quinta-feira, 4 de abril de 2024

Bellinazzo: a origem dos próprios das Missas do Natal

Continuamos a tradução e republicação
dos magníficos artigos contidos no 

Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano «Dom Jean Claire» - Verona
n° 3 - Setembro - Dezembro 2019

 

Nicola Bellinazzo

O “PROPRIUM MISSÆ”
DO DIA DE NATAL

Premissa
A celebração do Natal do Senhor encontra a sua origem teológica e espiritual na Páscoa, onde se torna presente o mistério da passagem da morte à vida com Cristo. São Leão Magno fala do Natal como poderia ter falado da Páscoa. Sobre isso escreve: «...dia escolhido para o mistério (sacramentum) da restauração do género humano na graça» [1]. O Natal torna-se então num aspecto do único sacramentum celebrado nos seus diversos aspectos.

[1] LEÃO MAGNO, Serm., 9 (De Natale Domini): CCL 138, 139

1. Missa de Vigília (In Vigilia)
Na Missa da Vigília, os textos estão claramente orientados para a Páscoa. Nela são mencionadas diversas vezes as etapas do plano de salvação de Deus. Assim como a Páscoa, também o dia de Natal foi dotado de uma vigília, facto atestado já em meados do século VI, e, como dizíamos, constrói-se segundo o modelo da vigília pascal, com peças retiradas do Antigo Testamento no que diz respeito às leituras em particular.
No Intróito a vinda do Senhor relaciona-se com a salvação e esta com a sua glória, “glória” com significado messiânico e escatológico: Hodie scietis, quia veniet Dominus, et salvabit nos: et mane videbitis gloriam eius.
Tanto o texto do intróito como o do gradual são retirados de Êxodo 16, 6-7 e de Isaías 35,4 e fazem uma clara referência à Páscoa. Esta passagem, em que Êxodo se refere à promessa do maná, a Igreja considerou-a indicativa da promessa (vinda) do Filho de Deus.
Construído na corda de Fá (= Dó na escrita arcaica) com um pequeno acento em Sol na sílaba “e” do verbo scietis. O Sib é um ornamento do Sol. O compositor mete em evidência o Hodie inicial sublinhando o verbo scietis, trazendo-o, da corda de recitação, para o grau superior Sol. A peça desenvolve-se no grave, na subtónica Ré (= Lá ); sublinha com bivirga a sílaba tónica do verbo salvabit e da palavra gloria.

O gradual Hodie scietis tem no caput o mesmo texto do intróito; enquanto o verseto é retirado do salmo 79,2.3. Construído sobre o timbre modal dos graduais de 2º modo em A (protus à quarta), transportado para a quinta superior em clave de Dó.

O ofertório Tollite portas, versículo sétimo do salmo 23, deriva originariamente da festa de 2 de Fevereiro, Apresentação do Senhor no templo, com a qual se concluía o tempo do Natal. Mas é também o salmo do Senhor que entra em Jerusalém.
O texto: Tollite portas, principes, vestras: et elevamini, portæ æternales, et introibit Rex gloriæ.
A composição é construída na corda Ré (=Lá), com acentos melódico-verbais à 3ª (Fá=Dó), à 4ª (Sol=Ré) e, até, à quinta (Lá=Mi) em gloriæ. A simbiose do ápice musical com o textual da peça é constituída sem dúvida alguma pelos neumas e pelo iubilus conclusivo de Rex gloriæ, o «Rei da glória», protagonista absoluto desta entrada.

A communio Revelabitur, cujo texto é retirado de Is. 40,5, é escolhida para esta celebração vigiliar em referência à frase final: et videbit omnis caro salutare Dei nostri; a melodia e o texto de salutare Dei nostri provêm da communio da terceira missa In die, a primeira a ser composta.
Revelabitur gloria Domini: et videbit omnis caro salutare Dei nostri. 

A aleluia Crastina die, no Sextuplex [2], é citada somente pelo manuscrito de Senlis (segunda metade do séc. XI). Os demais manuscritos convidam o cantor a usar qualquer aleluia (quale volueris) do tempo do Advento, ou a omitir o canto. O texto é uma composição poética livre.

[2] ANTIPHONALE MISSARUM SEXTUPLEX, editado por Dom René-Jean Hesbert, Herder Roma 1935

2. Missa da Noite (In Nocte)
Dado que a celebração mais antiga do dia de Natal é a Missa In Die, as outras duas celebrações são desta uma emanação.
Os manuscritos do Sextuplex são discordantes ao atribuirem o título à Missa In nocte: alguns chamam-na de In Nocte ou In primo galli cantu; outros, Prima in gallorum cantu ou Media nocte.

A Missa In Nocte vem a ser instituída por volta do séc. V e representa a celebração estacional votiva do Natal, segundo o modelo das celebrações que se realizavam nos túmulos dos mártires. Acontecia na Basílica de Santa Maria Maior, também chamada de Basílica Sancta Maria ad præsepem, pelo facto de nela se conservar uma relíquia do berço/manjedoura.

O intróito Dominus dixit ad me: filius meus es tu, ego hodie genui te, é uma breve composição que tem como texto o sétimo verso do salmo 2. Um salmo régio que se reveste de particular importância para a leitura messiânica que lhe foi feita (vitória do Rei-Messias) e pela nova interpretação dada no Novo Testamento: a geração eterna do Verbo. Sobre este tema escolher-se-á também o gradual Tecum pricipium e a communio In splendoribus. Trata-se de uma escolha típica da historicização do repertório gregoriano.
O intróito primitivo desta missa deveria haver sido o Dum medium silentium, seguramente mais adequado à celebração nocturna do Natal: Dum medium silentium tenerent omnia, et nox in suo cursu medium iter haberet, omnipotens sermo tuus, Domine, de cælis a regalibus sedibus veniet (Sabedoria 18,14-15). Substituído pelo Dominus dixit ad me, foi recuperado para a formação do Proprium do segundo domingo depois do Natal. É uma peça da tradição galicana: composição de Ré (= Sol) com desenvolvimento melódico estendido a uma quarta tanto aguda como grave.
Se dirigirmos o olhar para o repertório de Milão, constatamos que o mesmo texto de Dominus dixit é usado como antífona após o Evangelho da missa In aurora. As duas peças equivalem-se modalmente e são comparáveis ​​(protus plagal, arcaizante à 3ª); a única diferença está no género melódico: no gregoriano género semi-ornado, no milanês silábico.

Assim, o gradual da historicização Tecum principium (terceiro verso do salmo 109) proclama a geração eterna do Verbo: Tecum principium in die virtutis tuæ: in splendoribus sanctorum, ex utero ante luciferum genui te.
A sua composição está feita sobre o timbre de protus à quarta (2* modo): a corda estrutural do caput é o Lá, com desenvolvimento da dominante em Dó; enquanto o verso está na 4ª em Ré. Também este gradual substituiu o tracto/gradual primitivo Speciosus forma, que foi recuperado pelo segundo domingo depois do Natal como Dum medium silentium.

A aleluia Dominus dixit ad me retoma o texto do Intróito (Sl 2). É construída sobre o timbre modal das aleluias de tetrardus plagal.

O ofertório Lætentur cæli está em deuterus plagal, como os ofertórios de Páscoa e Pentecostes. O texto foi extraído do Salmo 95: Lætentur cæli et exsultet terra ante faciem Domini, quoniam venit.

A communio In splendoribus sanctorum retoma o texto do salmo 109(110): In splendoribus sanctorum, ex utero ante luciferum genui te.
A estrutura melódica está encavilhada na corda de Fá, que de finalis se torna corda de recitação: modo arcaico. O compositor dá um amplo respiro a toda a peça, seja pela sua brevidade, seja pela importância de que se recobre neste contexto: o Verbo coeterno com o Pai.

3. Missa da Aurora (Mane prima)
NoAntifonale Missarum Sextuplex, a Missa da Aurora é chamada, pelos seis manuscritos, por diversos modos: Mane prima; Mane prima Statio ad Sanctam Anastasiam; In vigilia mane prima, Statio ad Hierusalem.
Até meados do século VI, o Papa celebrava esta missa diretamente na Basílica de São Pedro. Mas já a partir do final do século IV existia no Monte Palatino um Titulus Anastasiæ, uma igreja edificada na propriedade de uma mulher piedosa de nome Anastácia ou, como sustentam outros estudiosos, dedicada à ressurreição; construída no modelo da Anastasis de Jerusalém. Para o final do século V, desenvolve-se em Roma o culto a Santa Anastásia mártir. Este culto vem do Oriente, precisamente de Constantinopla, onde no dia 25 de Dezembro se celebrava a decapitação da santa mártir. A igreja assumiu o título de Santa Anastásia, e o papa, por obséquio à autoridade imperial bizantina, vinha ali celebrar a missa no dia da festa da mártir, que coincidia com o Natal. A missa, no início, tinha um formulário próprio com um seu prefácio, como nos indica o Sacramentário Gelasiano.
Da igreja de S.ª Anastásia o papa dirigia-se seguidamente para a Basílica de São Pedro para celebrar a missa do dia. Portanto, o Proprium desta missa é formado por peças recuperadas das outras duas missas no Natal. [3]

[3] Recordemos alguns costumes do Natal: só o bispo podia entoar o Gloria in excelsis Deo, privilégio que se conservou até ao século X; os sacerdotes podiam celebrar três missas, usança atribuída a Pedro, abade de Cluny.

O intróito Lux fulgebit é o mais recente dos intróitos. Provem da tradição galicana/gregoriana. O texto é um remanejamento do intróito Puer natus: Lux fulgebit hodie super nos: quia natus est nobis Dominus: et vocabitur Admirabilis, Deus, Princeps pacis, Pater futuri sæculi: cuius regni non erit finis.

No gradual Benedictus qui venit, o responso primitivo do Confitemini (salmo 117) conservou a função de resposta (caput) do novo verso 23: A Domino factus est: et est mirabile in oculis nostris, tomando porém a melodia do responsório homónimo. O presente salmo pro vem da missa In die. A salmodia mais antiga e prrópria da Páscoa e do Natal é representada pelo salmo 117, com responso, à época da forma responsorial, Hæc dies e Benedictus qui venit, respectivamente para a Páscoa e o Natal. Não se pode excluir que a escolha do responso Benedictus qui venit venha diretamente da Igreja de Jerusalém.

A aleluia Dominus regnavit é o primeiro versículo do salmo 92; é seguramente a peça originária da missa In die, como o foi para o dia de Páscoa. As fórmulas melódicas desta aleluia, em protus plagal, serviram de modelo para a composição do timbre de 2º modo. Dominus regnavit, decorem induit: induit Dominus fortitudinem, et præcinxit se virtute.

O ofertório Deus enim firmavit, do Salmo 92, o mesmo do Dominus regnavit, também se encontra como ofertório no domingo seguinte ao Natal. Poderia tratar-se do primitivo ofertório primitivo do Natal.
Deus enim firmavit orbem terræ, qui non commovebitur: parata sedes tua, Deus, ex tunc, a sæculo tu es.

A communio Exsulta filia Sion não possui texto sálmico; é retirada do livro do profeta Zacarias, no cap. 9. O mesmo texto se encontra no IV domingo do Advento segundo o Antifonal de Rheinau (séc. VIII-IX), constante do Sextuplex. Exsulta filia Sion, lauda filia Ierusalem: ecce Rex tuus venit sanctus, et Salvator mundi.

4. Missa do dia (In die)
Mais uma vez queremos reiterar que a missa primitiva do dia de Natal é a In die. Pelos manuscritos mais antigos é chamada de: In die natalis Domini, VIII Kalendas Januarias Natale Domini ad missam in die ad Sanctum Petrum, In die natalis Domini que est, VIII Kalendas Januarias, Statio ad Sanctum Petrum.

O intróito Puer natus, em tetrardus autêntico, é o primitivo canto processional de ingresso da missa de Natal, desde quando se havia uma única celebração, com a Statio em São Pedro. O texto é profético (Is 9,6) e pretende exprimir o nascimento temporal do Verbo.
Puer natus est nobis, et filius datus est nobis: cuius imperium super humerum eius: et vocabitur nomen eius, magni consilii Angelus.

O gradual Viderunt omnes repropõe como texto o salmo 97: Viderunt omnes fines terræ salutare Dei nostri: iubilate Deo omnis terra. Notum fecit Dominus salutare suum: ante conspectum gentium revelavit iustitiam suam.
O texto deste gradual substituiu o primitivo do salmo 117.
No que diz respeito à melodia, trata-se de um tritus autêntico, composição estranha aos graduais primitivos do Natal e da Páscoa.

A aleluia Dies sanctificatus propõe um texto eclesiástico. Melodicamente falando, trata-se do timbre modal de 2º modo.
Dies sanctificatus illuxit nobis: venite gentes, et adorate Dominum: quia hodie descendit lux magna super terram.

O ofertório Tui sunt cæli é retirado do Salmo 88. É um texto genérico que não tem muita ligação para o mistério que se celebra. Do ponto de vista compositivo é um deuterus plagal, como os ofertórios da Páscoa e do Pentecostes.
Tui sunt cæli, et tua est terra: orbem terrarum, et plenitudinem eius tu fundasti: iustitia et iudicium præparatio sedis tuæ.

O texto da communio Viderunt omnes fines terræ salutare Dei nostri repropõe, a par do gradual e e do verseto salmódico do Puer natus, o Salmo 97, na óptica do tema “o nascimento na história do Verbo”. A melodia, em protus autêntico, sublinha a presente temática  na acentuação das palavras ... fines terræ ... salutare.

Conclusão

Com esta breve pesquisa musical e litúrgica, quisemos afastar todas aquelas “receitas” ou considerações “romântico-evocativas” que pairam em torno da festa do Natal. Música e liturgia viajam de par e passos, completando-se, enriquecendo-se para poder exprimir, no melhor modo possível, o mistério do Verbo encarnado. A ampliação da festa do Natal, com as suas quatro celebrações, incluída também a Vigília, encontra nos textos e no canto gregoriano a sua máxima expressão. Não se pode esaurir todo o mistério da Encarnação com uma só e simples celebração e com melodias simples ou de remédio. O canto gregoriano exprime-se com melodias “únicas”, surpreendentes, com obras-primas, não só musicais mas também teológicas, sublinhando a importância das palavras ou frases que servem para celebrar dignamente o mistério.
Propomos de seguida como haveria sido o formulário da mais antiga e primitiva Missa do Natal:

In. Puer natus est
Gr. Confitemini, do salmo 117 com refrão Benedictus qui venit
Al. Dominus regnavit
De. Deus enim firmavit
Co. Viderunt omnes

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