile di comunicazione diffuso, è la gioia di vivere qui e ora, è condivisione piena di un anelito di speranza che si attualizza nel momento in cui si abbattono le barriere dell’egoismo e si spalanca il cuore all’Altro, agli altri. Con gesti concreti non delegati, ma in prima persona. A partire dalla preghiera e dalla carità operosa.

À vontade pode cantar-se a comunhão Qui manducat, aqui pelo francês:

Quem come a minha carne, e bebe o meu sangue, em Mim ficará: e Eu nele, diz o Senhor.




Alleluia Spiritus est qui vivificat - transcrição neoquadrada.



annotation:Io.6,64;
%%
(c4) A(g<) E(g) u(G~H~!ijih~) ia(iwj//kvj!g//hv_G~F~gv_//gv_//hg!go!F~//hvjh//i_g_//gqh_G~F~gv_//G~!hoig) <c><sp>V/</sp></c> Spi(gsgsgs_0) ri(gi) tus(g) est(iji!g/hihh_g_) qui(gh) vi(g) vi(gh) fi(G~H~iv_H~G~hv) cat(h_g_) ca(ggd) ro(dgf/e/fvE~D~) au(G~!ho!ivH~G~hV>) tem(h_i_g_) nõ(gV!fh~) pro(hv_gjh/ih/gjhi) dest(hg__) quid(G~H~!ijih~) quam(iwj) 

 

Partituras e gravação de 25-8-2018:
ĩt. Ĩclina aurẽ http://pemdatabase.eu/musical-item/44854
ky. http://pemdatabase.eu/image/4500
gl. http://pemdatabase.eu/image/11612
gr. Bõũ est cõfidere http://pemdatabase.eu/musical-item/44855 & http://pemdatabase.eu/musical-item/44856
al. Spiritus est qui vivificat
of. Expectãs expectaui http://pemdatabase.eu/image/498
sã. = ky.
ag. http://pemdatabase.eu/image/4501
cõ. De fructu http://pemdatabase.eu/musical-item/44857
hỹ. Pãge lĩgua
ãt. Salve Regina http://divinicultussanctitatem.blogspot.pt/2011/09/santa-missa-cantada-ao-domingo.html

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