quarta-feira, 27 de março de 2024

Repeto: crítica a livro de Rampi e De Lillo

Continuamos a tradução e republicação
dos magníficos artigos contidos no 

Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano «Dom Jean Claire» - Verona
n° 2 - Maio - Agosto 2019

 

Marco Repeto

Fulvio Rampi - Alessandro De Lillo, Nella mente del notatore: Semiologia gregoriana a ritroso, Roma, Pontificio Istituto di Musica Sacra - Libreria Editrice Vaticana, 2019, pp. 337 (Didattica e Saggistica 3) ISBN 978-88-266-0268-4.

A série Didática e Ensaística do Pontifício Instituto de Música Sacra de Roma enriqueceu-se com um novo volume: F. Rampi - A. De Lillo, Nella mente del notatore. Semiologia gregoriana a ritroso, Libreria Editrice Vaticana, Roma 2019. O intento dos autores é conduzir os estudantes e os estudiosos a entrarem na lógica notacional do neumista para compreender a valência do signo e transformar «o aluno, de fruidor passivo do dado semiológico, em fautor activo da construção de linhas neumáticas, experimentando colocar-se "na mente do notador" - sangalês ou metense - repercorrendo os passos mentais necessários à resolução das múltiplas problemáticas implícitas na natural complexidade das variantes melódicas" (pág.10). Neste contexto não podemos operar uma verdadeira e própria revisão do texto em questão, mas apenas indicar alguns aspectos salientes do tratado e das questões críticas que emergem numa primeira leitura. Num segundo momento, poderão aprofundar-se as análises.

Do ponto de vista litúrgico, na p. 38 sustém-se que o canto do ofertório, tipologia musical assaz irregular, era executado em forma antifónica por dois grupos de clérigos (especialmente na nota 20, onde cita A. Catalano no volume intitulado Alla scuola del canto gregoriano. Studi in forma di manuale, Musidora, Parma 2015), para só mais tarde ser executado por um solista de modo que o ofertório de canto coral se teria transformado em responsorial como o gradual e a aleluia. A história da liturgia documenta o facto de que as formas musicais evoluíram da forma solística para a responsorial e depois para a antifónica, e não em sentido contrário. Sabemos que na missa jamais existiu canto antifónico, forma musical própria do Ofício. Na origem o ofertório deveria tratar-se de um salmo cantado como qualquer tracto, portanto em forma directa (in directum). Mais tarde, tornar-se-ia responsorial. No Sextuplex não é chamado de antiphona mas apenas offertório. A parte mais antiga seria testemunhada pelos versetos que no romano-antigo são recitativos no estilo de tons semiornamentados: mais elaborados no gregoriano do que no romano-antigo. Na pág. 52 os autores falam dos graduais em Lá do II modo e afirmam que tais graduais não só acompanham, como se disse, todo o ano litúrgico, mas estão presentes nos dois tempos fortes do Natal e da Páscoa. Ora, sabemos que o timbre modal dos dezenove graduais do II modo pertence na sua maior parte (seis) ao período litúrgico dos Quatro Tempos do Advento, dois ao Natal, cinco ao Santoral (Vigílias), quatro à Quaresma, um para o dia de Páscoa (o Haec dies com os versos individualmente distribuídos pela Oitava), um para os defuntos. Inicialmente o gradual de Páscoa deveria ser um tracto com vários versículos do salmo, depois distribuído ao longo da semana de Páscoa. O tempo de Pentecostes está completamente desprovido, na Páscoa apenas uma gradual, no Natal dois graduais. Do ponto de vista musical, o texto debruça-se na análise do processo composicitivo desses graduais, evidenciando especialmente a posição do itálicoprimeiro acento textual: os casos de Angelis suis com palavra proparoxítona e In sole posuit com palavra paroxítona determinam a diversidade do incipit musical (p.51): a forma do texto determina um movimento formular específico. Em seguida, concentra-se no gradual Tecum principium e considera o início do texto. Tecum principium, do Salmo 109, como soará, pergunta-se o autor? “O texto (Tecum principium...) inicia com uma sílaba de acento, portanto esperaríamos um torculus no ataque da peça como acontece em Tollite, Excita, Requiem...”. Há uma verdadeira reviravolta, novidade absoluta, contexto litúrgico absolutamente novo porque o incipit da peça é modificado em relação à norma geral que exige um torculus inicial. Em toda a pág. 53 se lerão considerações espirituais acerca deste incipit. Pois bem, o início de Tecum principium não tem qualquer excepcionalidade: é uma melodia nova que se adapta ao modo de prótese a um texto mais longo que o dos outros graduais: nenhuma componente alusiva (p.53). Neste ponto devemos meter em sinopse todos estes graduais e ver como as fórmulas resultam adaptadas aos textos e como novas melodias se compõem quando o texto é mais longo. Os neumas de Laon e San Gallo neste contexto de prótese são todos ligeiros e não alargados (termo caro aos autores) como seria necessário num contexto assim cheio de significado. Seria necessário focar-se no modo de compor os graduais, segundo o qual os compositores adaptavam as fórmulas partindo do final do verseto salmódico e andando para trás em direcção ao incipit até onde pudessem e, se o texto fosse longo, compor uma melodia de carácter introdutivo. É o caso do gradual de Páscoa onde o Haec dies não apresenta excepcionalidade alguma no incipit, mas é uma combinação de fragmentos melódicos retirados de um mesmo timbre modal.

No volume, o comentário às peças é percorrido por uma intencionalidade retórico-exegética onde os autores procuram fazer com que os textos e melodias expressem ideias pré-estabelecidas. Na pág. 64, tendes o comentário exegético da communio Videns Dominus. A peça, afirma-se, é de estilo silábico e isso representaria uma excepção ao género semiornado das communio (é bom recordar que existem muitas outras de género silábico). O flentes sublinhado por um uncinus em Laon em contexto ligeiro seria não um choro, mas um “choramingo” superado pelo pranto de Cristo (lacrimatus est). Cristo chora intensamente a morte de Lázaro, as irmãs choramingam a morte do irmão. O cume expressivo seria o Dó do cume melódico que todavia apresenta neumas ligeiros e é um Dó de ornamentação e não de acento (veni foras). O Dó não é de forma alguma o extremo agudo de um processo hipotético de clímax ou gradatio, que do Fá passando pelo Sol vai ao Lá para atingir o ápice no Dó agudo na sílaba átona. Estamos na presença de forçamentos nestas interpretações retórico-exegéticas que arriscam distorcer as próprias indicações dos sinais neumáticos. Outras observações podem explicitar-se a respeito do significado melódico e modal de alguns neumas. Falando sobre o pes quassus na p. 112 diz-se: “... duas notas ascendentes de valor largo podem ser traduzidas, em São Galo, por um pes quassus (oriscus+virga), cujo valor coincide exactamente com o pes anguloso”. O pes quassus teria apenas um valor genérico de fraseado sem acenar ao valor semiomodal do pes quassus que indica a nota modalmente importante, mudança de ambiente modal. Quanto à origem dos neumas, lendo a p. 84, afirma-se que no que concerne ao pes em São Galo teria havido primeiro a dicção cursiva e depois a angulosa: "... a escrita passa de uma forma simples, ordinária, ou seja, a escrita que sinaliza a completa ligeireza de ambas as notas do neuma. A grafia simples do pes que indica dois valores deslizantes muda para uma grafia angulosa, o que provoca o alargamento de ambos os sons". Sabemos que graficamente a conjunção de um tractulus com uma virga forma um pes anguloso que é a escrita primitiva do pes, a partir da qual se desenvolve a grafia ligeira como ornamentação do neuma de acento, como forma em alternância à grafia dos acentos. O pes inicialmente sublinha a sílaba de acento e, em quanto tal, assume a forma angulosa e, depois, quando se torna de ornamentação, transforma-se na forma cursiva.

É boa a ideia de uma retroversão para entender a mente do observador, porém os exercícios propostos para as retroversões são extrapolados dos contextos para os quais nem sempre é fácil resolvê-los. Os exercícios servem-se de pontos normais para indicar as notas fluidas e pontos engrossados para as alargadas: esta grafia pode gerar uma espécie de mensuralismo.

Estas são só algumas observações que semelhante texto pode sugerir. Está se gerando a suspeita de que a interpretação do canto gregoriano caminha para uma subjectivização em que o texto e os neumas são apenas pretextos para fazer emergir significados que as peças não dizem. Em certo sentido, parecemos assistir a uma deriva na interpretação do canto gregoriano, onde a etimologia e o significado dos neumas vêm pregados a interpretações fantasiosas e arbitrárias que, embora possam ser cativantes, por outro lado, são desviantes e não respeitosas da verdade dos dados. É necessário um conhecimento dos signos, do repertório, uma mentalidade comparativista em que o repertório gregoriano seja analisado em paralelo com outros repertórios, como o milanês e o romano-antigo, um conhecimento modal da evolução das peças, do desenvolvimento das formas musicais e, não por último, um conhecimento da história da liturgia, contexto no qual se coloca a monodia ocidental. O uso de uma terminologia ambígua de valores alargados, diminuídos e aumentados para indicar o único valor silábico pode causar confusão e introduzir uma mentalidade mensuralista. Os exemplos de retroversão no final do volume, estando fora do seu contexto composicional, correm o risco de serem artificiosos. Não posso falar de valores alargados ou diminuídos em sentido absoluto, descontextualizando os neumas. Os sinais tomam vida e valor do seu contexto. A virga episemata em seu desenho gráfico é sempre igual, mas não assume um único valor ampliado em sentido absoluto. É o contexto que decide a dosagem rítmica. Traduzir com pontos ampliados neumas episemadas e com pontos reduzidos à metade os valores ligeiros leva a uma interpretação mensural. Resta, pois, uma tentativa não sei quão frutífera de combinar a lógica binária e a regra matemática com a interpretação dos neumas. A lógica binária vê em neumas a oposição férrea entre cursivo e não cursivo sem possibilidades intermédias (p. 107) como se houvesse valores longos e breves. Portanto, um neuma de dez notas havendo duas opções pode contemplar 1024 grafias diferentes de neumas combinando neumas cursivos e não cursivos (p. 108). Será necessária uma ulterior análise do texto, mas destas breves observações parece que algumas publicações estão inaugurando uma época que certamente não é propícia ao canto gregoriano.

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