Continuamos a tradução e republicação
dos impressionantes artigos contidos no
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Nota do Editor: De seguida propomos aqui a Lectio Magistralis proferida pelo professor Alberto Turco, por ocasião da apresentação do livro em sua homenagem “Dialettica e paradigmi del sacro in musica” da série do Pontifício Instituto de Música Sacra “Didattica e Saggistica”. A conferência realizou-se no dia 18 de Novembro de 2021, na Igreja da Abadia do mesmo Instituto.
A VERDADE HISTÓRICA DO CANTO GREGORIANO:
um enriquecimento espiritual e cultural.
A Constituição litúrgica Sacrosanctum Concilium do Vaticano II reiterou, na esteira da tradição, que o gregoriano é o "canto próprio" da liturgia da Igreja Romana.
Mas o que restou deste mesmo canto na liturgia do pós-Vaticano II?
Algum poderia dizer que hoje não é mais o tempo de falar do gregoriano... e talvez acrescentar que assim o exigiria a pastoral!
Se isto fosse verdadeiro, ocorre a pergunta se nos futuros documentos sobre a «música na sagrada liturgia» ainda se encontrará a definição do gregoriano como o «canto próprio» da Igreja.
Pela minha parte, estou certo de que a Igreja romana não renunciará jamais a esta definição, pelo facto de que o canto gregoriano foi e, na maior parte do seu repertório, sempre será, o ser e o existir da liturgia cantada da Igreja universal de rito romano.
O “ser” e o “existir” do canto gregoriano
Na definição da liturgia fons et culmen da vida cristã, há também o canto da «Oração», o canto lírico da “Catequese”. O gregoriano é precisamente este canto! Acompanha a oração e a acção litúrgica, ao ponto de constituir uma só entidade. Por consequência, a riqueza, que se deve esperar do canto gregoriano, não é outra senão a da “vida litúrgica”, «fonte e cume da vida cristã». Quantas gerações de sacerdotes e leigos assimilaram uma autêntica espiritualidade litúrgica através da prática do canto gregoriano!
As melodias gregorianas não existem por si mesmas; foram criadas para o serviço exclusivo do “texto litúrgico”, do qual nasceram no próprio acto da oração oficial da Igreja. O mesmo vale para as melodias do celebrante, do diácono, do leitor, do salmista, dos cantores, da schola e do côro, subdivididas nos seus papéis e cada qual com textos próprios, diferentes não só pela natureza e estilo, mas também pela ornamentação de melodias adequadas. Sem perder nada da sua frescura, da sua inspiração e espontaneidade, as melodias vivem em perfeita simbiose com o texto.
No canto gregoriano, a melodia põe-se em obediência à «Palavra de Deus», tal como anunciada na liturgia. Com efeito, é Deus quem nos fornece as fórmulas do nosso louvor, da nossa adoração, das nossas invocações. A Igreja retoma estes textos inspirados, escolhe-os, coloca-os, reúne-os, esclarece-os uns com os outros, fazendo uma maravilhosa síntese entre Escritura e Tradição. A Igreja compõe assim o “poema” da sagrada liturgia, no qual a história da nossa salvação é descrita em forma lírica. Neste conjunto, cada texto escriturístico, certamente inspirado como uma segunda canonicidade, torna-se quase duas vezes expressivo da verdade divina. É neste serviço à Palavra de Deus que as melodias são definitivamente arrancadas de si mesmas para serem “consagradas”. Este é o verdadeiro «canto litúrgico».
A verdade histórica do canto gregoriano
O canto, denominado gregoriano em época tardia, percorreu todas as etapas da história da liturgia: foi o canto das comunidades da época apostólica, da época patrística, dos grandes papas dos séculos V-VI-VII; foi o canto dos textos e da ritualidade do final da Idade Média até aos nossos dias; assim será também nas épocas futuras, enquanto a Igreja fizer memória do mistério de Cristo.
Durante nove séculos, o chamado gregoriano permaneceu confiado à memória. Sabemos, de facto, que - andando para trás - os últimos documentos à nossa disposição são em notação musical com neumas em campo aberto, com as grafias dos acentos agudos e graves, isolados ou ligados em várias combinações.
Estas concederam-nos não um livro de canto na acepção moderna, mas apenas indicações estético-modais e expressivas que nos confirmam que, pelos finais do séc. VIII e no séc. IX, todo o sistema litúrgico-musical estava definido, coerentemente à liturgia coeva, propriamente dita “gregoriana”.
Por outras palavras, a semiologia nasce quando o repertório existe já, e está em idade adulta, e pede que seja difundido, quando as tradições orais, tanto galicanas como romanas, encontram um suporte para se documentarem. A semiologia nada mais é do que o relato do mestre do coro que entrega por escrito o programa das suas exigências. Certamente não pode exprimir tudo; mas o que o maestro exprime é de uma tal fineza que vai além do que aquilo a que estamos habituados com as escritas mensuralísticas, e de relevância tal que contrasta com os livres efeitos requeridos pelas notações da música "contemporânea".
Quando aparece a escrita sobre linhas, no início do séc. XI, a memória alenta o seu controlo, emergem as variantes, sempre mais numerosas, sempre mais graves. A estas motivações, que são seguramente as principais, juntam-se outras que arrastam o canto gregoriano para a decadência.
A primeira decadência infligida ao gregoriano é obra dos teóricos do octoecos do séc. X-XI, os séculos das falsidades, que basearam a análise do repertório gregoriano na teoria das oitavas tonais gregas, trocando-as com as oitavas modais. Era motivo de orgulho para os teóricos do séc. IX poder traçar as origens do canto da Igreja na música grega. Não há nada mais empírico do que ligar o gregoriano à teoria dos oito modos.
Sobre esta visão de oitavas tonais (escalas octocordais), os manuais do canto gregoriano, as enciclopédias e os volumes de história da música escreveram o inverosímil na tentativa de explicar a modalidade do repertório gregoriano. Seria tempo e hora de abolir certa terminologia, que compositores e músicos apreciam ainda operar na análise de composições renascentistas e modernas.
Ainda hoje, a proposta de uma restauração, certamente não magis critica das melodias gregorianas, é fortemente viciada pela teoria do octoecos, segundo a qual as melodias devem restituir-se na escrita em cadência final Ré, Mi, Fa, Sol. Tudo isso advém porque não se conhece nada do que efectivamente aconteceu no canto da liturgia antes do séc. IX.
Valor espiritual e cultural do canto gregoriano
Seja-me consentida agora recordar as condições objectivas e subjectivas que asseguram ao canto gregoriano o seu valor teológico e contemplativo do "facere sacrum".
As condições objectivas são constituídas pelo texto e pela sua execução em canto, respondendo ao pensamento dos compositores. Digamos desde já que as versões oficiais do canto gregoriano são apenas as da Vaticana e, aos nossos dias, as reconhecidas pela Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. A restauração do Graduale Romanum de 1908, sem dúvida imperfeita, representou um progresso “imenso” em relação às edições dos séc. XVIII e XIX. E, ainda hoje, sob o aspecto da cantabilidade das melodias, a edição vaticana do Graduale Romanum deve ser considerada de grande apreço, direi que é uma edição “venerável”. O critério da cantabilidade das melodias estava sob a atenção da comissão pontifícia. Isto deve ser reconhecido. São melodias cantáveis! A sua musicalidade é um valor indispensável para o texto. Por outro lado, as actuais restaurações de melodias que levam a formulações estranhas, direi “exóticas”, ou seja, de todo incompreensíveis para uma linha melódica “diatónica”, estão em contraste com a “verdade histórica” e, consequentemente, estão em contraste com o “sacrum facere”. Há uma afirmação de São Paulo na primeira carta aos Coríntios, que se aplica ao nosso caso: «rezarei com o espírito, mas rezarei também com a inteligência; cantarei com o espírito, mas cantarei também com a intreligência» (1 Cor 14, 15).
Um mosteiro da família solesmense, após ter adoptado as melodias do Antiphonale Monasticum dos anos 2000-2005, retirou a edição devido à dificuldade de cantar certas versões melódicas, reservando-se a propor uma nova edição.
As edições passadas da Vaticana certamente precisam de ser revisitadas, com instrumentos e aparato crítico adequados. À época da edição do Graduale Romanum de 1908 e do Antiphonale Romanum de 1912, a comissão pontifícia não dispunha de meios (cerca de dez manuscritos) e de trabalhos científicos avançados. Hoje, o aparato científico adequado está disponível no atelier solesmense para iniciar uma versão melódica magis critica. No texto da Sacrosanctum Concilium, n. 117, redigido pela Abadia de Solesmes, com o qual se auspicia o completamento das edições do canto gregoriano e a revisitação das melodias já publicadas, confirma-se implicitamente que o aparato crítico para a restauração do Graduale Romanum foi ultimado. Na verdade estamos em 1964.
Quem não estudou no atelier de Solesmes dificilmente pode aperceber-se da riqueza dos trabalhos científicos, documentados em cem anos de trabalho dos monges e, dificilmente, poderá ter uma visão geral dos problemas que se impõem para uma aceitável restauração melódica do canto gregoriano.
A segunda condição objectiva é devolver ao gregoriano a sua conotação de canto para a liturgia. Aqui entra em campo a interpretação, oriunda da ciência da paleografia e, consequentemente, da semiologia. A que nós temos nos nossos livros é uma «neografia» da escrita musical gregoriana. Entre a paleografia e a neografia musical não há solução de continuidade. Não se decidiu num determinado dia passar da paleo- para a neo-grafia, de modo que se encontram ainda nos nossos livros actuais os sinais paleográficos um tanto evoluídos.
Portanto, o mestre do canto gregoriano deve conhecer a paleografia e a semiologia gregoriana, pelo menos em quanto concerne o significado dos neumas em campo aberto, em relação ao texto litúrgico, à melodia, à estética e à luz da intencionalidade do mestre da notação musical.
Uma vez assegurada a forma autêntica ou pelo menos fiável (versão melódica e execução rítmica texto-melodia), é indispensável que a execução da peça envolva a assembleia na celebração litúrgica, favorecendo a oração e a contemplação: estas são as condições subjetivas do valor teológico e contemplativo que uma melodia gregoriana tem em si mesma.
Portanto, o ensinamento teórico e a praxe executiva não podem prescindir destas condições e traduzir-se num exercício de vocalidade, muito menos numa execução académica ou prestação concertistica tout court.
Neste ponto, surge o grande problema da competência musical e da formação litúrgica e espiritual do(s) maestro(s).
No têm a idoneidade de ensino do canto gregoriano aqueles que receberam certificados de participação em conferências ou cursos generalistas. E ouso dizer que não podem nem tão-pouco declarar-se mestres aqueles que não possuem um diploma específico em canto gregoriano.
Hoje, assistimos a um facto curioso: metido à margem da liturgia, o gregoriano tornou-se uma “moda”, uma atracção “exótica”, um tema musicológico, que se crê aprender a bom preço e, consequentemente, poder ensinar, por ter adquirido algumas noções sobre a notação quadrada e com a participação em aulas on-line, em fins de semana e outros eventos, promovidos por professores improvisados!
Os músicos de todos os tempos sempre foram influenciados pelo canto gregoriano, não tanto pela sua atracção enquanto música sui generis, mas porque intuíram o valor intrínseco deste inestimável monumento da arte musical. O canto gregoriano não é obra de um compositor, mas é o fruto da mais genuína expressão da liturgia, o grande poema da vida cultual da Igreja. A sua conotação primária é a de ser a celebração do “mistério” de Cristo nos séculos. Para isso, além de aprender noções técnicas, os professores devem preparar-se, para não trair o «mais digno de todos os louvores» a Deus, reconhecido no gregoriano.
E que coisa deveremos dizer do mestre dos futuros mestres de canto gregoriano? Para assumir este encargo, a um diploma sério deve juntar-se a «habilitação» para a docência, como acontece, neste mundo, com outras profissões. A habilitação pressupõe a conhecença do gregoriano, ciência e mistério.
Digamos desde já que a ciência do gregoriano deve estender-se aos “factos musicais” que caracterizaram a formação e evolução da liturgia cantada, desde a sua nascença até à documentação dos séc. IX e X.
A ciência do gregoriano comporta uma visão geral de todos os parâmetros que vão da compreensão do texto e a sua colocação no tempo litúrgico até à síntese estético-modal, que nos permite colher, nas multíplices formas musicais, a conotação íntima de cada nota na dinâmica da execução. Entenda-se bem que, à luz destes parâmetros, é necessário avizinhar-se às fontes manuscritas com respeito e com rigor científico na formulação dos critérios compositivos.
Habilitação ao gregoriano, «ciência», mas também «mistério».
O “mistério” do canto gregoriano é a igreja que reza, canta e, com a graça do Espírito Santo, celebra a vida de Cristo, para a glória do Pai e a salvação do mundo. Aprendendo e rezando em canto gregoriano, é importante ouvi-lo, e ouvi-lo em atitude contemplativa.
O maestro não só tem a tarefa de ensinar a verdade da forma estética, do significado textual e melódico de cada peça, mas tem sobretudo o dever de transmitir o seu conteúdo espiritual, assegurando ao canto a sua eficácia de oração e de contemplação.
Portanto, a meu ver, a qualificação para o canto gregoriano “mistério” deveria encarnar-se em pessoas consagradas à meditação, à oração e, sobretudo, à contemplação da liturgia. Em concreto, deveria concretizar-se em pessoas que celebram a liturgia.
E concluo dizendo que o gregoriano é o dom de Deus à Igreja, para que se torne o «esplêndido louvor» da Igreja a Deus (Sl 23, o salmo do Senhor no seu templo).
O Gregoriano é a oração do compositor, para que se torne a oração do maestro.
Sempre, na verdade, como reza a ant. Diligite Dominum, omnes sancti eius, quoniam veritatem requiret Dominus.
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