dos magníficos artigos contidos no
Alberto Turco
IMMUTEMUR HABITU
antífona para a bênção e a imposição das cinzas
(GT 65)
O texto: a profecia de Joel (2, 13) é um convite à penitência para obter a “bênção” de Deus, por meio da qual se renovará a retoma do culto e a prosperidade agrícola.
A melodia: a versão melódica da vaticana foi retirada do Liber Gradualis (1883) de J. Pothier. Esta coincide com a versão do cód. Montpellier, Bíblia. de la Faculté de Médecine H. 159 (Dij) e cod. Bruxelas, B. Roy. II 3823 (Clu2).
O texto-melodia consta de três frases:
Immutémur hábitu, in cínere et cilício:
ieiunémus, et plorémus ante Dóminum:
quia multum miséricors est dimíttere peccáta nostra
Deus noster.
[Mudemos as nossas vestes pela cinza e o cilício.
Jejuemos e choremos diante do Senhor,
porque Deus é infinitamente misericordioso
e perdoa os nossos pecados.]
A grelha modal das três frases é a seguinte:
|
dominante |
cadência provisória |
cadência final |
1ª frase: |
SOL ou RE |
↓Do ou ↓Sol |
Sol ou Re (arcaico) |
2ª frase: |
LA |
Re |
La (protus na domin.) |
3ª frase: |
LA |
La |
Re (protus autêntico) |
O presente contributo ocupa-se exclusivamente da restituição melódica da primeira frase, sem dúvida mais complexa que as outras duas. Por este motivo, fez-se recurso à selecção dos manuscritos mais representativos da Editio critica de Solesmes (atelier, placa 1468) e de alguns dos manuscritos assinalados por R. Fischer [1].Os manuscritos selecionados pertencem às tradições beneventana (Ben5, Cas2), aquitana (Alb, Yrx), francesa (Dij2), alemã (Klo1), lorenesa (Van2), italiana (Mod1):
Ben5 |
cod. Benevento, Bibl. Cap. 34, Gradual-Tropário-Prosário, séc. XI-XII |
Cas2 |
cod. Montecassino 546, Missal de Montecassino, séc. XII primeira metade |
Alb |
cod. Paris, Bibl. Nat. lat. 776, Gradual-Tropário de Gaillac, séc. XI |
Yrx |
cod. Paris, Bibl. Nat. lat. 903, Graduale de St-Yrieix, séc. XI |
Dij2 |
cod. Bruxelles, B. Roy. II 3824, Graduale, a. 1228-1288 |
Klo1 |
Cod. Graz, Universitäsbibl. 807, Graduale, séc. XII |
Van2 |
cod. Verdun, Bibl. Mun. 759, Missale, séc. XIII primeira metade |
Mod1 |
cod. Modena, Bibl. Cap. O. I. 13, Graduale de Modena/Bologna, séc. XI-XII |
Tabela comparativa das versões melódicas dos manuscritos citados:
Os manuscritos beneventanos (Ben5, Cas2), com a escrita em dominante Sol, descem uma quarta, para Ré, à cadência da frase et cilício. Por sua vez, esta é precedida pelo termo grave, em Dó, da sílaba final de “cínere”, no papel de subtónica de Ré. A frase apresenta, então, a estrutura compositiva do protus à quarta (2* modo).
Os manuscritos aquitanos (Alb, Yrx) são escritos em dominante e cadência final em Ré. Descem uma quarta, para Lá, com o termo grave de cínere, como os precedentes de Benevento.
A mesma estrutura modal se dá em Dij2: dominante e cadência final da frase Sol; termo grave Ré.
Nestes últimos três manuscritos, a estrutura modal é aquela típica do modo arcaico de Ré.
Os outros manuscritos (Klo1, Van2, Mod1) diferem dos aquitanos pelo desenvolvimento no grave em Dó, ao invés de permanecer no Ré, da cadência final da frase. Trata-se de um primeira estádio do desenvolvimento modal da cadência final.
Dito isto, passemos à análise dos ganchos melódicos que ocorrem entre as notas finais de cilício e de cínere e os respectivos ataques dos neumas imediatamente a seguir.
A tradição, quase unânime entre os manuscritos, tem o intervalo de quinta entre a nota final de cilício e o neuma seguinte. Uma só excepção em Van2, na qual se verifica o intervalo directo da sexta; enquanto Mod1 evita tal intervalo, recorrendo ao emprego dp pes.
A tradição outrotanto sólida do intervalo de quinta dá-se entre o término grave de cínere e o ataque do neuma de et cilício. São excepções Klo1, com o intervalo de sexta, e Alb, com o intervalo de sétima. A estranheza destes dois intervalos directos, de sexta e de sétima, nos cantos do Gradual impõe-nos a análise mais detalhada do problema.
Na versão melódica de protus à quarta - dominante Sol e cadência final de frase ↓Ré -, os manuscritos da tradição beneventana concordam em pôr os intervalos de quinta entre o término grave Dó de cínere e entre a cadência final Ré de cilício e os respectivos ataques dos neumas sucessivos.
[2] Existe um só caso de intervalo directo de sexta no Graduale Romanum: cf. Gr. Quis sicut Dóminus... “terra” (GT 269). De um antigo Tracto das Quatro Têmporas, a presente peça foi transformada em Gradual com o emprego de fórmulas heterogéneas. Não existe, pois, caso algum de intervalo directo de sétima no repertório clássico do gregoriano. Inclusive, na sequência Veni Sancte Spiritus de Pentecostes (GT 253), o compositor evitou de propósito o intervalo de sétima, se bem que não directo, com o ataque em Lá e não em Dó, de Lava quod est sórdidum, em contraste com o mesma fórmula de Riga quod est áridum.
O intervalo da quinta confirma-se também entre a cadência de cilício e o ataque do ieiunémus na escrita em dominante e cadência final Ré: confronte-se Alb, Yrx, Klo1, Dij2. Nesta versão melódica – dominante e cadência final de frase Ré – notam-se, contudo, várias adaptações entre a cadência de cínere e o ataque de et cilício. Eis quanto se retira dos manuscritos da tabela mostrada acima:
- Alb coloca a fórmula de et cilício no mesmo âmbito melódico das respectivas em Ben5 e Cas2: intervalo de quinta modal do protus, com o termo agudo do pes quassus, sobre Lá, e a nota final ↓Ré. Neste âmbito, a partir da fórmula em questão até ao final da peça, a versão melódica de Alb é comparável àquela dos manuscritos beneventanos. O âmbito melódico que a presente fórmula vem assumir interrompe a linha melódica com o contexto compositivo precendente, causando o intervalo melódico de sétima entre o seu ataque e a nota final de cínere. Trata-se de um intervalo que não constitui um facto “compositivo”, mas diz respeito a um problema de “escrita por fragmentos” tout court [3].
[3] A «escrita por fragmentos» manifesta-se não apenas nos manuscritos diastemáticos sem pauta - por exemplo, Alb, Yrx, alguns beneventanos (cfr- cod. Benevento, Bibl. Cap. 40, Graduale do séc. XI início), etc. - mas também nos pautados, com ou sem clave, em peças centonizadas de fórmulas heterogéneas: por exemplo, a Co. Cantábo Dómino (GT 283) de protus plagal inicia com uma fórmula de Mi; a Co. Circuíbo (GT 297) de tritus plagal inicia com uma fórmula de Ré; a Co. Amen dico vobis: Quod uni (GT 79) é uma mistura de protus, tritus e, por fim, de deuterus; a Co. Beátus servus (GT 491) é uma mistura de deuterus-protus.
- Yrx modifica a versão melódico-modal da fórmula de et cilício, introduzindo um scandicus de três notas ascendentes no ataque, em et, e reduzindo a uma quarta a sua extensão melódica, a fim de obter os intervalos de quinta, antes e depois.
- Van2 e Mod1 recorrem ao emprego do scandicus de três notas ascendentes no ataque da fórmula et cilício para restabelecer o intervalo de quinta com o neuma precendente, mas, como tivemos oportunidade de ver anteriormente, só Mod1 procura evitar o intervalo da sexta com o ataque do neuma da segunda frase (ieiunémus), recorrendo à dicção melódica “re↑la” do pes.
- Klo1 ataca a fórmula em questão à distância de uma sexta da última nota do neuma precedente; depois desta, introduz uma variante melódica no ataque de ieiunémus (“sol-sol-la” em vez de “la-la-do”), a fim de obter o intervalo de quinta.
- Dij2 merece uma particular atenção. A sua versão melódico-modal remonta àquela de algumas peças, presumivelmente provenientes da tradição galicana - In. Dum médium siléntium (GT 53), In. In excélso throno (GT 257), In. Lux fulgébit (GT 44) -, em que, a partir da dominante Sol (corda estrutural), a melodia evolui tanto para o grave uma quarta, no modelo do modo de Ré (protus), quanto para o agudo uma quarta, no modelo do modo de Dó (tetrardus).
Conclusões:
1. Grelha modal dos responsum nos 14 graduais do 1.º modo:
dominante |
subtónica |
final |
SOL |
dó |
ré (protus à quarta) |
RÉ |
lá |
ré (modo arcaico) |
2. Grelha modal da primeira frase de Immutémur:
Immutémur |
in hábito |
et cilício |
|
ieiunémus |
dominante |
subtónica |
ataque |
final |
ataque |
|
|
lá |
|
lá |
Immutémur |
in hábito |
et cilício |
|
ieiunémus |
dominante |
subtónica |
acento |
final |
ataque |
|
|
|
|
lá |
Análise estético-modal:
A escrita em dominante Sol recalca perfeitamente a grelha modal dos responsum dos graduais de 1º modo: Ben5, Cas2.
Dij2, com escrita em dominante e cadência final Sol (modalidade arcaica), constitui um caso à parte, do qual se falará a seguir.
A escita em dominante Ré tem:
- o termo grave na quarta (fórmula de protus), com excepção de Klo1, que introduz o Si-bemol (fórmula de deuterus);
- o ataque melódico em et do pes quassus + prævirgis unisonica à distância de uma quinta, com exceção de uma sexta em Klo1 e uma sétima em Alb. A dicção melódica do presente neuma é modificada para scandicus-oriscus de três notas ascendentes, a fim de obter precisamente o intervalo de quinta com o último som do neuma precendente: Yrx, Van2, Mod1. A dicção melódica dos dois sons do pes quassus é, no entanto, de um tom inteiro;
- a nota final de cilício desce uma quinta (sol↓do), com cadência redundante de tetrardus (Klo1, Van2, Mod1) ou uma quarta (sol↓re), com redundância de protus (Yrx). Alb desce uma quinta, mas a partir do acento melódico Lá, até à cadência final Ré, com a redundância de protus;
- o ataque melódico do ieiunémus (segunda frase) coloca-se à distância de uma quinta da nota final do neume precedente (Alb, Yrx, Klo1) ou à distância de uma sexta (Van2). Mod1 tem a distância de uma segunda, com a primeira nota do pes (re↑la), para evitar o ataque direto à sexta, do Dó ao Lá.
Da presente análise se percebe que a escrita em dominante Ré acusa múltiplos ajustes melódicos no ligar das fórmulas das unidades verbais. A criticidade mais estrepitosa é testemunhada por Alb, que ao escrever em dominante Ré corrigiu a posição melódica da fórmula de et cilício, para concluir em protus no Ré.
Particularidades
1. O neuma, na dicção paleográfica de pes + pes quassus uníssono, do acento melódico-verbal de “há-bitu” tem habitualmente o ataque do neuma seguinte em Lá, como nos Cânticos da Vigília pascal (cfr. GT 186), nos Tractos de 8º modo (ver GT 97), Ben5 e Cas2 colocam correctamente a primeira nota do porrectus em Lá e, com a terceira nota, sobem para Si. Logo, para o pes sangalês, é mais que confiável a dicção melódica “la-si”.
2. O equaliter entre o pes quassus da sílaba final de “hábi-tu” e o epiphonus da preposição in tem o significado, neste contexto específico, de “igual motivo melódico” e não o de uníssono entre dois ou mais sons. Portanto, os sons do epiphonus retomam os do pes quassus precedente. O significado “mesmo motivo” expressa também o equaliter entre o neuma do acento melódico-verbal e o torculus da sílaba final de “immu-témur”. Estes mesmos contextos melódicos com o emprego da letra equaliter encontram-se respectivamente no In. Resurréxi ... “posu-ísti” (GT 196), entre o scandicus-quilisma e o torculus, e na Co. Signa eos... “e-í-ci-ent” (GT 437), três pes de seguida com equaliter colocado sob o segundo e com efeito também para o terceiro.
Versão melódica da primeira frase no
- Graduale Triplex, pág. 65
- Graduale Novum I, pág. 56
A cadência em protus é testemunhada, em Ben5 e Cas2, pela fórmula cadencial galicana (“re-mi-mi-re”) dos tractos em Re da Quaresma e Semana Santa. Por último, perguntamo-nos como foi possível que os editores da presente edição não se tenham perguntado qual o motivo que levou a comissão da vaticana a traduzir a dicção melódica do neuma de acento de "et cilício" por "la-do-re" e não por "do-do-re"? Evidentemente para evitar o intervalo de sétima. Bastava orientar-se pela versão de Ben5 e nos critérios da composição dos modos! Frequentemente no Graduale Novum encontram-se variantes melódicas atestadas somente por Ben5.
A versão mais fidedigna do ponto de vista melódico-modal e semiológico é testemunhada pelos manuscritos beneventanos e, em parte, pelos aquitanos. A passagem do protus à quarta (sol↓re) da primeira frase para o protus autêntico (la↓re) das outras duas frases, frequentemente presente no repertório, dá homogeneidade e musicalidade a toda a peça.
É bom chamar à atenção um dos critérios fundamentais a recordar acima de tudo:
As fontes manuscritas da primeira frase fornecem duas cadências: uma em modalidade arcaica, ou seja, no grau melódico da nota dominante; a outra em modalidade evoluída (protus à quarta). A estrutura em modalidade arcaica utiliza geralmente a escrita em dominante Ré: com esta escrita encaixa-se correctamente o incipit da segunda frase, com ataque da quinta no Lá. A estrutura em modalidade evoluída (protus à quarta), ao invés, usa a escrita em Sol, com cadência final Ré. Pois bem, a incerteza do termo grave da cadência provisória de cínere, na quarta ou na quinta, mas sobretudo a cadência final em modalidade arcaica estão na origem da confusão na escolha por parte dos manuscritos quanto ao ataque melódico - à quarta, à quinta, à sexta e até à sétima [4] - de et cilicio, para concluir a frase em Ré. A versão melódica e modal correcta do protus à quarta, mediante a escrita em dominante Sol e cadência final Ré está documentada nos manuscritos da área beneventana.
A configuração modal da primeira frase liga-se aos Graduais dos 1º e 7º modos, em dominante Ré (= Sol, em transposição; no caso do Gr. Salvum fac do 1º modo (GT 85), com a mesma estrutura modal da primeira frase de Immutemur, e no Gr. Miserere mihi, Domine do 7º modo (GT 103), com a acentuação em Dó dos Cânticos da Vigília Pascal.
Particularidades da versão melódica da primeira frase em escrita Sol ou em escrita Ré: na escrita em Sol, o pes de ornamentação que segue o neuma do acento melódico-verbal de “há-bitu” ataca em Lá, à distância de uma quarta do ápice Ré; diversamente, na escrita em Ré, o ataque do pes ocorre à distância de uma terça, em Fá, do ápice Lá, à distância de dois tons inteiros.
[4] O intervalo de sétima está documentado em GrNo.I.56.
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