quarta-feira, 27 de março de 2024

Repeto: crítica a livro de Rampi e De Lillo

Continuamos a tradução e republicação
dos magníficos artigos contidos no 

Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano «Dom Jean Claire» - Verona
n° 2 - Maio - Agosto 2019

 

Marco Repeto

Fulvio Rampi - Alessandro De Lillo, Nella mente del notatore: Semiologia gregoriana a ritroso, Roma, Pontificio Istituto di Musica Sacra - Libreria Editrice Vaticana, 2019, pp. 337 (Didattica e Saggistica 3) ISBN 978-88-266-0268-4.

A série Didática e Ensaística do Pontifício Instituto de Música Sacra de Roma enriqueceu-se com um novo volume: F. Rampi - A. De Lillo, Nella mente del notatore. Semiologia gregoriana a ritroso, Libreria Editrice Vaticana, Roma 2019. O intento dos autores é conduzir os estudantes e os estudiosos a entrarem na lógica notacional do neumista para compreender a valência do signo e transformar «o aluno, de fruidor passivo do dado semiológico, em fautor activo da construção de linhas neumáticas, experimentando colocar-se "na mente do notador" - sangalês ou metense - repercorrendo os passos mentais necessários à resolução das múltiplas problemáticas implícitas na natural complexidade das variantes melódicas" (pág.10). Neste contexto não podemos operar uma verdadeira e própria revisão do texto em questão, mas apenas indicar alguns aspectos salientes do tratado e das questões críticas que emergem numa primeira leitura. Num segundo momento, poderão aprofundar-se as análises.

Do ponto de vista litúrgico, na p. 38 sustém-se que o canto do ofertório, tipologia musical assaz irregular, era executado em forma antifónica por dois grupos de clérigos (especialmente na nota 20, onde cita A. Catalano no volume intitulado Alla scuola del canto gregoriano. Studi in forma di manuale, Musidora, Parma 2015), para só mais tarde ser executado por um solista de modo que o ofertório de canto coral se teria transformado em responsorial como o gradual e a aleluia. A história da liturgia documenta o facto de que as formas musicais evoluíram da forma solística para a responsorial e depois para a antifónica, e não em sentido contrário. Sabemos que na missa jamais existiu canto antifónico, forma musical própria do Ofício. Na origem o ofertório deveria tratar-se de um salmo cantado como qualquer tracto, portanto em forma directa (in directum). Mais tarde, tornar-se-ia responsorial. No Sextuplex não é chamado de antiphona mas apenas offertório. A parte mais antiga seria testemunhada pelos versetos que no romano-antigo são recitativos no estilo de tons semiornamentados: mais elaborados no gregoriano do que no romano-antigo. Na pág. 52 os autores falam dos graduais em Lá do II modo e afirmam que tais graduais não só acompanham, como se disse, todo o ano litúrgico, mas estão presentes nos dois tempos fortes do Natal e da Páscoa. Ora, sabemos que o timbre modal dos dezenove graduais do II modo pertence na sua maior parte (seis) ao período litúrgico dos Quatro Tempos do Advento, dois ao Natal, cinco ao Santoral (Vigílias), quatro à Quaresma, um para o dia de Páscoa (o Haec dies com os versos individualmente distribuídos pela Oitava), um para os defuntos. Inicialmente o gradual de Páscoa deveria ser um tracto com vários versículos do salmo, depois distribuído ao longo da semana de Páscoa. O tempo de Pentecostes está completamente desprovido, na Páscoa apenas uma gradual, no Natal dois graduais. Do ponto de vista musical, o texto debruça-se na análise do processo composicitivo desses graduais, evidenciando especialmente a posição do itálicoprimeiro acento textual: os casos de Angelis suis com palavra proparoxítona e In sole posuit com palavra paroxítona determinam a diversidade do incipit musical (p.51): a forma do texto determina um movimento formular específico. Em seguida, concentra-se no gradual Tecum principium e considera o início do texto. Tecum principium, do Salmo 109, como soará, pergunta-se o autor? “O texto (Tecum principium...) inicia com uma sílaba de acento, portanto esperaríamos um torculus no ataque da peça como acontece em Tollite, Excita, Requiem...”. Há uma verdadeira reviravolta, novidade absoluta, contexto litúrgico absolutamente novo porque o incipit da peça é modificado em relação à norma geral que exige um torculus inicial. Em toda a pág. 53 se lerão considerações espirituais acerca deste incipit. Pois bem, o início de Tecum principium não tem qualquer excepcionalidade: é uma melodia nova que se adapta ao modo de prótese a um texto mais longo que o dos outros graduais: nenhuma componente alusiva (p.53). Neste ponto devemos meter em sinopse todos estes graduais e ver como as fórmulas resultam adaptadas aos textos e como novas melodias se compõem quando o texto é mais longo. Os neumas de Laon e San Gallo neste contexto de prótese são todos ligeiros e não alargados (termo caro aos autores) como seria necessário num contexto assim cheio de significado. Seria necessário focar-se no modo de compor os graduais, segundo o qual os compositores adaptavam as fórmulas partindo do final do verseto salmódico e andando para trás em direcção ao incipit até onde pudessem e, se o texto fosse longo, compor uma melodia de carácter introdutivo. É o caso do gradual de Páscoa onde o Haec dies não apresenta excepcionalidade alguma no incipit, mas é uma combinação de fragmentos melódicos retirados de um mesmo timbre modal.

No volume, o comentário às peças é percorrido por uma intencionalidade retórico-exegética onde os autores procuram fazer com que os textos e melodias expressem ideias pré-estabelecidas. Na pág. 64, tendes o comentário exegético da communio Videns Dominus. A peça, afirma-se, é de estilo silábico e isso representaria uma excepção ao género semiornado das communio (é bom recordar que existem muitas outras de género silábico). O flentes sublinhado por um uncinus em Laon em contexto ligeiro seria não um choro, mas um “choramingo” superado pelo pranto de Cristo (lacrimatus est). Cristo chora intensamente a morte de Lázaro, as irmãs choramingam a morte do irmão. O cume expressivo seria o Dó do cume melódico que todavia apresenta neumas ligeiros e é um Dó de ornamentação e não de acento (veni foras). O Dó não é de forma alguma o extremo agudo de um processo hipotético de clímax ou gradatio, que do Fá passando pelo Sol vai ao Lá para atingir o ápice no Dó agudo na sílaba átona. Estamos na presença de forçamentos nestas interpretações retórico-exegéticas que arriscam distorcer as próprias indicações dos sinais neumáticos. Outras observações podem explicitar-se a respeito do significado melódico e modal de alguns neumas. Falando sobre o pes quassus na p. 112 diz-se: “... duas notas ascendentes de valor largo podem ser traduzidas, em São Galo, por um pes quassus (oriscus+virga), cujo valor coincide exactamente com o pes anguloso”. O pes quassus teria apenas um valor genérico de fraseado sem acenar ao valor semiomodal do pes quassus que indica a nota modalmente importante, mudança de ambiente modal. Quanto à origem dos neumas, lendo a p. 84, afirma-se que no que concerne ao pes em São Galo teria havido primeiro a dicção cursiva e depois a angulosa: "... a escrita passa de uma forma simples, ordinária, ou seja, a escrita que sinaliza a completa ligeireza de ambas as notas do neuma. A grafia simples do pes que indica dois valores deslizantes muda para uma grafia angulosa, o que provoca o alargamento de ambos os sons". Sabemos que graficamente a conjunção de um tractulus com uma virga forma um pes anguloso que é a escrita primitiva do pes, a partir da qual se desenvolve a grafia ligeira como ornamentação do neuma de acento, como forma em alternância à grafia dos acentos. O pes inicialmente sublinha a sílaba de acento e, em quanto tal, assume a forma angulosa e, depois, quando se torna de ornamentação, transforma-se na forma cursiva.

É boa a ideia de uma retroversão para entender a mente do observador, porém os exercícios propostos para as retroversões são extrapolados dos contextos para os quais nem sempre é fácil resolvê-los. Os exercícios servem-se de pontos normais para indicar as notas fluidas e pontos engrossados para as alargadas: esta grafia pode gerar uma espécie de mensuralismo.

Estas são só algumas observações que semelhante texto pode sugerir. Está se gerando a suspeita de que a interpretação do canto gregoriano caminha para uma subjectivização em que o texto e os neumas são apenas pretextos para fazer emergir significados que as peças não dizem. Em certo sentido, parecemos assistir a uma deriva na interpretação do canto gregoriano, onde a etimologia e o significado dos neumas vêm pregados a interpretações fantasiosas e arbitrárias que, embora possam ser cativantes, por outro lado, são desviantes e não respeitosas da verdade dos dados. É necessário um conhecimento dos signos, do repertório, uma mentalidade comparativista em que o repertório gregoriano seja analisado em paralelo com outros repertórios, como o milanês e o romano-antigo, um conhecimento modal da evolução das peças, do desenvolvimento das formas musicais e, não por último, um conhecimento da história da liturgia, contexto no qual se coloca a monodia ocidental. O uso de uma terminologia ambígua de valores alargados, diminuídos e aumentados para indicar o único valor silábico pode causar confusão e introduzir uma mentalidade mensuralista. Os exemplos de retroversão no final do volume, estando fora do seu contexto composicional, correm o risco de serem artificiosos. Não posso falar de valores alargados ou diminuídos em sentido absoluto, descontextualizando os neumas. Os sinais tomam vida e valor do seu contexto. A virga episemata em seu desenho gráfico é sempre igual, mas não assume um único valor ampliado em sentido absoluto. É o contexto que decide a dosagem rítmica. Traduzir com pontos ampliados neumas episemadas e com pontos reduzidos à metade os valores ligeiros leva a uma interpretação mensural. Resta, pois, uma tentativa não sei quão frutífera de combinar a lógica binária e a regra matemática com a interpretação dos neumas. A lógica binária vê em neumas a oposição férrea entre cursivo e não cursivo sem possibilidades intermédias (p. 107) como se houvesse valores longos e breves. Portanto, um neuma de dez notas havendo duas opções pode contemplar 1024 grafias diferentes de neumas combinando neumas cursivos e não cursivos (p. 108). Será necessária uma ulterior análise do texto, mas destas breves observações parece que algumas publicações estão inaugurando uma época que certamente não é propícia ao canto gregoriano.

segunda-feira, 25 de março de 2024

Sessantini: o nº 116 da Sacrosanctum Concilium do Concílio Vaticano II ou o que significa o canto gregoriano ser próprio da liturgia romana


Continuamos a tradução e republicação dos magníficos artigos contidos no 

Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano «Dom Jean Claire» - Verona
n° 2 - Maio - Agosto 2019

 

Gilberto Sessantini

O gregoriano e o seu estatuto de
"canto próprio da liturgia romana".

Entre as diversas definições que tentam determinar, cada uma segundo diversas perspectivas [1], o que seja o canto gregoriano, a mais inerente à teologia litúrgica, e por consequência a que mais deve interessar a todos os amantes das duas disciplinas envolvidas [2], é a seguinte: o canto gregoriano é “o canto próprio da liturgia romana” [3]. Esta definição é explicitada no n.º 116 da Sacrosanctum Concilium, a constituição do Vaticano II sobre a liturgia. Este número diz assim:

Ecclesia cantum gregorianum agnoscit ut liturgiae romanae proprium: qui ideo in actionibus liturgicis, ceteris paribus, principem locum obtineat.
Alia genera Musicae sacrae, praesertim vero polyphonia, in celebrandis divinis Officiis minime excluduntur, dummodo spiritui actionis liturgicae respondeant, ad normam art. 30.
O facto de que seja um documento conciliar a afirmar uma realidade tão significativa deveria, por si só, não deixar margem para dúvidas quanto à precípua relevância que o canto gregoriano deverá assumir na liturgia da Igreja, nem de que deva manter um "locum principem". Todavia, sabemos que as interpretações práticas e “pastorais” das normativas conciliares determinaram, de facto, o desaparecimento do gregoriano das celebrações, tanto que se tornou “um estranho na sua própria casa” [4]. Uma análise deste número do documento conciliar permite-nos formular algumas reflexões que podem contribuir para clarificar o alcance do ditame e a vontade dos Padres conciliares sobre o conceito de "cantum proprium", reservando-nos o direito de num próximo artigo debruçarmo-nos sobre a expressão “ceteris paribus”, imediatamente sucessiva e normalmente interpretada como o que tornou possível a negação da primeira afirmação, graças à sua pressuposta vaga ambiguidade.

[1] Para uma definição histórico-musical do canto gregoriano poderemos dizer que, num sentido geral, sob o termo canto gregoriano se coloca um enorme corpus de peças monódicas, compostas ao longo dos séculos e distribuídas em vários livros litúrgicos. Em sentido estrito, porém, o gregoriano é aquele canto que surge da fusão do canto romano antigo com as instâncias musicais próprias do mundo franco-germânico, fusão que ocorreu no século VIII e respondeu a lógicas unificadoras, a liturgia e o canto, mas também a cultura e a política. Para dar “peso político” e autoridade a esta operação litúrgico-musical, atribuiu-se a a Gregório Magno, Papa de 590 a 604, a inspiração divina das composições presentes nos Antifonários e Graduais, como recorda o poema litúrgico Gregorio Presul, posteriormente feito tropo do Intróito do Primeiro Domingo do Advento, presente nos Graduais da região franca do século IX: daí o nome de canto gregoriano.

[2] Ou seja, teologia litúrgica e estudos gregorianos. Dificilmente os dois âmbitos de pesquisa têm seguido até aqui um caminho comum, uma ocupando-se apenas dos aspectos musicais histórico-interpretativos, a outra considerando o canto gregoriano apenas como um dos tantos repertórios possíveis com os quais cantar a liturgia. Este meu contributo pretende ser uma tentativa de superar esta falta de diálogo. Era diferente, na verdade, a sinergia que caracterizava até ao Concílio Vaticano II as pesquisas semiológica e de âmbitos histórico-litúrgicos, que andavam de par e passo.

[3] A definição de “canto próprio” aplicada ao gregoriano é utilizada pela primeira vez nos documentos do Magistério por São Pio X no Motu proprio Tra le sollecitudini de 1903. Neste documento, o gregoriano é denominado “canto próprio da Igreja romana”.  Pode encontrar-se um extenso exame da legislação canónica relativa ao canto gregoriano no precioso volume de GIANNICOLA D'AMICO, Il canto gregoriano nel Magistero della Chiesa, Conservatorio di Rovigo, 2009.

[4] FULVIO RAMPI, Il canto gregoriano: un estraneo in casa sua, discurso proferido em 19 de maio de 2012 em Lecce no primeiro encontro: “Colloqui sulla musica sacra. Cinquant'anni dal Concilio Vaticano II alla luce del magistero di Benedetto XVI”.

Em primeiro lugar, convém partir do sujeito que rege gramaticalmente toda a primeira frase, que está na base do estatuto do canto gregoriano: o sujeito é “Ecclesia”, a Igreja.
É a Igreja, de facto, que reconhece o gregoriano como o canto próprio da liturgia romana. É importante recordar o sujeito. Este acto de reconhecimento é um acto eclesial, no sentido mais profundo do termo. É a própria Igreja que, considerando-se a si mesma, a sua realidade, a sua história, define algo. É uma acção magisterial, e no sentido mais elevado do termo, visto que se trata de uma definição conciliar. Esta acção da Igreja, reconhecida pela própria Igreja como uma acção própria, uma acção que lhe pertence, é uma acção que lhe compete naturalmente como “mater et magistra” e enquanto “lumen gentium”; categorias, estas últimas, que certamente se aplicam à Igreja Católica em áreas bem mais importantes, mas que, de qualquer forma, definem o seu papel de discernimento e guia e, consequentemente e em última instância, a sua potestas legislativa. É portanto a Igreja qua talis, e não o indivíduo, quem determina o que ela é, o que pertence à Igreja, o que lhe é próprio, o que a distingue e, no caso da liturgia, também quem regula cada parte, incluindo o canto, como muito bem nos lembra SC 22: “Regular a sagrada liturgia pertence unicamente à autoridade da Igreja, a qual reside na Sé Apostólica e, de acordo com o direito, no bispo... dentro dos limites determinados pelas conferências episcopais... Por consequência, absolutamente ninguém mais, mesmo que seja sacerdote, ouse, por sua própria iniciativa, acrescentar, retirar ou alterar qualquer coisa em matéria litúrgica”. E esta ação eclesial de discernimento e regulamentação, no nosso caso, diz respeito ao canto gregoriano. É importante reiterar que se trata de uma ação eclesial e magisterial, autorizada e autoritativa, porque isto deveria automaticamente redimensionar qualquer veleidade de superar o ditame conciliar com simples opiniões pessoais, que, embora possam ser formuladas por eminentes estudiosos e eclesiásticos, permanecem o que são: opiniões pessoais. Respeitabilíssimas, mas que certamente não têm a força cogente e obrigatória de um ditame conciliar, a menos que se ponha em causa toda a natureza e estrutura da Igreja...

De que acção se trata? “Ecclesia agnoscit”: a Igreja reconhece, diz a tradução oficial. O verbo latino utilizado, porém, é semanticamente bem mais eficaz e esclarecedor. Agnoscere (ad-gnoscere), de facto, com a sua partícula prefixal ad-, indica uma operação cognitiva realizada através de um discernimento, uma escolha efectuada em relação a alguns ou muitos elementos, a partir dos quais se escolhe e seleciona o objecto reconhecido como próprio, como pertencente a si mesmo. Este reconhecimento selectivo é operado graças a elementos reconhecíveis imediata e naturalmente pelo sujeito, com os quais se reencontra, se identifica, e admite estarem presentes no objeto. O sujeito - a Igreja - encontra portanto no canto gregoriano elementos que lhe permitem afirmar que é o canto próprio da liturgia romana, o canto próprio da sua liturgia, enxertando uma equivalência fundamental entre a sua liturgia e o canto que a esta liturgia corresponde, e que, consequentemente, passa a ser o “seu” canto [5]. A Igreja encontra no canto gregoriano elementos que a reconduzem inequivocamente à sua liturgia, tanto que se pode dizer que a liturgia e o canto gregoriano são partes indistintas um do outro. O valor deste reconhecimento é dado precisamente pelo uso do verbo latino agnoscere. Na verdade, para um “reconhecer” mais vago e menos cogente, estão disponíveis outros verbos latinos: reconhecer no sentido de aprovar e elogiar teria exigido o verbo laudare ou probare; no sentido de apreciar o verbo magni facere ou indicare; no sentido de distinguir cernere ou discernere; no sentido de considerar, porém, o verbo mais adequado teria sido extimare ou habere. Além disso, há toda uma área semântica legalística conexa ao verbo agnoscere que deve ter em conta: este verbo é usado para reconhecer um filho como legítimo, uma pessoa como cidadão, uma coisa como propriedade. Finalmente, a partícula prefixa ad indica um movimento ascendente, um trazer à luz, um manifestar duma verdade diante de todos e para todos. O reconhecimento da parte da Igreja do canto gregoriano como canto próprio da liturgia romana reveste-se, portanto, de todos estes significados e não pode ser reconduzido ou reduzido a uma piedosa exortação ou a uma genérica indicação de máxima.

[5] Precisamente por isto, o Motu proprio Tra le sollecitudini afirmava que o gregoriano é “o canto próprio da Igreja Romana”, fazendo a equivalência entre Igreja e liturgia e entre liturgia e canto.

Se tal é a acção realizada pelo sujeito Ecclesia, qual é o conteúdo desta operação de reconhecimento? O canto gregoriano é reconhecido como “próprio” da liturgia romana. O conceito de proprio, seja no original latino proprium ou na tradução italiana “proprio” [6], refere-se a algo exclusivo, pertencente a, característico e peculiar, preciso e especial.
Próprio, de facto, quer dizer, em primeiro lugar, propriedade. Diz-se do que pertence em modo inequívoco a alguém, do que é verdadeiramente seu e não de outros, constituindo, em sentido adjectival, uma característica identificadora.
Próprio também se diz apropriado: a qualidade peculiar, que pertence íntima e singularmente ao objecto, distinguindo-o de qualquer outro. Diz-se de uma palavra ou locução que expressa com exactidão a ideia que quer significar: o uso exacto, e não aproximado. Em sentido figurado significa também “ordenado” e “decoroso”, chegando à função adverbial de “exactamente” e “precisamente”, reforçando o conceito da palavra que determina [6b].
E se passarmos da semântica à filosofia e precisamente à lógica aristotélica, o “próprio” é um dos quatro predicáveis: é o que é inerente ao ser sem contudo defini-lo, é o que faz referência ao ser mesmo que não o inclua totalmente. No nosso caso, o canto gregoriano, reconhecido como pertencente à liturgia da Igreja, é inerente à Igreja mas sem a definir. A Igreja, de facto, é um sujeito mais amplo que o canto gregoriano, o qual obviamente não esgota toda a actividade ou essência da Igreja, mas, todavia, sendo “próprio” da liturgia da Igreja, é-lhe um elemento constitutivo que lhe permite a identificação como Igreja e enquanto Igreja. Em palavras simples: quem diz gregoriano diz inequivocamente Igreja. Mesmo que nem sempre o contrário seja verdadeiro: de facto, quem diz Igreja diz gregoriano, se, e só se, da actividade da Igreja se limita a considerar-lhe o aspecto musical, sendo o gregoriano reconhecido como proprium em relação aos aspectos musicais da liturgia da Igreja. liturgia. E, no entanto, o nexo entre Igreja e canto gregoriano, por via desse “proprium”, é talmente forte que a correspondência, pelo menos no mundo cultural ocidental, é certamente biunívoca [7].

[6] Mas esta ênfase também pode ser reconhecida em outras línguas neolatinas: as traduções oficiais em francês e espanhol, de facto, rezam propre e propio. O alemão também usa um termo semelhante: eigenen; ao passo que o inglês usa a perífrase “specially suited to the Roman liturgy”, que entra num campo semânthttps://divinicultussanctitatem.blogspot.com/ico diverso e mais débil: “um canto particularmente adequado à liturgia romana”, um exemplo claro de tradução por traição.

[6b] N. do T.: em italiano, "proprio" pode equivaler a "propriamente dito".

[7] Prova irrefutável disto mesmo são as “inserções” de melodias gregorianas em contextos particulares (ópera lírica, música pop rock e disco...) quando se quer recordar imediatamente o mundo religioso e cultual católico.

Esta lógica precisa e férrea contida no ditame conciliar que define de modo totalmente exclusivo o canto gregoriano é apoiada pelo parágrafo seguinte de SC116, onde se fala de “alia genera musicae sacrae”. Note-se bem que o original latino, assim construído, deve ser traduzido como “outros géneros de música sacra” [8] e não “os outros géneros de música sacra” como acontece na tradução oficial italiana, tanto mais que quer a versão oficial alemã quer a inglesa traduzem justa e respectivamente como “andere Arten der Kirchenmusik” e “other kinds of sacred music”, sem artigo, tornando assim ainda mais evidente o distanciamento entre o canto gregoriano e o resto da música, ainda que identificada como “sacrmelhora”. Este distaque, semântico e conceptual ao mesmo tempo, faz sim com que a definição de “canto próprio” aponte o canto gregoriano não como um repertório entre tantos, mas algo diferente de todos os outros repertórios possíveis, tornando-o justamente o “canto próprio da liturgia romana”. Poderemos dizer O canto da Igreja, o canto por excelência e por antonomásia da Igreja e da sua liturgia. Seria, de facto, sobremanira redutor considerar o canto gregoriano apenas como um elemento musical dentro da liturgia. A linguagem sonora, por assim dizer a música, dá corpo ao gregoriano, mas o canto gregoriano não é apenas música, é algo mais: é a forma musical da liturgia e, consequentemente, é ele próprio liturgia. É liturgia no sentido mais elevado do termo, liturgia em canto, liturgia que se faz canto, canto que se faz liturgia; não música dentro de um contexto litúrgico, mas liturgia pura e simples que, pela sua própria natureza, nasce “com” e “por meio” do canto e só daquele canto concreto que é o canto gregoriano. Precisamente porque a forma musical da liturgia, como tudo o que diz respeito à liturgia, acaba por ser uma obra de fé e de arte que transcende as fronteiras do tempo e os condicionamentos das culturas, ao contrário de outros repertórios, e por isso mesmo não pode considerar-se um repertório entre tantos repertórios. Ou seja, trata-se de um corpus musical que ultrapassa as fronteiras históricas para se tornar, em certo sentido, meta-histórico. Se, na verdade, o chamado “fundo autêntico” do gregoriano nasce entre os séculos IV e VIII, enxertando-se sobre material musical dos três primeiros séculos do cristianismo, também é verdade que cada celebração acrescentada ao calendário litúrgico foi acompanhada de composições que poderiam ser emprestadas de outras celebrações, mas que, quando compostas ex-novo, vinham confeccionadas respeitando, se bem que por vezes com resultados desiguais, as características composicionais próprias do canto gregoriano; e isto aconteceu até meados do século passado [9]. Uma operação que talvez nos pareça estranha e possa ser acusada de academicismo, mas que indica a vontade de nos atermos a um modelo muito específico, a um determinado "som", a uma “música própria”. Inserido nos livros litúrgicos oficiais, o gregoriano torna-se não mais a expressão musical de um determinado período histórico, mas sim um canto da Igreja; assim acontece, por exemplo, com todo o material eucológico que, embora atribuível à intervenção de um autor determinado, a partir do momento em que se funde no Missal, torna-se liturgia da Igreja. Em segundo lugar, trata-se de um corpus musical que atravessa fronteiras culturais para se tornar metacultural. A sua evolução músico-modal baseia-se em alguns sons e intervalos que pertencem a todas as culturas do Mediterrâneo e do Médio Oriente, utilizados por estas culturas quando querem trazer para a dimensão do sagrado uma determinada expressão musical [10]. Aqui reside a verdadeira raiz da música sacra. São elementos ancestrais que tocam particulares cordas de ressonâncias espirituais e emocionais e que encontramos no nosso “subconsciente” musical e religioso; ignorar ou pior negar esta realidade significaria negar o evidente. Não se trata, portanto, apenas de textos sagrados revestidos de qualquer estrutura melódica, mas de textos tornados musicalmente “sacros” por meio de particulares sons e intervalos, utilizados de modo exclusivo e capazes de evocar um mundo musicalmente “outro” que não o quotidiano. O canto gregoriano pertence a este género de música; nele e por meio dele nasceu e construiu-se a liturgia da Igreja.

[8] Aqui “género” deve ser entendido em sentido geral e não estritamente técnico-musical tendo em base critérios formais e estilísticos. Também neste caso a terminologia utilizada deve-se a Tra le sollecitudini. Sobre os géneros musicais na liturgia, ver JOSEPH GELINEAU, Canto e musica nel culto cristiano, LDC Torino 1963, pp 183ss., ao qual fazem referência todos os estudos subsequentes.

[9] Como prescrevia ainda a encíclica Musicae Sacrae Disciplina (1955): para as festas recentemente introduzidas, novas melodias deveriam ser compostas "por mestres verdadeiramente competentes, de modo que se observem fielmente as leis próprias do verdadeiro canto gregoriano, e as novas composições porfiem, em valor e pureza, com as antigas.

[10] Cfr. em particular as obras de JACQUES VIRET: Id., Le chant gregorien, Paris 2012, pp 15ss; Id., Le Chant grégorien, musique de la parole sacrée, Lausanne 1986; Id., La modalité grégorienne: un language pour quel message? Lyon, 1987. Viret mete em evidência não tanto as raízes hebraicas do canto gregoriano, mas sobretudo aquelas ligadas à oratória clássica e sobretudo aquelas comuns ao substrato mais antigo das populações europeias e da bacia mediterrânica, ligadas à tradição oral (e consequentemente à memorização textual) e a uma certa música primordial que atravessa todas as grandes sociedades do passado, sugerindo também uma interpretação da monodia gregoriana muito vizinha dos modelos orientais. Trata-se de um ramo da etnologia e da antropologia da música que deveria ser profundamente investigado. Ver também MAURICE EMMANUEL (ed), L'Histoire de la langue musicale : complété d'un aperçu d'éthnomusicologie par Jacques Viret. Tome 1, antiquité - moyen âge, Paris, Henry Laurens ed., 1981.

O que o Vaticano II afirmou, portanto, longe de ser uma “exaltação romântica” [11] é a escolha preferencial da Igreja. Uma escolha pastoral ponderada, exclusiva, unívoca, que exige uma adesão inteligente e construtiva. Uma escolha que, no que diz respeito a outras disciplinas artísticas como a arquitectura, a pintura, a escultura, a Igreja nunca fez, precisamente porque expressões artísticas não tão intimamente ligadas à liturgia (como o está o canto gregoriano) mas consideradas justamente elementos acessórios e secundários e, por isto, passíveis de estarem também ligadas ao passar do tempo e à mudança de gostos. Com o canto gregoriano não se trata de gosto, pessoal ou comunitário, mas do que é constitutivo, musicalmente falando, da oração litúrgica da Igreja - que nasce sempre como oração cantada - e, consequentemente, da própria Igreja, como reiterado pelo adágio “lex orandi statuat lex credendi” [12]. Em última análise, o canto gregoriano é a única expressão musical que resume em si totalmente e no máximo grau aquela característica principal e exclusiva da música sacra expressa no n.º 112 da Sacrosanctum Concilium: “A música sacra será, por isso, tanto mais santa quanto mais intimamente unida estiver à acção litúrgica”.

[11] Esta e outras expressões semelhantes foram formuladas numa conferência que pode muito bem ser considerada precursora de uma interpretação diferente do ditame conciliar e que conduziu efectivamente ao redimensionamento do canto gregoriano, considerado um entre outros repertórios históricos. Cfr. GINO STEFANI, “Friburgo: Prima settimana mondiale della nuova musica sacra”, in Rivista Liturgica, ano 1965, n°4, pp.492-498. A visão do conhecido semiólogo musical Gino Stefani (1929-2019), ex-jesuíta, cujo pensamento antropocêntrico e uma semiologia da música “funcional aos ritos” encontra em “L'espressione vocale e musicale nella liturgia", Torino-Leumann, LDC 1967, o seu manifesto, condicionou não pouco os debates e as práticas subsequentes com uma evolução descendente da prática musical italiana na liturgia.

[12] É o axioma cunhado com toda a probabilidade por Próspero da Aquitânia (†455) e que encontramos codificado no Indiculus de gratia, por ele compilado sob o pontificado de Leão Magno: “ut legem credendi lex statuat supplicandi” cuja tradução é “a fim que a lei da oração estabeleça a lei da fé”. Sobre a história, o significado e o alcance deste axioma teológico, cfr. CESARE GIRAUDO, In unum corpus. Trattato mistagogico sull’eucaristia, San Paolo, Cinisello Balsamo 2001, pp. 22-32.

Se esta é a condição do canto gregoriano que a Igreja oficialmente lhe reconhece, é claro que pô-lo ao mesmo nível doutros tipos de repertório musical é uma operação culturalmente insustentável e eclesialmente impossível, visto que a própria Igreja, como me parece haver evidenciado, com o termo “canto próprio” quis reconhecer ao gregoriano um estatuto particular e exclusivo, metendo no mesmo plano a liturgia nos seus conteúdos textuais com o seu revestimento musical, composto para estender da melhor forma no tempo e no espaço precisamente aquele determinado conteúdo e permitir assim à liturgia a sua máxima eficácia possível em ordem aos fins a que ela própria se propõe e para os quais existe: a glória de Deus e a santificação dos fiéis (SC 112).

sexta-feira, 15 de março de 2024

Turco: Influência da escrita «diastemática» na determinação do modo

Continuamos a tradução e republicação dos excelentes artigos contidos no

Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano «Dom Jean Claire» - Verona
n° 1 - Janeiro - Abril 2019

Alberto Turco

Influência da escrita «diastemática» na determinação do modo

 

Fontes:

Alb

cod. Paris, bibl. Nat. lat. 776, Gradual-Tropário de Gaillac, séc. XI, notação aquitana diastemática sem linha

BenA1

cod. Benevento, Bibl. Cap. 19-20, Breviário-Missal, séc. XII, notação beneventana sobre linha

Ben5

cod. Benevento, Bibl. Cap. 34, Gradual-Tropário-Prosário, séc. XI-XII, notação beneventana sobre linha

Dij

cod. Montpellier, Bibl. del la Faculté de Médecine H. 159, Gradual, séc. XI, notação francesa adiastemática e alfabética

Ein

cod. Einsiedeln, Stiftsbibl. 121, Gradual, séc. X segunda metade, notação sangalesa adiastemática

Klo1

cod. Graz, Universitätsbibl. 807, Gradual, séc. XII, notação lorenesa de Klosterneuburg sobre linhas

Pla1

cod. Piacenza, Bibl. Cap. 65, Tonário-Calendário-Gradual (ff. 150-230) - Tropário-Sequenciário-Antifonário de Piacenza, séc. XIII início, notação sobre linha

Sta1

cod. London, Bibl. Mus. add. 18031-32, Missal de Stavelot, sec. XIII início, notação gótico-renana sobre linha

Van2

cod. Verdun, Bibl. Mun. 759, Missal, séc. XIII primeira metade, notação lorenesa sobre linha

Wor

cod. Worcester, Cap. F 160, Antifonal e Gradual, dos ff. 249, séc. XIII, após 1230, notação quadrada sobre tetragrama.

AM

Antiphonale Monasticum pro diurnis horis, Parisiis, Tornaci, Romæ, 1934

GT

Graduale Triplex, Solesmis, MCMLXXIX

Hospeda-se na revista «Studi Gregoriani», ano XXXII, 2016, pp. 33-64, um artigo sobre a chamada restituição melódica magis critica do Graduale Romanum (= Graduale Triplex), intitulado «Mudança de modo ou notas cromáticas em relação ao texto» de Franco Ackermans. No seu interior há um parágrafo curioso, mas muito caro a um dos membros da redacção do Graduale Novum, que diz: «Necessidade do Fá sustenido. Categoria I. Mudanças entre Protus e Deuterus". Em apoio desta tese, vem citado o exemplo da Co. Passer invénit (GT 306) [1] e In. Miserere... conculcavit (GT 125), da qual hoje temos a melodia na edição do Graduale Novum, II [2], p. 71.

[1] A restituição melódica da presente comunhão encontra-se em Liber Gradualis, III, Verona, 2011, p. 32.
[2] A restituição melódica já havia sido antecipada na revista Beiträge zur Gregorianik, Band 55, Regensburg, 2013, pp. 36-38.

O facto singular do presente intróito não passou despercebido aos especialistas gregorianos, como E. Cardine, J. Claire, J. Hourlier, J. Froger, etc. durante os trabalhos de elaboração das Tabelas da «Édition Critique» do Graduale Romanum tendo em vista uma futura restituição melódica [3].

Factos compositivos deste género são frequentes no repertório do Ofício. Um exemplo extraordinário de ambivalência protus/deuterus ocorre no timbre modal da antífona Cæcília, fámula tua. Eis as duas versões melódicas:

- em protus (BenA.1.262, Pla1.418, Wor.407);


- em deuterus (AM 1140).

[3] Cf. Tabelas 759-760 do In. Miserere ... conculcavit.

A história do Ofício ensina-nos que o presente timbre modal teve origem no protus. A versão em deuterus, limitada no número de antífonas, chega num segundo momento.

As duas versões melódicas, em transposição hexacordal com cadência final Ré e Mi, compartilham a mesma escala, em dominante Mi e em cadência final Lá. A mudança de modo ocorre na parte grave da melodia (argumentósa desérvit), através da posição diferente dos semitons da corda móvel. Observe-se a seguinte tabela:

(protus)




(deuterus)

LA


MI


SI

sol


re


la

fa


do


sol

mi

← bequadro

si

bemol

fa

re


la


mi

Aqui está a melodia na escritura de Mi, da qual se origina a antífona:

Pois bem, na história do canto gregoriano não há quaisquer vestígios de escritura que na fórmula conclusiva desta antífona, com cadência final Mi (deuterus), tenha sido atribuído o intervalo de semitom do Fá sustenido, para regressar ao contexto melódico original do protus, adoptando então o 3º tom salmódico. Poder-se-á encontrar nas fontes manuscritas uma adaptação melódica para passar da escrita em deuterus àquela de protus; por exemplo, baixando a última frase em um grau melódico: neste caso, em argomentόsa, atacar com fa-fa-mi-do- etc.; mas absolutamente não introduzindo o Fá sustenido na escrita em deuterus em Mi.

O nascimento do deuterus a partir do protus é possível, reiteramos mais uma vez, pelo facto de os dois modos se originarem da mesma escala. A mudança na posição dos semitons na corda móvel no grave não é um facto de “oscilação” e, muito menos, um episódio “cromático”. A escolha de um modo em detrimento de outro, neste caso deuterus ou protus, depende da época da composição, das tradições regionais e, não raro, do neumista, que privilegia ou transcreve os sons do incipit para o espaço e não para a linha da pauta musical. Tudo isto pode constatar-se na análise das grandes «Tabelas» do atelier de Solesmes, elaboradas sob a direção de Dom A. Mocquereau.

Dito isto, vamos ao problema do In. Miserére... conculcávit.
As Tab.759-760 da Édition Critique de Solesmes reportam três diferentes escrituras das fontes manuscritas diastemáticas do referido intróito:
- incipit em Mi, cadência final Mi e 3º tom salmódico: Klo1.76v, Alb.51v;
- incipit em Ré, cadência final Ré e 1º tom salmódico: Ben5,99;
- incipit em Lá-↑Si-bemol, cadência final na nota grave, Lá, e 1º tom salmódico: Sta1.129 e Van2.74v, com a única excepção da nota da sílaba final de bellans.
A coerência entre a escrita e a estrutura modal dos referidos manuscritos dá a versão magis critica da peça. Eis a versão melódica

- em protus


Em Ben5, a dicção melódica do porrectus no acento de bellans é traduzida correctamente com o uníssono (sol-fa-fa) em vez de sol-mi-fa (ambivalência melódica do porrectus).

- em deuterus


A melodia:

A peça constitui-se de duas frases melódicas, cada uma subdividida em dois membros. O primeiro membro (Miserére mihi Dόmine) é representado pela fórmula de entoação completamente "original" de um género melódico silábico e comum aos correspondentes incipits semi-ornamentados de deuterus: cfr. In. Ego clamávi (GT 354), In. Repleátur (GT 246), In. Vocem iucunditátis (GT 229), etc.. Estende-se dentro da quinta modal, repropondo os graus melódicos da fórmula de centonização modal do timbre de protus/deuterus da antífona Cæcília, fámula tua. De todo originais são os três torculus de ornamentação e de preparação aos outros tantos neumas monossónicos de articulação na corda dominante. No topo de cada um deles, as letras do manuscrito de sangalês de Ein visam a sua interpretação agógica: celeriter, no primeiro; celeriter-sursum (s = sustenta) no segundo; sursum, no terceiro.
O segundo membro (quόniam conculcávit me homo) ainda se estrutura na quinta modal com a elevação do acento melódico privilegiado de “concul--vit”.

O primeiro membro da segunda frase (tota die bellans) marca a passagem da quinta para a quarta corda dominante. Os neumas de acento melódico-verbal de die e bellans estão dispostos em progressão melódica descendente, com cadência final na subtónica. No último membro da frase (tribulávit me) a melodia move-se em função da corda estrutural da cadência redundante.

A composição: 

A composição do presente intróito é o resultado da centonização de duas fórmulas ou, melhor, de dois membros de frase, diferentes entre si:


miserére mihi Dόmine

fórmula inicial genérica


quόniam conculcávit me homo

deduzida do contexto composicional de deuterus


tota die bellans

fórmula genérica de ligação intermediária


tribulávit me

deduzida do contexto composicional de protus

Pois bem, a simbiose texto-melodia dos dois citados explica a centonização do nosso intróito:

- quόniam conculcávit me homo tem a mesma estrutura literária que quόniam exaudίsti me, Deus, do In. Ego clamávi (GT 354);

- a conclusão monossilábica de tribulávit me equivale à de vόluit me, do In. Factus est (GT 281).

Duas fórmulas de centonização, provenientes de modos diferentes que contribuem para a formação de uma única peça. Aqui está a versão da peça, na escrita melódica em que se originam os dois modos:

Os manuscritos Van2 e Sta1 utilizaram esta escrita, na versão melódico-modal protus, com o 1º tom salmódico; enquanto Ben5 e Klo1 utilizaram escrita diferente, na versão de transposição hexacordal: a primeira, em cadência final Ré (protus) e 1º tom salmódico; a outra, em cadência final Mi (deuterus) e 3º tom salmódico.

Portanto, as fórmulas de deuterus e protus podem coexistir e concorrer para a formação de uma mesma peça. Na verdade, as notas estruturais e as cordas dominantes (Lá e Sol) são comuns aos dois modos (protusdeuterus); mas cada uma delas tem uma linguagem própria, um vocabulário próprio, representado pelas chamadas notas de ornamentação. Portanto, na versão melódica do Graduale Novum II, na pág. 71, o Fá sustenido introduzido no último membro da frase não é uma transposição hexacordal e muito menos um facto de oscilação, mas sim uma transcrição "material" tout court de uma fórmula [4] da escrita e do contexto compositivo em cadência final Ré para a escrita e o contexto de composição em cadência final Mi. A que propósito? Para poder encaixar a escrita do 3º tom salmódico. Esta operação chama-se: Corruptio optimi pessima!

[4] A fórmula expressa um motivo musical completo do ponto de vista melódico e estruturado numa determinada nota modal de um contexto composicional e rastreável a uma das cordas originárias de Dó (= Fá e Sol, em transposição hexacordal), de Ré (= Lá e Si natural agudo; Sol e Si bemol à terça), de Mi (= Si e meio-tom fixo acima; Lá e Si bemol acima).

Os manuscritos mais representativos da Édition Critique solesmense ensinam que surgiram duas tradições em relação ao intróito em questão. Os três escritos sobre pauta, perfeitamente coerentes entre si, testemunham isso. Poderia tomar-se a versão em deuterus de Klo1, o tradutor de Ein, ou a versão em protus de Ben5, Sta1, Van2. Esta última versão foi, com boa probabilidade, a de maior sucesso para a fórmula do último membro da peça. Isto também pode ser verificado em outros dois manuscritos, como Dij.16 e Clu2.61v, que abaixaram a fórmula final de tribulávit me, trazendo-a de volta ao contexto composicional de protus, com o 1º tom salmódico.

Apraz-me concluir com algumas “notas” manuscritas (30 de março de 1989) de Dom J. Claire:

Influência da escrita
Nas regiões onde mais cedo se escreveu sobre pautas, conservaram-se as versões autênticas (Aquitânia, Benevento). Nas regiões onde mais tarde se usou a pauta, escreveram-se as versões deformadas (Suíça, Baviera, Áustria), donde se explica a estupidez do antifonário suíço [5]. Nas regiões onde se escreveu em neumas (área gregoriana), os cortes passaram-se ​​intactos para a escrita em pauta. Nas regiões onde não havia necessidade alguma de escrever em neumas (ROM, MIL; para Milão, temos testemunhos em neumas), pois que a tradição oral não sofrera qualquer atentado, escreveu-se (em pauta) como se pôde, sem modelo para os cortes tradicionais.

[5] Neste Antifonário, as antífonas em deuterus terminam em Fá em vez de Mi. Hoje é o caso do emprego do Fá sustenido!

Sessantini: há que unir todos os gregorianistas e exigir-lhes elevada qualidade científica


Damos início à tradução e republicação dos excelentes artigos contidos no 

Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano «Dom Jean Claire» - Verona

 

Editorial
PARA ONDE VAI O CANTO GREGORIANO?

Para um observador externo, o mundo do canto gregoriano parece cercado por uma aura de mistério e grandeza. É assim para todo o conhecimento humano especializado. Mas levantado o véu da sujeição, que coisa aparece? Um mundo dividido, onde qualquer um é mestre para si próprio; um mundo "fora do mundo" e, portanto, destinado à extinção como todas as realidades que estão trancadas numa espécie de Masada, uma fortaleza onde se espera que nada do exterior penetre e perturbe a vida tranquila; um mundo em alguns aspectos efervescente mas perenemente marcado por personalismos; um mundo onde a atenção obsessiva aos detalhes acaba por fazer perder de vista a visão geral e contextualizada dos elementos.

Na realidade, e não o podemos esconder, o mundo do canto gregoriano é atravessado por muitos problemas.

Em primeiro lugar, o de ter sido ostracizado do seu lugar natural, a liturgia, e considerado um repertório como os outros, historicizado e, portanto, transitório, ligado a uma época e a uma expressão cultural e cultual que já não existe.

Em segundo lugar, uma divisão em mil fluxos interpretativos e restitutivos, alguns dos quais são decididamente problemáticos, apesar de que todos afirmam se alimentar da mesma fonte: os estudos de Cardine. A tal fraccionamento corresponde uma plétora de publicações, inclusive litúrgicas e oficiais, que apresentam deformações tais que deixam perplexos muitos especialistas do sector e as próprias autoridades eclesiásticas.

Em terceiro lugar, a falta de um certo rigor científico que é o pressuposto de todo o estudo sério e, ao mesmo tempo, o surgimento de uma atenção mais ao contexto do que ao texto, mais ao contorno do que ao conteúdo, mais às nuances do que substância, mais à espiritualidade do que à música.

Em quarto lugar, o desaparecimento de um centro propulsor unitário que, tal como Solesmes na idade de ouro do renascimento gregoriano, se proponha não apenas como um lugar físico de referência, mas também como um caldeirão de mentes, energias e vontades, para garantir que o canto gregoriano possa efectivamente voltar a ser o canto vivo de uma Igreja viva, em vez de ser objecto de um exame de autópsia.

Vox Gregoriana é uma folha de comunicação, uma voz entre muitas, que não quer contribuir ainda mais para a divisão de forças, mas que tem a ambição de servir de estímulo para ajudar a Igreja a redescobrir a expressão musical da sua liturgia; apoiar os gregorianistas na redescoberta de uma idealidade comum e de um caminho unitário; envolver os estudiosos na busca da natureza científica da sua abordagem ao canto gregoriano; e, finalmente, convidar quem de direito ​​a tomar novamente consciência do papel que a história lhe atribuiu.

A Vox gregoriana nasce no interior do Centro de Canto Gregoriano e Monodias "DOM JEAN CLAIRE" e é em primeiro lugar expressão de quantos se identificam com este centro e os seus ideais. Ao mesmo tempo, está aberto à colaboração com todos aqueles que queiram contribuir para a difusão do conhecimento e do amor pelo canto da liturgia cristã. A dedicatória ao grande Mestre do coro da Abadia solesmense não é apenas uma homenagem àquele que abriu novos caminhos no campo da investigação e da interpretação, mas é também e sobretudo uma clara referência àquele Atelier de Paléographie que é o coração incontornável de todas as actividades de estudo e pesquisa sobre o gregoriano e às quais os membros do comité editorial fazem referência constante há anos.

A Vox gregoriana será estruturada como um folheto quadrimestral de formação e informações. Existem três áreas de investigação: litúrgica e histórica; semiológica e estético-modal, ligado em particular à restituição melódica; interpretativa.

Resumindo... Vox gregoriana é uma semente pequena... que cultiva grandes esperanças.

Dom Gilberto Sessantini

 

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