sábado, 2 de abril de 2011

Actuosa participatio e liturgia segundo João Paulo II

"[A] participação activa não impede a passividade dinâmica do silêncio, da calma e da escuta: pelo contrário, exige-a. Por exemplo, os fiéis não são passivos quando escutam as leituras ou a homilia, ou quando acompanham as orações do celebrante, os cânticos e a música da liturgia. A seu modo, estas experiências de silêncio e de calma são profundamente activas."

Comemora-se hoje — no sentido etimológico do termo, ou seja: recorda-se em conjunto — o sexto aniversário da morte de Karol Józef Wojtyła, conhecido pelo nome que adoptou ao ser eleito servus servorum Dei: João Paulo II.

Para assinalar a sua partida para junto do Senhor, quando nos aproximamos da sua iminente beatificação, deixamos aqui algumas palavras suas sobre liturgia e participação activa/actuosa participatio (em negrito, assinalamos as partes relevantes a respeito deste conceito), dois temas inextricáveis do tema central deste blogue — a música litúrgica —, em discurso proferido durante a visita ad limina apostolorum dos bispos do noroeste do EUA, no dia 9 de Outubro de 1998:

Prezados Irmãos Bispos,

1. É com amor fraterno no Senhor que vos dou as boas-vindas, Pastores da Igreja que está no Noroeste dos Estados Unidos, por ocasião da vossa visita ad Limina. Esta série de visitas realizadas pelos Bispos do vosso País, tanto aos túmulos dos Apóstolos Pedro e Paulo como ao Sucessor de Pedro e aos seus colaboradores no serviço da Igreja universal, está a decorrer enquanto o inteiro Povo de Deus se prepara para celebrar o Grande Jubileu do Ano 2000 e para entrar num novo milénio cristão. O bimilenário do Nascimento do Salvador constitui um chamamento a todos os seguidores de Cristo a buscarem uma genuína conversão a Deus e um grande progresso rumo à santidade. Uma vez que a liturgia é uma parte tão fulcral da vida cristã, hoje desejo considerar alguns aspectos da renovação litúrgica, promovida de maneira tão vigorosa pelo Concílio Vaticano II como principal agente da renovação mais vasta da vida católica.

Considerar aquilo que se realizou no campo da renovação litúrgica ao longo dos anos desde o Concílio significa, em primeiro lugar, descobrir muitos motivos para agradecer e louvar sinceramente à Santíssima Trindade pela maravilhosa consciência que se desenvolveu entre os fiéis, acerca do seu papel e responsabilidade nesta obra sacerdotal de Cristo e da sua Igreja. Significa também reconhecer que nem todas as mudanças têm sido acompanhadas, sempre e em toda a parte, pelas necessárias explicação e catequese; consequentemente, nalguns casos houve mal-entendidos acerca da natureza mesma da liturgia, degenerando em abusos, polarizações e às vezes até mesmo em graves escândalos. Após a experiência de mais de trinta anos de renovação litúrgica, agora podemos proceder a uma qualificada avaliação tanto das forças como das fragilidades daquilo que se levou a cabo, a fim de delinearmos mais confiadamente o caminho futuro que Deus tem em mente para o seu querido Povo.

2. Agora, o desafio consiste em ir além de todos os mal-entendidos que se verificaram e alcançar o oportuno ponto de equilíbrio, de maneira especial entrando mais profundamente na dimensão contemplativa do culto, que inclui o sentido de respeito, reverência e adoração que são atitudes fundamentais no nosso relacionamento com Deus. Isto só se realizará se reconhecermos que a liturgia possui dimensões tanto locais como universais, temporárias e eternas, horizontais e verticais, subjectivas e objectivas. São precisamente estas tensões que atribuem ao culto católico o seu carácter distintivo. A Igreja universal está unida num único e grandioso acto de louvor; todavia, trata-se sempre do culto de uma determinada comunidade local, no contexto de uma cultura particular. Ele é o eterno culto do Céu, mas está também imerso no tempo. Congrega e edifica a comunidade humana, mas é também o «culto da majestade divina» (Sacrosanctum concilium, 33). É subjectivo naquilo que depende radicalmente da contribuição que os fiéis lhe oferecem; mas é objectivo naquilo que os transcende, como acto sacerdotal de Cristo mesmo, ao qual Ele nos associa mas que em última análise não depende de nós (cf. ibid., 7). Eis o motivo por que é tão importante que o cânone litúrgico seja respeitado. O sacerdote, que é servidor da liturgia e não o seu inventor nem o seu produtor, tem uma responsabilidade particular a este propósito, a fim de não desvirtuar a liturgia do seu verdadeiro significado ou obscurecer o seu carácter sagrado. O âmago do mistério do culto cristão é o sacrifício de Cristo, oferecido ao Pai, e a obra de Cristo ressuscitado que santifica o seu Povo mediante os sinais litúrgicos. Por conseguinte, é essencial que quando se procura penetrar de maneira mais profunda no cerne contemplativo do culto, o mistério inesgotável do sacerdócio de Jesus Cristo seja plenamente reconhecido e venerado. Enquanto todos os baptizados participam nesse único sacerdócio de Cristo, nem todos o fazem em igual medida. O sacerdócio ministerial, arraigado na sucessão apostólica, confere ao sacerdote ordenado faculdades e responsabilidades que são diferentes daquelas que se atribuem aos leigos, mas estão ao serviço do comum sacerdócio e são orientadas para a revelação da graça baptismal a todos os cristãos (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1547). Portanto, o sacerdote não é apenas alguém que preside, mas aquele que actua na pessoa de Cristo. A Igreja deve ser hierárquica e polifónica.

3. Só se formos radicalmente fiéis a este fundamento doutrinal poderemos evitar interpretações unidimensionais e unilaterais do ensinamento do Concílio. A participação de todos os baptizados no único sacerdócio de Jesus Cristo é a chave para a compreensão da exortação do Concílio à «plena, consciente e activa participação» na liturgia (Sacrosanctum concilium, 14). Sem dúvida, plena participação significa que cada membro da comunidade tem uma parte a desempenhar na liturgia; e a este propósito tem-se feito muito nas paróquias e comunidades em todas as partes (...). Todavia, plena participação não significa que todos fazem tudo, dado que isto levaria a uma clericalização do laicado e a uma laicização do sacerdócio; e a intenção do Concílio não era esta. Assim como a Igreja, também a liturgia deve ser hierárquica e polifónica, respeitando as diferentes funções conferidas por Cristo e permitindo que todas as diversas vozes se amalgamem num único e grandioso hino de louvor.

Participação activa certamente significa que nos gestos, palavras, cânticos e serviços, todos os membros da comunidade tomam parte num único acto de culto, que não é absolutamente inerte nem passivo. Contudo, a participação activa não impede a passividade dinâmica do silêncio, da calma e da escuta: pelo contrário, exige-a. Por exemplo, os fiéis não são passivos quando escutam as leituras ou a homilia, ou quando acompanham as orações do celebrante, os cânticos e a música da liturgia. A seu modo, estas experiências de silêncio e de calma são profundamente activas. Numa cultura que não favorece nem promove o silêncio meditativo, a arte da escuta interior só se aprende com dificuldade. Aqui observamos como a liturgia, embora deva inculturar-se sempre de forma adequada, há-de ser também contracultural.

A participação consciente exige que a inteira comunidade seja instruída de modo propício nos mistérios da liturgia, para evitar que a experiência do culto degenere numa forma de ritualismo. Contudo, não significa que se deve procurar constantemente, no contexto da própria liturgia, tornar explícito o que é implícito, dado que isto com frequência leva a uma loquacidade e informalidade que são alheias ao Rito romano e termina por banalizar o acto do culto. Também não significa que se devem suprimir todas as experiências do subconsciente, as quais são vitais numa liturgia que se desenvolve mediante símbolos que falam tanto ao subconsciente como ao consciente. Sem dúvida, o uso da vernaculidade abriu os tesouros da liturgia a todos os seus participantes, mas isto não significa que a língua latina, e especialmente os cânticos que são adaptados de forma tão maravilhosa ao génio do Rito romano, devem ser totalmente abandonados. Se se ignora a experiência subconsciente no acto do culto, cria-se um vazio afectivo e devocional, e a liturgia pode tornar-se não só demasiado verbal, mas também exageradamente cerebral. Porém, o Rito romano distingue-se no equilíbrio que estabelece entre a sobriedade e a riqueza de emoções: alimenta o coração e o espírito, o corpo e a alma.
Escreveu-se justamente que na história da Igreja toda a verdadeira renovação estava vinculada a uma releitura dos Padres da Igreja. E o que é verdadeiro em geral, é também verdadeiro em particular na liturgia. Os Padres eram pastores que tinham um ardente zelo pela tarefa da propagação do Evangelho; por conseguinte, estavam profundamente interessados em todas as dimensões do culto, e deixaram-nos alguns dos textos mais significativos e duradouros da Tradição cristã, que decerto não são absolutamente o resultado de um estéril estetismo. Os Padres eram pregadores ardentes e é difícil imaginar que possa haver uma renovação efectiva da pregação católica, como almejava o Concílio Vaticano II, sem uma suficiente familiaridade com a Tradição patrística. O Concílio promoveu um movimento rumo a um estilo de pregar semelhante ao das homilias que, à maneira dos Padres, explicasse o texto bíblico de forma a revelar as suas inextinguíveis riquezas aos fiéis. A importância que a pregação adquiriu no culto católico a partir do Concílio indica que os sacerdotes e os diáconos deveriam ser formados para fazer um bom uso da Bíblia. Todavia, isto exige também uma familiaridade com toda a Tradição patrística, teológica e moral, bem como um conhecimento perspicaz das suas comunidades e da sociedade em geral. Caso contrário, dar-se-ia a impressão de que se trata de um ensinamento sem raízes e isento de uma aplicação universal inerente à mensagem do Evangelho. A excelente síntese da riqueza doutrinal da Igreja, contida no Catecismo da Igreja Católica, deve ser ainda mais largamente sentida como uma influência sobre a pregação católica.
4. É fundamental ter bem claro na mente o facto de que a liturgia está intimamente vinculada à missão evangelizadora da Igreja. Se não caminharem a par e passo, ambas vacilarão. Enquanto os desenvolvimentos no campo da renovação litúrgica forem superficiais ou desequilibrados, os nossos esforços em vista de uma nova evangelização serão comprometidos; e enquanto a nossa visão for inferior às exigências da nova evangelização, a nossa renovação litúrgica será reduzida a uma adaptação externa e provavelmente instável. O Rito romano foi sempre uma forma de culto em vista da missão. Eis por que é relativamente breve: havia muito a fazer fora da Igreja! Este é o motivo por que usamos a expressão de encerramento «Ite, missa est», que nos dá o termo «Missa»: a comunidade é enviada a evangelizar o mundo, em obediência ao mandato de Cristo (cf. Mt 28, 19-20). 
5. Na nossa preparação para o Grande Jubileu do Ano 2000, 1999 será o ano dedicado à Pessoa do Pai e à celebração do seu Amor misericordioso. As iniciativas para o próximo ano deveriam dedicar particular atenção à natureza da vida cristã como «uma grande peregrinação rumo à Casa do Pai, cujo amor incondicional por cada criatura humana, e em particular pelo "filho pródigo", descobrimos cada dia de novo» (Tertio millennio adveniente, 49). No cerne desta experiência de peregrinação está a nossa jornada de pecadores rumo às profundezas insondáveis da liturgia da Igreja, a liturgia da Criação, a liturgia do Céu - em última análise, todas constituem um culto a Jesus Cristo, Sacerdote eterno, em Quem a Igreja e toda a criação são levadas à vida da Santíssima Trindade, nossa verdadeira morada. Esta é a finalidade de todo o nosso culto e evangelização. 
No âmago mesmo da comunidade de culto encontramos a Mãe de Cristo e Mãe da Igreja que, desde as profundezas da sua fé contemplativa, apresenta a Boa Nova, que é o próprio Jesus Cristo. Juntamente convosco rezo para que os católicos norte-americanos celebrem a liturgia tendo no coração o mesmo cântico que Ela entoou: «A minha alma proclama a grandeza do Senhor e o meu espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador... porque me fez grandes coisas o Omnipotente. É santo o seu nome» (Lc 1, 46.49-50). Ao confiar os sacerdotes, os religiosos e os fiéis leigos das vossas Dioceses à amorosa protecção da Bem-Aventurada Mãe, concedo cordialmente a minha Bênção Apostólica.

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