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quinta-feira, 20 de junho de 2024

Liber Gradualis - Pars Festiva

Continuamos a tradução e republicação
dos fascinantes artigos contidos no 

  

NOVIDADE EDITORIAL

LIBER GRADUALIS
iuxta «Ordo Cantus Missæ», auctoritate Pauli PP. VI promulgatum, in quo melodiæ restitutæ sunt e fontibus adhibitis in præparando Graduale Romanum secundum hodiernæ musicalis criticæ regulas.

Livro Gradual, segundo a Ordem do Canto da Missa promulgada com autoridade do Papa Paulo VI, no qual as melodias foram restituídas a partir das fontes consultadas na preparação do futuro Gradual Romano segundo as regras da crítica musical de hoje.


Formato 14x21 cm
724 páginas
Papel marfim 80g
Encadernação de fio cosido
Versos de capa e contracapa em papel algodonado marfim
Placas de capa, lombada e contracapa em imitação de couro verde garrafa
Estampa dourada na capa e lombada
Capitéis e 3 marcadores de cores diferentes

O LIBER GRADUALIS PARS FESTIVA é o volume de 724 páginas que reúne a proposta de restituição melódica do repertório gregoriano da Missa elaborada por Mons. Alberto Turco e seus colaboradores.

Nasce de um estudo atento e comparativo de muitíssimos testemunhos antigos transcritos em tabelas sinóticas guardadas como tesouro precioso no atelier de Paléographie da Abadia de Solesmes. Acima da versão neumática em notação quadrada, aderente às mais recentes aquisições gráficas, vem relatada a mais antiga notação em campo aberto dos manuscritos sangaleses. A notação neumática de São Galo é, de facto, a mais rica que todas as outras em fornecer indicações do ponto de vista expressivo, estético e modal, indicações mais que suficientes para uma interpretação correcta e artisticamente significativa.

Neste primeiro volume incluem-se todas as celebrações festivas, enquanto o segundo, a publicar em breve, será dedicado às feriais. Ineludível ponto de referência para quantos amam, estudam e executam o canto da próprio Igreja romana.

Informações e encomendas:
EDIÇÕES DE MÚSICA ARMELIN
Riviera San Benedetto, 18-35122 Pádua
Tel +39 049 8724 928
www.armelin.it
info@armelin.it

Prefácio

O Liber Gradualis, nos seus dois volumes, recolhe quanto foi publicado em fascículos separados, divididos por tempos litúrgicos, entre os anos de 2009 e 2016, revisto, corrigido e ampliado em vista desta edição. Se aqueles fascículos, na sua praticidade editorial e gráfica, se destinavam mormente ao estudo pessoal e do côro, a presente edição responde também à exigência de quantos desejam utilizar na liturgia a versão melódica preparada por Alberto Turco e pelo grupo de trabalho que colabora com ele. Tal versão não quer ter a pretensão nem da oficialidade, reservada unicamente à edição típica da Vaticana, nem da exaustividade, nem sequer da exclusividade, pois sabemos que os estudos sobre o canto gregoriano estão bem longe de se concluírem em todas as frentes. E, todavia, esta edição quer apresentar-se como magis crítica [1], em comparação não só com a Vaticana, mas também a outras propostas similares.

[1] Como requerido pela Constituição conciliar Sacrosanctum Concilium (SC) sobre a Sagrada Liturgia do Concílio Vaticano II: “Procure terminar-se a edição típica dos livros de canto gregoriano; prepare-se uma edição mais crítica dos livros já editados depois da reforma de S. Pio X" (SC 117).

O ponto de partida, para nós inequívoco, são os estudos semiológicos e modais surgidos em torno do atelier de Paléographie da Abadia de Solesmes. O próprio título - Liber Gradualis - refere-se à primeira obra homónima publicada em 1883 por dom Joseph Pothier (1835-1923) que constitui a primeira pedra de uma construção bem ordenada que ainda agora continua a ser edificada, com o contributo de quantos hoje se põem séria e verdadeiramente na esteira de dom Eugène Cardine (1905-1988) e dom Jean Claire (1920-2006). Precisamente a partir da sua actividade científica, a semiologia e a modalidade gregorianas receberam um notável impulso, permitindo uma compreensão e uma interpretação da monodia litúrgica mais consentânea com a verdade dos factos históricos documentados pelos manuscritos. O estudo directo das fontes antigas continua sendo um trabalho insubstituível para se chegar a uma proposta de restituição melódica filologicamente correcta e criticamente aceitável. O caminho traçado pela Édition critique do Graduale Romanum [2] com o amplo reconhecimento dos manuscritos, as suas relações genealógicas, alguns levantamentos e uma proposta exemplificativa de restituição melódica [3], é aqui retomado e acolhido no método, complementado com o que os estudos posteriores evidenciaram, em particular os da semiomodalidade, para atingir critérios bem definidos, compartilhados e compartilháveis, ​​quanto à escrita e aos semitons da corda móvel, respeitando a natureza das fórmulas relativamente ao aspecto estético modal. 

[2] Le Graduel Romain, Edition critique par les moines de Solesmes, IV Le texte neumatique, vol. I, Abbaye Saint-Pierre de Solesmes 1960 e vol. II Abbaye Saint-Pierre de Solesmes 1962.

[3] La missa “Ad te levavi”, ibidem, vol II, pag 63-89.

Para conveniência dos estudiosos relatamos no final deste Prefácio o elenco de manuscritos apresentado na Édition critique. É precisamente a partir deste amplo confronto que é possível determinar uma versão melódica que encontra confirmação na convergência mais ampla possível dos antigos testemunhos.
Sobre a versão neumática em notação quadrada, é relatada a mais antiga notação in campo aperto dos manuscritos de St. Gallen, deixando de fora a de Laon, em linha com a escolha do Graduel Romain no seu ensaio de restituição melódica [4].

[4] Ibidem.

Especificamente, os manuscritos utilizados são os mesmos reportados pelo Triplex:

Gal1 = St. Gallen 359, Cantatorium, (séc. X);
Ein = Einsiedeln 121, Graduale, (segunda metade do séc. IX);
Gal3 = St. Gallen 376, Graduale, (séc. XI) na ausência de Ein;
Har = St. Gallen 390-391, Antifonário de Hartker, (aa. 980-1011) para as Communio retiradas do Antiphonale.
Para os tons salmódicos das Communio, fez-se referência a Ein e G381, (St. Gallen, Stiftsbibl. 381) Versicularium, (primeira metade do séc. XI).

Sob o título de cada peça, apresentam-se as siglas dos manuscritos dos Antifonários da Missa, sem notação musical, dispostas em sinopse no Antiphonale Missarum Sextuplex de dom René-Jean Hesbert:

M Cantatorium de Monza (segundo terço do séc. IX)
R Graduale de Rheineau (cerca de 800)
B Graduale de Mont-Blandin (séc.s VIII-IX)
C Graduale de Compiègne (segunda metade do séc. IX)
K Graduale de Corbie (depois de 853)
S Graduale de Senlis (finais do séc. IX).

Tal como no Graduale Triplex, a letra grega λ indica uma lacuna no manuscrito.

O aparato crítico que ilustra o trabalho realizado e as escolhas efectuadas para boa parte do repertório está disponível na série Subsidia do Centro di canto gregoriano e monodie «Jean Claire» de Verona junto das Edizioni Melosantiqua [5], à qual se remete.

Uma anotação particular merecem duas escolhas aqui efectuadas e que marcam um seguro progresso.

A primeira. Nesta edição foi abordado o tema do quilisma no intervalo de quarta ou de quinta já delineado por Cardine no Liber Hymnarius [6] e bem evidencado na Edition critique [7] à luz dos manuscritos diastemáticos e em parte adiastemáticos.

[6] Antiphonale Romanum Tomus alter, Liber Hymnarius cum Invitatoriis et aliquibus Responsoriis, Solesmis 1983, e.g. resp. Ecce vicit p 512, 4ª pauta al-leluia. Sobre este tema ver também ALBERTO TURCO, A colocação do «quilisma» no scandicus, in Vox gregoriana, Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano e monodias «Dom Jean Claire» - Verona, n° 3 Setembro - Dezembro 2019, pp 8-12.

[7] Cfr. nota 3.

A segunda. Os versetos dos Intróitos e das Comunhões do III tom apresentam a versão melódica estereotipada da cadência mediana, retirada do Versicularium 381. Todas as Communio foram dotadas de um verseto salmódico, na selecção operada por Ein.

O auspício é que este ulterior trabalho possa contribuir para o verdadeiro progresso dos estudos restitutivos, bem como para a difusão daquele canto que a Igreja não hesita em definir como "próprio" [8] e em preferi-lo na liturgia às outras linguagens musicais.

[8] SC 116

Mons. Alberto Turco
Dom Nicola Bellinazzo
Dom Gilberto Sessantini

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Alberto Turco: Recitativos Apócrifos

Continuamos a tradução e republicação
dos esclarecedores artigos contidos no 

  

Alberto Turco

RECITATIVOS APÓCRIFOS

O Missale Romanum, editio typica tertia-2002, propõe três formulários para o Acto Penitencial: o primeiro, com o texto do Confiteor; o segundo, com dois V. + R.: Miserére nostri Dómine, etc.; o último, com as Invocações e o Kyrie. Todos os três formulários são respectivamente precedidos e seguidos pelo convite ao acto penitencial e pela absolvição.
Apenas para os versetos (Miserere nostri, Domine) do segundo formulário reservou o Missale Romanum o tom recitativo; o tom próprio das orações simples (colecta, etc.), em dominante e cadência final La (transposição da corda originária Re). Nenhuma tom "oficial" para os outros dois formulários, nem no tom de Ré (= Lá, em transposição) nem no tom de Dó. Para colmatar esta lacuna do Missale Romanum, pensou, à sua maneira com melodias de todo inesperadas, o Graduale Novum, vol. II, 2018, às págs. 403-406.

ACTO PENITENCIAL
A
«Confiteor»


Trata-se de um tom "irreconhecível": o tenor (corda dominante de recitação) em Dó, com o Si-bequadro, no papel de subdominante ou subtónica, e com o Si-bemol de ornamentação na cadência da frase, em Fá, para evitar o trítono. O presente tom havia entrado nas edições do primeiro período da restauração gregoriana (Liber Usualis, etc.) para o canto do Confiteor antes da Comunhão na Missa Pontifical. Donde provém? É fácil dizer! Do «Cerimonialis, Ordo Romanus ad usum totius Serafici Ordinis Minorum», cap. XXV, Romæ p. 580. Hoje, os Franciscanos que me forneceram as fotos do Cerimonial consideram-no, com boa razão, um dos piores tons compostos pelos seus predecessores. Este tom foi riscado do Ordo Cantus Missæ de 1972: «A própria melodia das peças do Graduale Romanum, escreve Dom J. Claire, não foi retocada, aguardando a edição crítica (começada em 1948, mas infelizmente retardada por causa de trabalhos requeridos pelo Concílio). A simples reordenação, por outro lado, das peças tradicionais não comportava a necessidade duma nova edição, mas somente um Ordo cantus Missæ que se publicou em 1972, e segundo o qual Solesmes publicou, em 1975, uma edição privada do Graduale, do qual foram eliminadas as peças consideradas ad libitum" (cfr. CLAIRE J., Un secolo di lavoro a Solesmes, em "Studi Gregoriani", XVI, 2000, p. 23).

B


A reconstrução deste tom, em dominante La e cadência final Mi (transposição de re -↓la), é feita do tom das Orações simples. Há duas observações a fazer, devidas à sua nova colocação no Ordo cantus Missæ. De facto, este tom está colocado no Acto Penitencial, não na parte eucarística, como acontecia no velho Ordo. Por consequência, deve ser removida seja a fórmula final “la-la-sol-la-mi” do ad Dominum Deum nostrum, seja o acento cadencial no Si de omissione e et vos fratres. Estes dois sinais de pontuação são próprios da seção eucarística do Ordo. Seria oportuno substituí-los com a fórmula de pontuação das orações simples. Eis o exemplo:


É importante respeitar o contexto ritual no uso das fórmulas! A comissão encarregada (Cœtus XXV: De libris cantus liturgici revisendis et edendis, presidida por Dom E. Cardine) reconstruiu o novo Ordo cantus Missæ sob critérios bem precisos de ordem melódica, modal e estética.

INVOCAÇÕES E KYRIE

A
(tonus sollemnis)


Uma primeira observação diz respeito ao incipit. A entonação no grave não se liga com a cadência final, na corda de recitação, do convite, mysteria celebranda. Esta ligação não se encontra em nenhum tom.
O problema grave, porém, é dado pela resposta Kyrie eleison, cuja fórmula (?) introduz uma dominante de contraste (Sol) em relação à do versus (La). O tom do versus na verdade pertence ao modo de Re; a fórmula (?) do Kyrie pertence ao modo de Do.
A construção deste tropo é um “insulto” à estética de qualquer salmodia responsorial. A responsa nasce “por natureza” e evolui na dominante do versus. Não se dá uma responsa num tom mais grave!
Neste caso específico, a melodia correcta do Kyrie, que pertence à tradição milanesa, é atestada nas actuais edições monásticas na seguinte versão melódica:


B
(tonus simplex)


A escolha do Kyrie, da Litaniæ Sanctorum, não é das melhores: expressa uma evolução modal para o grave. Habitualmente adopta-se a fórmula que traz a final para a dominante Dó.


UMA MELODIA DO «SYMBOLUM APOSTOLORUM»

Os redactores do Graduale Novum.II, p. 391 acolheram a seguinte melodia para o «Symbolum Apostolorum».


Repito in extenso quanto escrevi sobre a questão do texto e da melodia deste Credo, em Cantus recitativi, «Antiquæ Monodiæ Eruditio - VI», Verona, 2011, p. 292.

Entre os séc. VI e VII, o Symbolum Apostolorum é substituído pelo Niceno-Constantinopolitano, tanto no Oriente como no Ocidente (cfr. HUGLO M., Origine de la mélodie du Credo «authentique» de la Vaticane, in «Revue Grégorienne», 30, 1951, pp. 68-78).
Por este facto, é assaz provável que jamais tenha entrado na Missa (cfr. WAGNER P., Origine e sviluppo del canto liturgico fino alla fine del medioevo, Bologna, 1970, p. 97/nota). Do presente Credo não se tem de facto quaisquer vestígios de versão melódica nas fontes tradicionais dos antigos repertórios litúrgicos ocidentais.

A melodia, proposta pelo Graduale Novum, é atestada pelo cód. 2615, Museu Britânico, aa. 1227-1234, f° 14, que contém um repertório de cantos (Ofício da Circuncisão, o Ludus Danielis, o Benedicamus Domino e um Conductus) para a Catedral de Beauvais.
O texto do Credo (Symbolum Apostolorum) aí se insere, na forma tropada do Ludus Danielis: «um unicum na dramaturgia medieval» [1].

[1] Cfr. CATTIN G., La monodia nel medioevo, «Storia della musica - 2», Torino, 1991, p. 149.

        Credo in Deum Patrem omnipotentem, solus qui tuetur omnia, solus qui gubernat omnia, creatorem celi et terre. Et in Jesum Christum filium ejus unicum natum ante secula, Dominum nostrum pro mundi remedio carnis opertum pallio. Qui conceptus est de Spiritu Sancto natus ineffabiliter ex Maria Virgine, Sol de stella passus sub Pontio Pilato ipsi potestate tradita. Crucifixus mortuus et sepultus. Qui nulla perpetravit facinora. Descendit ad inferna. Gemit capta pestis antiqua. Tercia die resurrexit ad celos unde descenderat. Sedet ad dexteram dei patris omnipotentis regna cujus disponit jure perhenni. Inde venturus judicare vivos et mortuos. Reddens vicem pro additis justisque regnum pro bonis. Credo in Spiritum Sanctum sine quo preces omnes casse creduntur et indigne dei auribus. Sanctam ecclesiam catholicam que construitur in celis vivis ex lapidibus. Sanctorum communionem Angeli quorum semper rident faciem patris. Remissionem peccatorum. Quibus Deum offendimus corde verbo operibus. Carnis resurrectionem immortalitatem cum Christo. Vitam eternam. Quam repromisit deus diligentibus se. Amen

O paleógrafo Henry Bannister (1854-1919) entregou ao atelier de Solesmes uma transcrição sua deste tropo, inferida do códex acima indicado.

Nota do tradutor: pode encontrar-se uma versão muito similar, mas não exactamente igual, com boa qualidade para consulta em linha, no ms. CH-Laon 263, Tropário-prosário-hinário, séc.s XII-XIII, ff.139r-139v [289-290], através da cidade de Laon e cantusindex.


Como se pode ver, a melodia é construída sobre um 8º tom salmódico, de género silábico, em dominante Dó e cadência final Sol, subdividido em duas partes, caracterizadas por duas pontuações melódicas silábicas, uma para a mediatio e outra para a terminatio. A estranheza destas cadências por oposição às tradicionais dos tons salmódicos sugere que a versão melódica do tropo Ludus Danielis foi cunhada em circunstâncias "suspeitas". Cattin afirma: «Verosimilmente [o Ludus Danielis] era executado depois das Matinas da Circuncisão, ou seja, o primeiro de Janeiro, o mesmo dia para o qual Pierre de Corbeil (†1222) compôs o Officium stultorum (Officium asini). O texto denuncia a origem escolaresca do drama...»[2]. Da mesma opinião é Dom Jean Claire, que me pediu que não usasse esta melodia não só pela sua “estranheza”, mas sobretudo pela sua origem profana. Ele aconselhou-me outrossim a empregar a melodia do Credo VI da Edição Vaticana (GT 782), uma vez que era completamente ignorada ou pelo menos não praticada pelas scholæ. A esta poderia muito bem aplicar-se o texto do Symbolum Apostolorum, pelo facto de ter sido composta sobre um "timbre" de tom recitativo semi-ornado, do qual Dom André Mocquereau preparara há muito o «Prospecto» (cfr. Le Nombre Musical, tomo II, entre a p. 212 e a p. 213). E assim fiz com o nada obsta de Claire.

[2] CATTIN G., La monodia ..., op. cit., p. 149.

O texto do Symbolum Apostolorum, aplicado ao timbre do Credo VI da edição vaticana, está publicado em Psallite Domino, Canti per la Messa, Ed Mus. LIM, 2007, pág. 51.

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Sessantini: a expressão “ceteris paribus” em Sacrossanctum Concilium 116

Continuamos a tradução e republicação
dos esplêndidos artigos contidos no 

Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano «Dom Jean Claire» - Verona
Ano II - n° 2 - Maio - Agosto 2020

  

Gilberto Sessantini

O significado da expressão “ceteris paribus”

AAS: Acta Apostolicae Sedis
IMSSL: Instr. De Música Sacra et Sacra Liturgia, 1958
MD: Mediador Dei, 1947
MS: Musicam Sacram, 1967
MSD: Música Sacrae Disciplina, 1955
SC: Sacrosanctum Concilium, 1963

Depois de nos termos debruçado num precedente artigo [1] sobre o estatuto do “canto próprio da liturgia romana” aplicado ao canto gregoriano pelo n° 116 da Sacrosanctum Concilium, queremos dedicar algumas linhas à expressão “ceteris paribus” ̶ normalmente traduzida como “ em igualdade de condições" ̶ presente no mesmo número da constituição conciliar e, em sua maioria, interpretada em sentido restritivo, ou seja, limitando o uso do canto gregoriano. Em primeiro lugar, revisemos integralmente o texto em questão, porque, como é óbvio e oportuno, a primeira operação a fazer quando se fala de um inciso é colocá-lo no seu justo contexto:

Ecclesia cantum gregorianum agnoscit ut liturgiae romanae proprium: qui ideo in actionibus liturgicis, ceteris paribus, principem locum obtineat. Alia genera Musicae sacrae, praesertim vero polyphonia, in celebrandis divinis Officiis minime excluduntur, dummodo spiritui actionis liturgicae respondeant, ad normam art. 30.” [2]

[1] G. SESSANTINI, Il gregoriano e il suo statuto di “canto proprio della liturgia romana, in Vox gregoriana, Bollettino informativo del centro di Canto Gregoriano e monodie "dom Jean Claire" Verona, anno I, n° 2 Maggio-Agosto 2019.

[2] SC 116.

A afirmação principal, que assim fundamenta todo o número 116, é que a Igreja reconhece o canto gregoriano como o canto próprio da liturgia romana. Desta afirmação de princípio derivam duas consequências práticas. A primeira é que nas celebrações deve reservar-se-lhe o lugar principal. A segunda, todavia, é que não devem ser excluídos, de modo algum, outros géneros de música sacra por causa desta primazia do canto gregoriano. Encontramo-nos perante um princípio claro e duas consequências práticas que dele decorrem e que são igualmente claras. Qual é, então, o significado de um aparte como aquele inserido na primeira consequência prática derivada do princípio básico afirmado precedentemente?

Para compreendê-lo, devemos antes de mais reconstruir a génese da referida passagem e, de forma mais geral, das declarações de princípio relativas ao canto gregoriano.

Como muitas outras declarações da Sacrosanctum Concilium, também aquela em questão é devedora do Magistério precedente, contrariamente ao que se crê. No que diz respeito à liturgia, à música sacra em geral e ao canto gregoriano em particular - para além das afirmações de princípio presentes nos documentos da primeira metade do século XX, cujo fundador foi o Motu proprio Inter sollicitudines [3] de Pio X -, é sobretudo o riquíssimo magistério de Pio XII a fazer escola, com uma primeira Encíclica, a Mediador Dei de 1947, estabelecendo todo o seu pensamento sobre a liturgia; uma segunda Encíclica, a Musicae Sacrae Disciplina de 1955, inteiramente dedicada à música sacra [4]; e finalmente uma Instructio de Musica Sacra et Sacra Liturgia, da Sagrada Congregação dos Ritos de 1958 [5], que pode considerar-se verdadeiramente como “o testamento espiritual de Pio XII em matéria litúrgica” [6]. É precisamente neste último documento que aparece pela primeira vez nos documentos magisteriais a expressão “ceteris paribus”:

Cantus gregorianus est cantus sacer, Ecclesiae romanae proprius et principalis; ideoque in omnibus actionibus liturgicis non solum adhiberi potest, sed, ceteris paribus, aliis Musicae sacrae generibus est praeferendus”. (IMSSL 16) [7]

[3] Ver também a Carta ao Card. Respighi: Acta Pii X, vol. I, pp. 68-74; v. p. 73s; Acta Apostolicae Sedis (AAS) 36 (1903-04), pp. 325-329, 395-398, v. 398. Também Pio XI disto se ocupa: ver PIUS XI, Const. apost. Divini cultus: AAS 21(1929), p. 33s.

[4] Em AAS 48(1956), pp. 5-25. Eis as expressões altamente elogiativas reservadas ao gregoriano: “A essa santidade se presta sobretudo o canto gregoriano, que desde tantos séculos se usa na Igreja, a ponto de se poder dizê-lo património seu. Pela íntima aderência das melodias às palavras do texto sagrado, esse canto não só quadra a este plenamente, mas parece quase interpretar-lhe a força e a eficácia, instilando doçura na alma de quem o escuta; e isso por meios musicais simples e fáceis, mas permeados de tão sublime e santa arte, que em todos suscitam sentimentos de sincera admiração, e se tornam para os próprios entendedores e mestres de música sacra uma fonte inexaurível de novas melodias. Conservar cuidadosamente esse precioso tesouro do canto gregoriano e fazer o povo amplamente participante dele, compete a todos aqueles a quem Jesus Cristo confiou a guarda e a dispensação das riquezas da Igreja. Por isso, aquilo que os Nossos predecessores são Pio X, com toda a razão chamado restaurador do canto gregoriano, e Pio XI, sabiamente ordenaram e inculcaram, também nós queremos e prescrevemos que se faça, prestando-se atenção às características que são próprias do genuíno canto gregoriano; isto é, que na celebração dos ritos litúrgicos se faça largo uso desse canto, e se providencie com todo o cuidado para que ele seja executado com exactidão, dignidade e piedade”.

[5] In AAS 50 (1958), pp. 630-663.

[6] F. ANTONELLI, L’Istruzione della Sacra Congregazione dei Riti sulla Musica Sacra e la Sacra Liturgia, Opera della Regalità, Milano 1958, p.5.

[7] Instr. De Musica Sacra et Sacra Liturgia, (IMSSL) n° 16. Texto em F. ANTONELLI, op. cit. Em italiano, na tradução oficial: “Il canto gregoriano è il canto sacro proprio e principale della Chiesa romana. Perciò in tutte le azioni liturgiche, non solo si può usare, ma anche, a parità di condizioni, è da preferirsi agli altri generi di Musica sacra”.
N. do T.: Em português, na Instrução sôbre a Música Sacra e a Sagrada Liturgia. 1958. Editôra Vozes Ltda., Petrópolis, R. J., Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte: «16. Canto gregoriano é o canto sacro principal e próprio da Igreja romana. Portanto, não só pode ser usado em todos os atos litúrgicos, mas, em igualdade de condições, deve ser preferido aos outros gêneros de Música sacra».

O contexto no qual este parágrafo dedicado ao canto gregoriano se insere é o “Capítulo II: Normas gerais". Sobre o gregoriano já se havia dito algo, mas num sentido mais genérico, no parágrafo n.º 5 do “Capítulo I: Noções gerais”. As “Normas gerais” do segundo capítulo da Instrução preocupam-se em traçar a execução das acções litúrgicas “conforme os livros litúrgicos devidamente aprovados pela Sé Apostólica” [8], especificando que “a língua dos atos litúrgicos é o latim” [9] e que, portanto, “nas Missas cantadas, ùnicamente a língua latina deverá ser usada” [10], assim como nas missas rezadas, à excepção de “algumas orações ou cantos populares” [11] que podem ser feitos em vernáculo, e ainda “o Evangelho e também a Epístola sejam lidos em vernáculo por algum leitor, para proveito dos fiéis” [12]. O n.º 16 prossegue com a exposição do princípio supracitado do qual derivam as seguintes consequências:

Por conseguinte: a) A língua do canto gregoriano, como canto litúrgico, é ùnicamente o latim. b) As partes dos atos litúrgicos que, conforme as rubricas, são cantadas pelo sacerdote celebrante e por seus ministros, o devem ser ùnicamente no canto gregoriano constante das edições típicas (...). c) Onde, por  Indultos particulares, fôr permitido que nas Missas cantadas o sacerdote celebrante, o diácono ou o subdiácono ou o leitor, depois de cantados em gregoriano os textos da Epístola ou da Lição e o Evangelho, possam proclamar os mesmos textos também na língua vernácula, deve isso ser feito por meio de uma leitura em voz alta e distinta, com exclusão de qualquer melodia gregoriana, autêntica ou imitada”. [13]

[8] IMSSL 12.

[9] IMSSL 13.

[10] IMSSL 14a.

[11] IMSSL 14b.

[12] IMSSL 14c.

[13] IMSSL 16.

É claro que o contexto legislativo de IMSSL 16 diz respeito à vontade explícita de reiterar a necessária fidelidade rubrical em relação à língua latina e o seu natural e exclusivo revestimento musical litúrgico que é precisamente o canto gregoriano tal como se encontra nos vários livros litúrgicos, desde o Missal ao Gradual e assim por diante. Tanto é assim que nos números seguintes aparecem indicadas as modalidades de uma possível inclusão da “Polifonia sacra” [14] (e é aqui que aparecem as condições às quais voltaremos), da “Música Sacra moderna” [15], a exclusão do “canto popular religioso” [15], salvo disposição em contrário por Indulto [16], e a exclusão de modo total da que está definida como Música religiosa” [17]. E isto se baseia no princípio, reiterado ulteriormente também no termo do segundo capítulo, de que “[t]udo quanto, conforme os livros litúrgicos, deve ser cantado (...) pertence integralmente à Sagrada Liturgia” [18].

[14] IMSSL 17.

[15] IMSSL 18.

[16] IMSSL 19.

[17] IMSSL 20.

[18] IMSSL 21.

Se este é o contexto para inserir o ditame de IMSSL 16, é inequívoco que este número seja o inspirador da posterior indicação conciliar. Mas com uma diferença que é bom não transcurar. No caso da Instrução de 1958, de facto, a referência a outros géneros de música sacra aos quais se deve preferir o canto gregoriano está presente na mesma frase. Em SC 116, porém, o inciso “ceteris paribus” é absoluto, não associado imediatamente aos outros géneros dos quais se pretende ser condição limitante. O significado que a expressão “ceteris paribus” assume na Instrução de 1958 é, portanto, o seguinte: o canto gregoriano deve, em qualquer caso, ser preferido aos outros géneros de música sacra, mesmo quando estes correspondam a todas as características exigidas a um verdadeiro canto litúrgico. Na verdade, neste caso "ceteris paribus"  ̶ que à letra se traduz como "a par dos outros" ̶ tem mais claramente o significado de "posto em confrontação com os outros (géneros)", ou ainda "estando assim as coisas" [18b] e "em paridade de circunstâncias", e portanto a tradução mais eficaz e clara resulta ser esta:

O canto gregoriano é canto sacro [por excelência], próprio e principal da Igreja romana; portanto, em todas as acções litúrgicas não só se pode utilizar, como, em paridade de circunstâncias, é de preferir-se aos outros géneros de Música sacra”.

O inciso "ceteris paribus" é, pois, um reforçante do uso ("não só se pode utilizar") e do uso preferencial ("como é de preferir-se") do gregoriano em comparação com os outros géneros de música sacra, mesmo quando estes superam as barreiras de admissibilidade, em coerência com toda a implantação de IMSSL, que, derivando das normativas precedentes, visa reintroduzir o canto gregoriano em todos os níveis de celebração, incluindo a nível popular com a participação dos fiéis no canto do liturgia segundo os diferentes graus individuados. É neste documento, de facto, que são propostos pela primeira vez os chamados “graus de participação” [19], que encontraremos mais tarde na Instrução Musicam Sacram de 1967 [20].

[18b] N. do T.: do latim jurídico rebus sic stantibus.

[19] IMSSL 24 e 25.

[20] MS 7 e 29,30,31.

Em SC 116, porém, o termo de comparação desaparece, uma vez que os “outros géneros de música sacra” são enunciados só no parágrafo seguinte e “ceteris paribus” se encontra, portanto, semântica e logicamente isolado. Além disso, a tradução oficial italiana insere uma nuance da conotação jurídica, no momento em que as “circunstâncias” se tornam “condições”, assimilando neste modo a frase às cláusulas contratuais com as quais geralmente se estabelece a igualdade sob certas condições. Ao fazê-lo, é o uso do gregoriano que resultaria estar sujeito a condições e não, vice-versa, a utilização dos outros géneros de música sacra, como claramente aparecia no documento de 1958. As traduções alemã de “ceteris paribus” como “Voraussetzungen” (pré-requisitos) e espanhola “circunstancias” (circunstâncias) avizinham-se mais do significado original, ao passo que o inglês “things” (coisas) e o francês “choses” (coisas) permanecem mais genéricas [21]. [21b]

[21] As traduções nas principais línguas ocidentais foram retiradas do sítio oficial do Vaticano:
“L’Église reconnaît dans le chant grégorien le chant propre de la liturgie romaine; c’est donc lui qui, dans les actions liturgiques, toutes choses égales d’ailleurs, doit occuper la première place”.
“The Church acknowledges Gregorian chant as specially suited to the Roman liturgy: therefore, other things being equal, it should be given pride of place in liturgical services.”
“La Iglesia reconoce el canto gregoriano como el propio de la liturgia romana; en igualdad de circunstancias, por tanto, hay que darle el primer lugar en las acciones litúrgicas.”
“Die Kirche betrachtet den Gregorianischen Choral als den der römischen Liturgie eigenen Gesang; demgemäß soll er in ihren liturgischen Handlungen, wenn im übrigen die gleichen Voraussetzungen gegeben sind, den ersten Platz einnehmen.”

[21b] N. do T.: Tradução oficial em língua portuguesa: "A Igreja reconhece como canto próprio da liturgia romana o canto gregoriano; terá este, por isso, na acção litúrgica, em igualdade de circunstâncias, o primeiro lugar."

Mas será esta realmente a interpretação a ser dada ao inciso “ceteris paribus” em SC 116, ou seja, uma limitação ao uso preferencial do canto gregoriano? Não creio. Em primeiro lugar, justamente pela origem desta expressão, como demonstrado. Em segundo lugar, porque se perderia a lógica de todo o quadro de SC116.
De que “condições” se fala, então, e a que se referem elas?
De “condições” dissemos que se fala na IMSSL. E são estas as condições de admissibilidade da “Polifonia Sacra” e da “Música Sacra moderna” na liturgia:

“A Polifonia sacra pode ser usada em todas os atos litúrgicos, sob a condição de haver uma schola que a execute conforme as regras da arte. Êste gênero de Música Sacra convém mais aos atos litúrgicos cuja celebração se reveste de maior esplendor.” (IMSSL 17) 
“A Música Sacra moderna pode também ser admitida em todos os atos litúrgicos, se corresponder realmente à dignidade, à gravidade e santidade da Liturgia e houver uma schola que a possa executar conforme as regras da arte.” (IMSSL 18)

As condições, portanto, seriam ainda aquelas individuadas pela normativa eclesiástica desde Pio X: santidade, bondade de formas e universalidade, para além das possibilidades técnico-artísticas dos intérpretes. Estas determinam a possibilidade ou não de inserção no projeto litúrgico-musical de outros repertórios além do canto gregoriano, que por sua natureza satisfaz plenamente essas condições, servindo também e até - justamente por isto - de modelo. [22]

[22] MSD 21-22.

Os textos escritos como comentário ao IMSSL não entram na argumentação, limitando-se a citar ou parafrasear os ditames da Instrução. Por exemplo, Gelineau comenta assim: “nas acções litúrgicas, [o canto gregoriano] deve ser preferido – suposta a paridade de condição – aos outros géneros de música sacra” [23]. Aqui as condições tornam-se “condição”, mas é claro que não é o gregoriano a ser condicionado, mas sim os outros géneros de música sacra, segundo o pensamento da IMSSL.

[23] J. GELINEAU, Canto e musica nel culto cristiano, LCD Torino 1963, p 327. A edição original francesa é de 1959.

Os comentadores de SC e MS, porém, interpretam o inciso “ceteris paribus” de SC 116 de variados modos, segundo a ideologia inspiradora. Os mais oficiais vão no sentido de um alargamento dos critérios que SC coloca para a admissão de outros géneros de música sacra, como faz, por exemplo, Bugnini, que, logo após haver afirmado que “o gregoriano continua a ser o canto próprio do Igreja e, portanto, ceteris paribus (sic), a ser preferido por direito nativo", assim interpreta e conclui: "note-se o inciso ceteris paribus, que estabelece o equilíbrio entre os vários géneros musicais" [24], quase contornando aquele outro tanto significativo "direito nativo” que ele mesmo atribuiu ao canto gregoriano. Num sentido restritivo do canto gregoriano, por sua vez, vão os comentadores que pertencem à área Universa Laus, lendo nas “condições exigidas” antes de mais a destinação exclusivamente assemblear que deve ter o canto litúrgico, destinação, segundo eles, dificilmente aplicável ao gregoriano e, por isso mesmo, decretando a completa marginalização se não o completo ostracismo do "canto próprio" da liturgia da própria liturgia. Por outro lado, os comentaristas pertencentes à área ceciliana não entram no tema, excepto para meter à luz a ambiguidade originário do inciso, ou para condenar a interpretação unilateral, ou para depreciar a perigosidade das consequências práticas das suas interpretações unilaterais. [25]

[24] A. BUGNINI, La musica sacra, in F. ANTONELLI- R. FALSINI (cur.), Costituzione Conciliare sulla Sacra Liturgia. Introduzione, testo latino-italiano, commento, Opera della Regalità, Roma 1964, p. 323. Mais adiante, consciente de que “se todos os géneros musicais têm doravante direito de cidadania no culto, o seu uso é regulado pelo quê?”, o principal fautor da reforma litúrgica assim conclui e responde: “Na minha opinião pelos seguintes elementos: a) pelas normas positivas da Constituição ou da legislação musical, emitidas e não superadas; b) por normas positivas dadas ou a serem dadas pela autoridade eclesiástica competente, referida no art. 22; c) pelo bom gosto e pelo bom senso” (ibidem, p. 324). Nos anos sucessivos, no que diz respeito à regulamentação dada, bom gosto e bom senso raramente foram aplicados.

[25] Uma revisão em V. DONELLA, Editoriale, in "Bollettino Ceciliano", Anno 104, N. 3, Março 2009.

Não devemos ignorar, porém, que uma pequena complicação provém ainda da Instrução Musicam Sacram de 1967, a qual no nº 50 assim se exprime: “Nas ações litúrgicas em canto, celebradas em língua latina, ao canto gregoriano, como canto próprio da liturgia romana, se reserve, a paridade de condições, o posto principal”. O aditamento "celebrado em língua latina" parece querer ulteriormente restringir o âmbito do ditame conciliar às celebrações apenas em língua latina, tendo presente que em Itália a CEI tornou, de facto, impossíveis as celebrações em língua latina quando se está na presença de fiéis, contradizendo com esta limitação até o que foi disposto pelo próprio concílio [26]. Todavia, mesmo neste documento, que nas intenções originais deveria ter respondido aos quesitos e às dificuldades entretanto surgidas, e deveria ter resolvido as dúvidas práticas sobre a aplicação da reforma litúrgica e da música sacra [27], o inciso “a paridade de condições” não chega a ser adequadamente considerado nem explicado, contribuindo deste modo para deixar a questão numa espécie de limbo linguístico e canónico.

[26] Cfr CEI, Precisazioni, n° 12. Messale Romano ed. 1983: “Nas Missas celebradas com o povo usa-se a língua italiana (...). Os Ordinários do local (...) podem estabelecer que em algumas igrejas frequentadas por fiéis de diversas nacionalidades se possa usar ou a língua própria dos presentes ou a língua latina (...). Noutros casos previstos com base numa verdadeira motivação peneirada pelo Ordinário do local, deve-se em todo o caso usar a edição típica do Missale Romanum”. Note-se o uso do indicativo “usa-se” com sabor absolutizante e exclusivo, ao invés de um “use-se”, conjuntivo de género exortativo e inclusivo.

[27] Cfr MS 2 e 3.

Do quanto dissemos e demonstrámos, parece-me poder concluir que na legislação eclesiástica a expressão “ceteris paribus”, longe de ser restritiva em relação ao gregoriano, mete ainda mais em evidência as suas preeminência e exemplaridade. Trata-se de um inciso que, mutuado de um documento precedente, mudou em parte de significado mudando de contexto e, assim fazendo, ofereceu o flanco a interpretações diversas. Todavia, sob pena de negar todo o magistério anterior, a única interpretação possível resulta ser a original, presente na Instrução pacelliana. E as condições selectivas que o inciso “ceteris paribus” pressupõe serão (re)encontradas naquelas tradicionais (santidade, bondade de formas, universalidade) que deveriam ser verificadas em cada repertório ou género musical que se queira incluir na liturgia cantada. Por outro lado, tal inciso deve ler-se sòmente no constante Magistério da Igreja e não na interpretação de indivíduos singulares, musicólogos ou liturgistas que sejam. A vontade da Igreja é extremamente clara e refere-se ao gregoriano, não só como ao seu “canto próprio”, mais ainda como oração viva para uma liturgia viva e lhe exige a sua presença não como património histórico ou historicizado, nem como peça de museu para mostrar em ocasiões particulares, mas como canto que orienta para Deus todo o “fazer” da liturgia, fazendo-lhe emergir o seu “ser”.

segunda-feira, 25 de março de 2024

Sessantini: o nº 116 da Sacrosanctum Concilium do Concílio Vaticano II ou o que significa o canto gregoriano ser próprio da liturgia romana


Continuamos a tradução e republicação dos magníficos artigos contidos no 

Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano «Dom Jean Claire» - Verona
n° 2 - Maio - Agosto 2019

 

Gilberto Sessantini

O gregoriano e o seu estatuto de
"canto próprio da liturgia romana".

Entre as diversas definições que tentam determinar, cada uma segundo diversas perspectivas [1], o que seja o canto gregoriano, a mais inerente à teologia litúrgica, e por consequência a que mais deve interessar a todos os amantes das duas disciplinas envolvidas [2], é a seguinte: o canto gregoriano é “o canto próprio da liturgia romana” [3]. Esta definição é explicitada no n.º 116 da Sacrosanctum Concilium, a constituição do Vaticano II sobre a liturgia. Este número diz assim:

Ecclesia cantum gregorianum agnoscit ut liturgiae romanae proprium: qui ideo in actionibus liturgicis, ceteris paribus, principem locum obtineat.
Alia genera Musicae sacrae, praesertim vero polyphonia, in celebrandis divinis Officiis minime excluduntur, dummodo spiritui actionis liturgicae respondeant, ad normam art. 30.
O facto de que seja um documento conciliar a afirmar uma realidade tão significativa deveria, por si só, não deixar margem para dúvidas quanto à precípua relevância que o canto gregoriano deverá assumir na liturgia da Igreja, nem de que deva manter um "locum principem". Todavia, sabemos que as interpretações práticas e “pastorais” das normativas conciliares determinaram, de facto, o desaparecimento do gregoriano das celebrações, tanto que se tornou “um estranho na sua própria casa” [4]. Uma análise deste número do documento conciliar permite-nos formular algumas reflexões que podem contribuir para clarificar o alcance do ditame e a vontade dos Padres conciliares sobre o conceito de "cantum proprium", reservando-nos o direito de num próximo artigo debruçarmo-nos sobre a expressão “ceteris paribus”, imediatamente sucessiva e normalmente interpretada como o que tornou possível a negação da primeira afirmação, graças à sua pressuposta vaga ambiguidade.

[1] Para uma definição histórico-musical do canto gregoriano poderemos dizer que, num sentido geral, sob o termo canto gregoriano se coloca um enorme corpus de peças monódicas, compostas ao longo dos séculos e distribuídas em vários livros litúrgicos. Em sentido estrito, porém, o gregoriano é aquele canto que surge da fusão do canto romano antigo com as instâncias musicais próprias do mundo franco-germânico, fusão que ocorreu no século VIII e respondeu a lógicas unificadoras, a liturgia e o canto, mas também a cultura e a política. Para dar “peso político” e autoridade a esta operação litúrgico-musical, atribuiu-se a a Gregório Magno, Papa de 590 a 604, a inspiração divina das composições presentes nos Antifonários e Graduais, como recorda o poema litúrgico Gregorio Presul, posteriormente feito tropo do Intróito do Primeiro Domingo do Advento, presente nos Graduais da região franca do século IX: daí o nome de canto gregoriano.

[2] Ou seja, teologia litúrgica e estudos gregorianos. Dificilmente os dois âmbitos de pesquisa têm seguido até aqui um caminho comum, uma ocupando-se apenas dos aspectos musicais histórico-interpretativos, a outra considerando o canto gregoriano apenas como um dos tantos repertórios possíveis com os quais cantar a liturgia. Este meu contributo pretende ser uma tentativa de superar esta falta de diálogo. Era diferente, na verdade, a sinergia que caracterizava até ao Concílio Vaticano II as pesquisas semiológica e de âmbitos histórico-litúrgicos, que andavam de par e passo.

[3] A definição de “canto próprio” aplicada ao gregoriano é utilizada pela primeira vez nos documentos do Magistério por São Pio X no Motu proprio Tra le sollecitudini de 1903. Neste documento, o gregoriano é denominado “canto próprio da Igreja romana”.  Pode encontrar-se um extenso exame da legislação canónica relativa ao canto gregoriano no precioso volume de GIANNICOLA D'AMICO, Il canto gregoriano nel Magistero della Chiesa, Conservatorio di Rovigo, 2009.

[4] FULVIO RAMPI, Il canto gregoriano: un estraneo in casa sua, discurso proferido em 19 de maio de 2012 em Lecce no primeiro encontro: “Colloqui sulla musica sacra. Cinquant'anni dal Concilio Vaticano II alla luce del magistero di Benedetto XVI”.

Em primeiro lugar, convém partir do sujeito que rege gramaticalmente toda a primeira frase, que está na base do estatuto do canto gregoriano: o sujeito é “Ecclesia”, a Igreja.
É a Igreja, de facto, que reconhece o gregoriano como o canto próprio da liturgia romana. É importante recordar o sujeito. Este acto de reconhecimento é um acto eclesial, no sentido mais profundo do termo. É a própria Igreja que, considerando-se a si mesma, a sua realidade, a sua história, define algo. É uma acção magisterial, e no sentido mais elevado do termo, visto que se trata de uma definição conciliar. Esta acção da Igreja, reconhecida pela própria Igreja como uma acção própria, uma acção que lhe pertence, é uma acção que lhe compete naturalmente como “mater et magistra” e enquanto “lumen gentium”; categorias, estas últimas, que certamente se aplicam à Igreja Católica em áreas bem mais importantes, mas que, de qualquer forma, definem o seu papel de discernimento e guia e, consequentemente e em última instância, a sua potestas legislativa. É portanto a Igreja qua talis, e não o indivíduo, quem determina o que ela é, o que pertence à Igreja, o que lhe é próprio, o que a distingue e, no caso da liturgia, também quem regula cada parte, incluindo o canto, como muito bem nos lembra SC 22: “Regular a sagrada liturgia pertence unicamente à autoridade da Igreja, a qual reside na Sé Apostólica e, de acordo com o direito, no bispo... dentro dos limites determinados pelas conferências episcopais... Por consequência, absolutamente ninguém mais, mesmo que seja sacerdote, ouse, por sua própria iniciativa, acrescentar, retirar ou alterar qualquer coisa em matéria litúrgica”. E esta ação eclesial de discernimento e regulamentação, no nosso caso, diz respeito ao canto gregoriano. É importante reiterar que se trata de uma ação eclesial e magisterial, autorizada e autoritativa, porque isto deveria automaticamente redimensionar qualquer veleidade de superar o ditame conciliar com simples opiniões pessoais, que, embora possam ser formuladas por eminentes estudiosos e eclesiásticos, permanecem o que são: opiniões pessoais. Respeitabilíssimas, mas que certamente não têm a força cogente e obrigatória de um ditame conciliar, a menos que se ponha em causa toda a natureza e estrutura da Igreja...

De que acção se trata? “Ecclesia agnoscit”: a Igreja reconhece, diz a tradução oficial. O verbo latino utilizado, porém, é semanticamente bem mais eficaz e esclarecedor. Agnoscere (ad-gnoscere), de facto, com a sua partícula prefixal ad-, indica uma operação cognitiva realizada através de um discernimento, uma escolha efectuada em relação a alguns ou muitos elementos, a partir dos quais se escolhe e seleciona o objecto reconhecido como próprio, como pertencente a si mesmo. Este reconhecimento selectivo é operado graças a elementos reconhecíveis imediata e naturalmente pelo sujeito, com os quais se reencontra, se identifica, e admite estarem presentes no objeto. O sujeito - a Igreja - encontra portanto no canto gregoriano elementos que lhe permitem afirmar que é o canto próprio da liturgia romana, o canto próprio da sua liturgia, enxertando uma equivalência fundamental entre a sua liturgia e o canto que a esta liturgia corresponde, e que, consequentemente, passa a ser o “seu” canto [5]. A Igreja encontra no canto gregoriano elementos que a reconduzem inequivocamente à sua liturgia, tanto que se pode dizer que a liturgia e o canto gregoriano são partes indistintas um do outro. O valor deste reconhecimento é dado precisamente pelo uso do verbo latino agnoscere. Na verdade, para um “reconhecer” mais vago e menos cogente, estão disponíveis outros verbos latinos: reconhecer no sentido de aprovar e elogiar teria exigido o verbo laudare ou probare; no sentido de apreciar o verbo magni facere ou indicare; no sentido de distinguir cernere ou discernere; no sentido de considerar, porém, o verbo mais adequado teria sido extimare ou habere. Além disso, há toda uma área semântica legalística conexa ao verbo agnoscere que deve ter em conta: este verbo é usado para reconhecer um filho como legítimo, uma pessoa como cidadão, uma coisa como propriedade. Finalmente, a partícula prefixa ad indica um movimento ascendente, um trazer à luz, um manifestar duma verdade diante de todos e para todos. O reconhecimento da parte da Igreja do canto gregoriano como canto próprio da liturgia romana reveste-se, portanto, de todos estes significados e não pode ser reconduzido ou reduzido a uma piedosa exortação ou a uma genérica indicação de máxima.

[5] Precisamente por isto, o Motu proprio Tra le sollecitudini afirmava que o gregoriano é “o canto próprio da Igreja Romana”, fazendo a equivalência entre Igreja e liturgia e entre liturgia e canto.

Se tal é a acção realizada pelo sujeito Ecclesia, qual é o conteúdo desta operação de reconhecimento? O canto gregoriano é reconhecido como “próprio” da liturgia romana. O conceito de proprio, seja no original latino proprium ou na tradução italiana “proprio” [6], refere-se a algo exclusivo, pertencente a, característico e peculiar, preciso e especial.
Próprio, de facto, quer dizer, em primeiro lugar, propriedade. Diz-se do que pertence em modo inequívoco a alguém, do que é verdadeiramente seu e não de outros, constituindo, em sentido adjectival, uma característica identificadora.
Próprio também se diz apropriado: a qualidade peculiar, que pertence íntima e singularmente ao objecto, distinguindo-o de qualquer outro. Diz-se de uma palavra ou locução que expressa com exactidão a ideia que quer significar: o uso exacto, e não aproximado. Em sentido figurado significa também “ordenado” e “decoroso”, chegando à função adverbial de “exactamente” e “precisamente”, reforçando o conceito da palavra que determina [6b].
E se passarmos da semântica à filosofia e precisamente à lógica aristotélica, o “próprio” é um dos quatro predicáveis: é o que é inerente ao ser sem contudo defini-lo, é o que faz referência ao ser mesmo que não o inclua totalmente. No nosso caso, o canto gregoriano, reconhecido como pertencente à liturgia da Igreja, é inerente à Igreja mas sem a definir. A Igreja, de facto, é um sujeito mais amplo que o canto gregoriano, o qual obviamente não esgota toda a actividade ou essência da Igreja, mas, todavia, sendo “próprio” da liturgia da Igreja, é-lhe um elemento constitutivo que lhe permite a identificação como Igreja e enquanto Igreja. Em palavras simples: quem diz gregoriano diz inequivocamente Igreja. Mesmo que nem sempre o contrário seja verdadeiro: de facto, quem diz Igreja diz gregoriano, se, e só se, da actividade da Igreja se limita a considerar-lhe o aspecto musical, sendo o gregoriano reconhecido como proprium em relação aos aspectos musicais da liturgia da Igreja. liturgia. E, no entanto, o nexo entre Igreja e canto gregoriano, por via desse “proprium”, é talmente forte que a correspondência, pelo menos no mundo cultural ocidental, é certamente biunívoca [7].

[6] Mas esta ênfase também pode ser reconhecida em outras línguas neolatinas: as traduções oficiais em francês e espanhol, de facto, rezam propre e propio. O alemão também usa um termo semelhante: eigenen; ao passo que o inglês usa a perífrase “specially suited to the Roman liturgy”, que entra num campo semânthttps://divinicultussanctitatem.blogspot.com/ico diverso e mais débil: “um canto particularmente adequado à liturgia romana”, um exemplo claro de tradução por traição.

[6b] N. do T.: em italiano, "proprio" pode equivaler a "propriamente dito".

[7] Prova irrefutável disto mesmo são as “inserções” de melodias gregorianas em contextos particulares (ópera lírica, música pop rock e disco...) quando se quer recordar imediatamente o mundo religioso e cultual católico.

Esta lógica precisa e férrea contida no ditame conciliar que define de modo totalmente exclusivo o canto gregoriano é apoiada pelo parágrafo seguinte de SC116, onde se fala de “alia genera musicae sacrae”. Note-se bem que o original latino, assim construído, deve ser traduzido como “outros géneros de música sacra” [8] e não “os outros géneros de música sacra” como acontece na tradução oficial italiana, tanto mais que quer a versão oficial alemã quer a inglesa traduzem justa e respectivamente como “andere Arten der Kirchenmusik” e “other kinds of sacred music”, sem artigo, tornando assim ainda mais evidente o distanciamento entre o canto gregoriano e o resto da música, ainda que identificada como “sacrmelhora”. Este distaque, semântico e conceptual ao mesmo tempo, faz sim com que a definição de “canto próprio” aponte o canto gregoriano não como um repertório entre tantos, mas algo diferente de todos os outros repertórios possíveis, tornando-o justamente o “canto próprio da liturgia romana”. Poderemos dizer O canto da Igreja, o canto por excelência e por antonomásia da Igreja e da sua liturgia. Seria, de facto, sobremanira redutor considerar o canto gregoriano apenas como um elemento musical dentro da liturgia. A linguagem sonora, por assim dizer a música, dá corpo ao gregoriano, mas o canto gregoriano não é apenas música, é algo mais: é a forma musical da liturgia e, consequentemente, é ele próprio liturgia. É liturgia no sentido mais elevado do termo, liturgia em canto, liturgia que se faz canto, canto que se faz liturgia; não música dentro de um contexto litúrgico, mas liturgia pura e simples que, pela sua própria natureza, nasce “com” e “por meio” do canto e só daquele canto concreto que é o canto gregoriano. Precisamente porque a forma musical da liturgia, como tudo o que diz respeito à liturgia, acaba por ser uma obra de fé e de arte que transcende as fronteiras do tempo e os condicionamentos das culturas, ao contrário de outros repertórios, e por isso mesmo não pode considerar-se um repertório entre tantos repertórios. Ou seja, trata-se de um corpus musical que ultrapassa as fronteiras históricas para se tornar, em certo sentido, meta-histórico. Se, na verdade, o chamado “fundo autêntico” do gregoriano nasce entre os séculos IV e VIII, enxertando-se sobre material musical dos três primeiros séculos do cristianismo, também é verdade que cada celebração acrescentada ao calendário litúrgico foi acompanhada de composições que poderiam ser emprestadas de outras celebrações, mas que, quando compostas ex-novo, vinham confeccionadas respeitando, se bem que por vezes com resultados desiguais, as características composicionais próprias do canto gregoriano; e isto aconteceu até meados do século passado [9]. Uma operação que talvez nos pareça estranha e possa ser acusada de academicismo, mas que indica a vontade de nos atermos a um modelo muito específico, a um determinado "som", a uma “música própria”. Inserido nos livros litúrgicos oficiais, o gregoriano torna-se não mais a expressão musical de um determinado período histórico, mas sim um canto da Igreja; assim acontece, por exemplo, com todo o material eucológico que, embora atribuível à intervenção de um autor determinado, a partir do momento em que se funde no Missal, torna-se liturgia da Igreja. Em segundo lugar, trata-se de um corpus musical que atravessa fronteiras culturais para se tornar metacultural. A sua evolução músico-modal baseia-se em alguns sons e intervalos que pertencem a todas as culturas do Mediterrâneo e do Médio Oriente, utilizados por estas culturas quando querem trazer para a dimensão do sagrado uma determinada expressão musical [10]. Aqui reside a verdadeira raiz da música sacra. São elementos ancestrais que tocam particulares cordas de ressonâncias espirituais e emocionais e que encontramos no nosso “subconsciente” musical e religioso; ignorar ou pior negar esta realidade significaria negar o evidente. Não se trata, portanto, apenas de textos sagrados revestidos de qualquer estrutura melódica, mas de textos tornados musicalmente “sacros” por meio de particulares sons e intervalos, utilizados de modo exclusivo e capazes de evocar um mundo musicalmente “outro” que não o quotidiano. O canto gregoriano pertence a este género de música; nele e por meio dele nasceu e construiu-se a liturgia da Igreja.

[8] Aqui “género” deve ser entendido em sentido geral e não estritamente técnico-musical tendo em base critérios formais e estilísticos. Também neste caso a terminologia utilizada deve-se a Tra le sollecitudini. Sobre os géneros musicais na liturgia, ver JOSEPH GELINEAU, Canto e musica nel culto cristiano, LDC Torino 1963, pp 183ss., ao qual fazem referência todos os estudos subsequentes.

[9] Como prescrevia ainda a encíclica Musicae Sacrae Disciplina (1955): para as festas recentemente introduzidas, novas melodias deveriam ser compostas "por mestres verdadeiramente competentes, de modo que se observem fielmente as leis próprias do verdadeiro canto gregoriano, e as novas composições porfiem, em valor e pureza, com as antigas.

[10] Cfr. em particular as obras de JACQUES VIRET: Id., Le chant gregorien, Paris 2012, pp 15ss; Id., Le Chant grégorien, musique de la parole sacrée, Lausanne 1986; Id., La modalité grégorienne: un language pour quel message? Lyon, 1987. Viret mete em evidência não tanto as raízes hebraicas do canto gregoriano, mas sobretudo aquelas ligadas à oratória clássica e sobretudo aquelas comuns ao substrato mais antigo das populações europeias e da bacia mediterrânica, ligadas à tradição oral (e consequentemente à memorização textual) e a uma certa música primordial que atravessa todas as grandes sociedades do passado, sugerindo também uma interpretação da monodia gregoriana muito vizinha dos modelos orientais. Trata-se de um ramo da etnologia e da antropologia da música que deveria ser profundamente investigado. Ver também MAURICE EMMANUEL (ed), L'Histoire de la langue musicale : complété d'un aperçu d'éthnomusicologie par Jacques Viret. Tome 1, antiquité - moyen âge, Paris, Henry Laurens ed., 1981.

O que o Vaticano II afirmou, portanto, longe de ser uma “exaltação romântica” [11] é a escolha preferencial da Igreja. Uma escolha pastoral ponderada, exclusiva, unívoca, que exige uma adesão inteligente e construtiva. Uma escolha que, no que diz respeito a outras disciplinas artísticas como a arquitectura, a pintura, a escultura, a Igreja nunca fez, precisamente porque expressões artísticas não tão intimamente ligadas à liturgia (como o está o canto gregoriano) mas consideradas justamente elementos acessórios e secundários e, por isto, passíveis de estarem também ligadas ao passar do tempo e à mudança de gostos. Com o canto gregoriano não se trata de gosto, pessoal ou comunitário, mas do que é constitutivo, musicalmente falando, da oração litúrgica da Igreja - que nasce sempre como oração cantada - e, consequentemente, da própria Igreja, como reiterado pelo adágio “lex orandi statuat lex credendi” [12]. Em última análise, o canto gregoriano é a única expressão musical que resume em si totalmente e no máximo grau aquela característica principal e exclusiva da música sacra expressa no n.º 112 da Sacrosanctum Concilium: “A música sacra será, por isso, tanto mais santa quanto mais intimamente unida estiver à acção litúrgica”.

[11] Esta e outras expressões semelhantes foram formuladas numa conferência que pode muito bem ser considerada precursora de uma interpretação diferente do ditame conciliar e que conduziu efectivamente ao redimensionamento do canto gregoriano, considerado um entre outros repertórios históricos. Cfr. GINO STEFANI, “Friburgo: Prima settimana mondiale della nuova musica sacra”, in Rivista Liturgica, ano 1965, n°4, pp.492-498. A visão do conhecido semiólogo musical Gino Stefani (1929-2019), ex-jesuíta, cujo pensamento antropocêntrico e uma semiologia da música “funcional aos ritos” encontra em “L'espressione vocale e musicale nella liturgia", Torino-Leumann, LDC 1967, o seu manifesto, condicionou não pouco os debates e as práticas subsequentes com uma evolução descendente da prática musical italiana na liturgia.

[12] É o axioma cunhado com toda a probabilidade por Próspero da Aquitânia (†455) e que encontramos codificado no Indiculus de gratia, por ele compilado sob o pontificado de Leão Magno: “ut legem credendi lex statuat supplicandi” cuja tradução é “a fim que a lei da oração estabeleça a lei da fé”. Sobre a história, o significado e o alcance deste axioma teológico, cfr. CESARE GIRAUDO, In unum corpus. Trattato mistagogico sull’eucaristia, San Paolo, Cinisello Balsamo 2001, pp. 22-32.

Se esta é a condição do canto gregoriano que a Igreja oficialmente lhe reconhece, é claro que pô-lo ao mesmo nível doutros tipos de repertório musical é uma operação culturalmente insustentável e eclesialmente impossível, visto que a própria Igreja, como me parece haver evidenciado, com o termo “canto próprio” quis reconhecer ao gregoriano um estatuto particular e exclusivo, metendo no mesmo plano a liturgia nos seus conteúdos textuais com o seu revestimento musical, composto para estender da melhor forma no tempo e no espaço precisamente aquele determinado conteúdo e permitir assim à liturgia a sua máxima eficácia possível em ordem aos fins a que ela própria se propõe e para os quais existe: a glória de Deus e a santificação dos fiéis (SC 112).

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

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Recitativos litúrgicos e salmodia pré-octoecos
Repertório anterior e formas litúrgico-musicais precedentes ao séc. IX
Análise estético-modal e datação das melodias

III. Introdução à paleografia
Origem dos neumas: acentos (neuma monossónico)
Modificação dos acentos: episema e liquescência
A combinação básica do sinal de acentos nos neumas fundamentais plurissónicos

- BIÉNIO DE ESPECIALIZAÇÃO

I. Semio-modalidade
O neuma e o modo da palavra cantada, através da análise do agrupamento gráfico (corte neumático) dos elementos sonoros do neuma

II. A interpretação do canto gregoriano
 Os efeitos verbo-modais na escrita neumática e sua interpretação rítmica no "estilo verbal".

MESTRADO INTERNACIONAL

Fara in Sabina: Exposição teórico-prática do ritmo gregoriano: do estilo verbal ao estilo melismático 

Pádua: As festas marianas: origens e difusão do Proprium Missae 

Cada mestrado aceita inscrições limitadas a 10 pessoas, a fim de se executarem as peças propostas. Também se aceitam inscrições de mais participantes, na qualidade de "ouvintes". Tanto a uns como a outros serão fornecidas as peças para estudo, em fotocópia. Texto para estudo: Liber Gradualis I, Pars Festiva.

MATERIAL DIDÁCTICO
Para todos os níveis de aprendizagem, Monsenhor Alberto Turco venderá a preços reduzidos manuais, tratados, cantorais, gravações em CD/DVD, etc. durante a realização do curso.

ACESSOS, ALOJAMENTO, REFEIÇÕES

Fara in Sabina: 8 - 13 de Julho de 2024
Aeroportos de Roma (Fiumicino, Ciampino)
Comboio até à Estação Ferroviária de Fara Sabina (junta à povoação de Passo Corese)
No largo da estação, Autocarro Autolinee Troiani linhas A/B/C ou Cotral, directamente até à povoação de Fara in Sabina (Comune)
Dormidas e refeições no Mosteiro das Clarissas Eremitas, séde do curso

Pádua: 26 - 31 Agosto de 2024
Aeroportos de Milão, Veneza, Bérgamo, Bolonha, Verona, Pádua.
Comboio até à Estação Ferroviária Central de Pádua (Padova)
Largo da estação (a sul), Autocarro ou Eléctrico
Ou Caminhada de 36 minutos a pé atravessando o centro histórico da cidade até Prato della Valle
Dormidas e refeições na Abadia Beneditina de Santa Justina, séde do curso

HORÁRIOS
Início às 15h30 de 2ª feira, conclusão ao almoço de Sábado
Aulas e ensaios durante a manhã e tarde para todos os grupos
Na 6ª Feira, concerto e Missa de encerramento

CUSTOS
Transferência bancária: Inscrição 45€
No local: Curso 110€ / Masters 160€ / Alojamento e refeições 50€/dia

INSCRIÇÕES
Cada participante deverá contactar a Associação Internacional Vox Gregoriana através de correio-electrónico, facebook, ou whatsapp +393518377138, e facultar os seguintes dados:

FORMULÁRIO DE APLICAÇÃO
Sobrenome____________________________________
Primeiro nome_________________________________
Nacionalidade_________________________________
Rua___________________________________________
Código Postal / Cidade__________________________
Província_____________________________________
Tel. _________________ celular. __________________
E-mail_______________________________________
Inscrevo-me no seguinte curso:
TRÊS ANOS FUNDAMENTAIS
I. Iniciação ao canto gregoriano __
II. O proto-gregoriano __
III. Introdução à paleografia __
ESPECIALIZAÇÃO DE DOIS ANOS
I. Semio-modalidade __
II. A interpretação __
MESTRADO INTERNACIONAL
Efectivo __ Ouvinte __

sábado, 17 de outubro de 2020

Os boletins do Centro "Jean Claire" de Verona

São publicados na página do Facebook desta associação italiana fundada e dirigida pelo Monsenhor Alberto Turco em homenagem a um seu mestre francês. Para saber mais sobre a associação, existe igualmente o sítio permanente.

Os boletins publicam-se a cada quatro meses (quadrimestrais) e apresentam curtos artigos em língua italiana da autoria de entendidos estudiosos do canto gregoriano. Todos eles se encontram na rede social da organização e podem também pedir-se em PDF para o seu email: gregorianavox@gmail.com . De seguida um breve elenco dos assuntos nos boletins já publicados:

2019 - 0
Sessantini: é necessário unir todos os que estudam o canto gregoriano e exigir elevada qualidade científica ao seu trabalho.

2019 - 1
Turco: Sobre a oscilação entre os modos de re e mi e uma crítica a opções de restituição melódica no Graduale Novum.

2019 - 2
Sessantini: o nº 116 da Sacrosanctum Concilium do Concílio Vaticano II ou o que significa ser o canto gregoriano próprio da liturgia romana.
Repeto: crítica a livro de Rampi e De Lillo.

2019 - 3
Bellinazzo: origem dos próprios das Missas do Natal.
Turco: a colocação do qüilisma no scandicus.

2020 - 1
Turco: reconstituição da antífona Immutemur habitu para a 4ª Feira de Cinzas.
Repeto: crítica a livro de De Lillo.

2020 - 2
Sessantini: o que significa «ceteribus paribus».
Turco: especificidades dos ofertórios das solenidades pascais.

2020 - 3
Turco: crítica às opções melódicas de alguns toni communes e símbolo apostólico no Graduale Novum.

2021 - 1
Sesantini: o "novo" missal.
Turco: o canto do celebrante.

2021 - 2

2021 - 3

*

Os que puderem não deixem de frequentar o curso virtual de Monsenhor Alberto Turco nas próximas semanas:

Actualização: cursos de verão 2023.

Por favor comentai dando a vossa opinião ou identificando elos corrompidos.
Podeis escrever para:

capelagregorianaincarnationis@gmail.com

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