segunda-feira, 29 de abril de 2024

Sessantini: a expressão “ceteris paribus” em Sacrossanctum Concilium 116

Continuamos a tradução e republicação
dos esplêndidos artigos contidos no 

Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano «Dom Jean Claire» - Verona
Ano II - n° 2 - Maio - Agosto 2020

  

Gilberto Sessantini

O significado da expressão “ceteris paribus”

AAS: Acta Apostolicae Sedis
IMSSL: Instr. De Música Sacra et Sacra Liturgia, 1958
MD: Mediador Dei, 1947
MS: Musicam Sacram, 1967
MSD: Música Sacrae Disciplina, 1955
SC: Sacrosanctum Concilium, 1963

Depois de nos termos debruçado num precedente artigo [1] sobre o estatuto do “canto próprio da liturgia romana” aplicado ao canto gregoriano pelo n° 116 da Sacrosanctum Concilium, queremos dedicar algumas linhas à expressão “ceteris paribus” ̶ normalmente traduzida como “ em igualdade de condições" ̶ presente no mesmo número da constituição conciliar e, em sua maioria, interpretada em sentido restritivo, ou seja, limitando o uso do canto gregoriano. Em primeiro lugar, revisemos integralmente o texto em questão, porque, como é óbvio e oportuno, a primeira operação a fazer quando se fala de um inciso é colocá-lo no seu justo contexto:

Ecclesia cantum gregorianum agnoscit ut liturgiae romanae proprium: qui ideo in actionibus liturgicis, ceteris paribus, principem locum obtineat. Alia genera Musicae sacrae, praesertim vero polyphonia, in celebrandis divinis Officiis minime excluduntur, dummodo spiritui actionis liturgicae respondeant, ad normam art. 30.” [2]

[1] G. SESSANTINI, Il gregoriano e il suo statuto di “canto proprio della liturgia romana, in Vox gregoriana, Bollettino informativo del centro di Canto Gregoriano e monodie "dom Jean Claire" Verona, anno I, n° 2 Maggio-Agosto 2019.

[2] SC 116.

A afirmação principal, que assim fundamenta todo o número 116, é que a Igreja reconhece o canto gregoriano como o canto próprio da liturgia romana. Desta afirmação de princípio derivam duas consequências práticas. A primeira é que nas celebrações deve reservar-se-lhe o lugar principal. A segunda, todavia, é que não devem ser excluídos, de modo algum, outros géneros de música sacra por causa desta primazia do canto gregoriano. Encontramo-nos perante um princípio claro e duas consequências práticas que dele decorrem e que são igualmente claras. Qual é, então, o significado de um aparte como aquele inserido na primeira consequência prática derivada do princípio básico afirmado precedentemente?

Para compreendê-lo, devemos antes de mais reconstruir a génese da referida passagem e, de forma mais geral, das declarações de princípio relativas ao canto gregoriano.

Como muitas outras declarações da Sacrosanctum Concilium, também aquela em questão é devedora do Magistério precedente, contrariamente ao que se crê. No que diz respeito à liturgia, à música sacra em geral e ao canto gregoriano em particular - para além das afirmações de princípio presentes nos documentos da primeira metade do século XX, cujo fundador foi o Motu proprio Inter sollicitudines [3] de Pio X -, é sobretudo o riquíssimo magistério de Pio XII a fazer escola, com uma primeira Encíclica, a Mediador Dei de 1947, estabelecendo todo o seu pensamento sobre a liturgia; uma segunda Encíclica, a Musicae Sacrae Disciplina de 1955, inteiramente dedicada à música sacra [4]; e finalmente uma Instructio de Musica Sacra et Sacra Liturgia, da Sagrada Congregação dos Ritos de 1958 [5], que pode considerar-se verdadeiramente como “o testamento espiritual de Pio XII em matéria litúrgica” [6]. É precisamente neste último documento que aparece pela primeira vez nos documentos magisteriais a expressão “ceteris paribus”:

Cantus gregorianus est cantus sacer, Ecclesiae romanae proprius et principalis; ideoque in omnibus actionibus liturgicis non solum adhiberi potest, sed, ceteris paribus, aliis Musicae sacrae generibus est praeferendus”. (IMSSL 16) [7]

[3] Ver também a Carta ao Card. Respighi: Acta Pii X, vol. I, pp. 68-74; v. p. 73s; Acta Apostolicae Sedis (AAS) 36 (1903-04), pp. 325-329, 395-398, v. 398. Também Pio XI disto se ocupa: ver PIUS XI, Const. apost. Divini cultus: AAS 21(1929), p. 33s.

[4] Em AAS 48(1956), pp. 5-25. Eis as expressões altamente elogiativas reservadas ao gregoriano: “A essa santidade se presta sobretudo o canto gregoriano, que desde tantos séculos se usa na Igreja, a ponto de se poder dizê-lo património seu. Pela íntima aderência das melodias às palavras do texto sagrado, esse canto não só quadra a este plenamente, mas parece quase interpretar-lhe a força e a eficácia, instilando doçura na alma de quem o escuta; e isso por meios musicais simples e fáceis, mas permeados de tão sublime e santa arte, que em todos suscitam sentimentos de sincera admiração, e se tornam para os próprios entendedores e mestres de música sacra uma fonte inexaurível de novas melodias. Conservar cuidadosamente esse precioso tesouro do canto gregoriano e fazer o povo amplamente participante dele, compete a todos aqueles a quem Jesus Cristo confiou a guarda e a dispensação das riquezas da Igreja. Por isso, aquilo que os Nossos predecessores são Pio X, com toda a razão chamado restaurador do canto gregoriano, e Pio XI, sabiamente ordenaram e inculcaram, também nós queremos e prescrevemos que se faça, prestando-se atenção às características que são próprias do genuíno canto gregoriano; isto é, que na celebração dos ritos litúrgicos se faça largo uso desse canto, e se providencie com todo o cuidado para que ele seja executado com exactidão, dignidade e piedade”.

[5] In AAS 50 (1958), pp. 630-663.

[6] F. ANTONELLI, L’Istruzione della Sacra Congregazione dei Riti sulla Musica Sacra e la Sacra Liturgia, Opera della Regalità, Milano 1958, p.5.

[7] Instr. De Musica Sacra et Sacra Liturgia, (IMSSL) n° 16. Texto em F. ANTONELLI, op. cit. Em italiano, na tradução oficial: “Il canto gregoriano è il canto sacro proprio e principale della Chiesa romana. Perciò in tutte le azioni liturgiche, non solo si può usare, ma anche, a parità di condizioni, è da preferirsi agli altri generi di Musica sacra”.
N. do T.: Em português, na Instrução sôbre a Música Sacra e a Sagrada Liturgia. 1958. Editôra Vozes Ltda., Petrópolis, R. J., Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte: «16. Canto gregoriano é o canto sacro principal e próprio da Igreja romana. Portanto, não só pode ser usado em todos os atos litúrgicos, mas, em igualdade de condições, deve ser preferido aos outros gêneros de Música sacra».

O contexto no qual este parágrafo dedicado ao canto gregoriano se insere é o “Capítulo II: Normas gerais". Sobre o gregoriano já se havia dito algo, mas num sentido mais genérico, no parágrafo n.º 5 do “Capítulo I: Noções gerais”. As “Normas gerais” do segundo capítulo da Instrução preocupam-se em traçar a execução das acções litúrgicas “conforme os livros litúrgicos devidamente aprovados pela Sé Apostólica” [8], especificando que “a língua dos atos litúrgicos é o latim” [9] e que, portanto, “nas Missas cantadas, ùnicamente a língua latina deverá ser usada” [10], assim como nas missas rezadas, à excepção de “algumas orações ou cantos populares” [11] que podem ser feitos em vernáculo, e ainda “o Evangelho e também a Epístola sejam lidos em vernáculo por algum leitor, para proveito dos fiéis” [12]. O n.º 16 prossegue com a exposição do princípio supracitado do qual derivam as seguintes consequências:

Por conseguinte: a) A língua do canto gregoriano, como canto litúrgico, é ùnicamente o latim. b) As partes dos atos litúrgicos que, conforme as rubricas, são cantadas pelo sacerdote celebrante e por seus ministros, o devem ser ùnicamente no canto gregoriano constante das edições típicas (...). c) Onde, por  Indultos particulares, fôr permitido que nas Missas cantadas o sacerdote celebrante, o diácono ou o subdiácono ou o leitor, depois de cantados em gregoriano os textos da Epístola ou da Lição e o Evangelho, possam proclamar os mesmos textos também na língua vernácula, deve isso ser feito por meio de uma leitura em voz alta e distinta, com exclusão de qualquer melodia gregoriana, autêntica ou imitada”. [13]

[8] IMSSL 12.

[9] IMSSL 13.

[10] IMSSL 14a.

[11] IMSSL 14b.

[12] IMSSL 14c.

[13] IMSSL 16.

É claro que o contexto legislativo de IMSSL 16 diz respeito à vontade explícita de reiterar a necessária fidelidade rubrical em relação à língua latina e o seu natural e exclusivo revestimento musical litúrgico que é precisamente o canto gregoriano tal como se encontra nos vários livros litúrgicos, desde o Missal ao Gradual e assim por diante. Tanto é assim que nos números seguintes aparecem indicadas as modalidades de uma possível inclusão da “Polifonia sacra” [14] (e é aqui que aparecem as condições às quais voltaremos), da “Música Sacra moderna” [15], a exclusão do “canto popular religioso” [15], salvo disposição em contrário por Indulto [16], e a exclusão de modo total da que está definida como Música religiosa” [17]. E isto se baseia no princípio, reiterado ulteriormente também no termo do segundo capítulo, de que “[t]udo quanto, conforme os livros litúrgicos, deve ser cantado (...) pertence integralmente à Sagrada Liturgia” [18].

[14] IMSSL 17.

[15] IMSSL 18.

[16] IMSSL 19.

[17] IMSSL 20.

[18] IMSSL 21.

Se este é o contexto para inserir o ditame de IMSSL 16, é inequívoco que este número seja o inspirador da posterior indicação conciliar. Mas com uma diferença que é bom não transcurar. No caso da Instrução de 1958, de facto, a referência a outros géneros de música sacra aos quais se deve preferir o canto gregoriano está presente na mesma frase. Em SC 116, porém, o inciso “ceteris paribus” é absoluto, não associado imediatamente aos outros géneros dos quais se pretende ser condição limitante. O significado que a expressão “ceteris paribus” assume na Instrução de 1958 é, portanto, o seguinte: o canto gregoriano deve, em qualquer caso, ser preferido aos outros géneros de música sacra, mesmo quando estes correspondam a todas as características exigidas a um verdadeiro canto litúrgico. Na verdade, neste caso "ceteris paribus"  ̶ que à letra se traduz como "a par dos outros" ̶ tem mais claramente o significado de "posto em confrontação com os outros (géneros)", ou ainda "estando assim as coisas" [18b] e "em paridade de circunstâncias", e portanto a tradução mais eficaz e clara resulta ser esta:

O canto gregoriano é canto sacro [por excelência], próprio e principal da Igreja romana; portanto, em todas as acções litúrgicas não só se pode utilizar, como, em paridade de circunstâncias, é de preferir-se aos outros géneros de Música sacra”.

O inciso "ceteris paribus" é, pois, um reforçante do uso ("não só se pode utilizar") e do uso preferencial ("como é de preferir-se") do gregoriano em comparação com os outros géneros de música sacra, mesmo quando estes superam as barreiras de admissibilidade, em coerência com toda a implantação de IMSSL, que, derivando das normativas precedentes, visa reintroduzir o canto gregoriano em todos os níveis de celebração, incluindo a nível popular com a participação dos fiéis no canto do liturgia segundo os diferentes graus individuados. É neste documento, de facto, que são propostos pela primeira vez os chamados “graus de participação” [19], que encontraremos mais tarde na Instrução Musicam Sacram de 1967 [20].

[18b] N. do T.: do latim jurídico rebus sic stantibus.

[19] IMSSL 24 e 25.

[20] MS 7 e 29,30,31.

Em SC 116, porém, o termo de comparação desaparece, uma vez que os “outros géneros de música sacra” são enunciados só no parágrafo seguinte e “ceteris paribus” se encontra, portanto, semântica e logicamente isolado. Além disso, a tradução oficial italiana insere uma nuance da conotação jurídica, no momento em que as “circunstâncias” se tornam “condições”, assimilando neste modo a frase às cláusulas contratuais com as quais geralmente se estabelece a igualdade sob certas condições. Ao fazê-lo, é o uso do gregoriano que resultaria estar sujeito a condições e não, vice-versa, a utilização dos outros géneros de música sacra, como claramente aparecia no documento de 1958. As traduções alemã de “ceteris paribus” como “Voraussetzungen” (pré-requisitos) e espanhola “circunstancias” (circunstâncias) avizinham-se mais do significado original, ao passo que o inglês “things” (coisas) e o francês “choses” (coisas) permanecem mais genéricas [21]. [21b]

[21] As traduções nas principais línguas ocidentais foram retiradas do sítio oficial do Vaticano:
“L’Église reconnaît dans le chant grégorien le chant propre de la liturgie romaine; c’est donc lui qui, dans les actions liturgiques, toutes choses égales d’ailleurs, doit occuper la première place”.
“The Church acknowledges Gregorian chant as specially suited to the Roman liturgy: therefore, other things being equal, it should be given pride of place in liturgical services.”
“La Iglesia reconoce el canto gregoriano como el propio de la liturgia romana; en igualdad de circunstancias, por tanto, hay que darle el primer lugar en las acciones litúrgicas.”
“Die Kirche betrachtet den Gregorianischen Choral als den der römischen Liturgie eigenen Gesang; demgemäß soll er in ihren liturgischen Handlungen, wenn im übrigen die gleichen Voraussetzungen gegeben sind, den ersten Platz einnehmen.”

[21b] N. do T.: Tradução oficial em língua portuguesa: "A Igreja reconhece como canto próprio da liturgia romana o canto gregoriano; terá este, por isso, na acção litúrgica, em igualdade de circunstâncias, o primeiro lugar."

Mas será esta realmente a interpretação a ser dada ao inciso “ceteris paribus” em SC 116, ou seja, uma limitação ao uso preferencial do canto gregoriano? Não creio. Em primeiro lugar, justamente pela origem desta expressão, como demonstrado. Em segundo lugar, porque se perderia a lógica de todo o quadro de SC116.
De que “condições” se fala, então, e a que se referem elas?
De “condições” dissemos que se fala na IMSSL. E são estas as condições de admissibilidade da “Polifonia Sacra” e da “Música Sacra moderna” na liturgia:

“A Polifonia sacra pode ser usada em todas os atos litúrgicos, sob a condição de haver uma schola que a execute conforme as regras da arte. Êste gênero de Música Sacra convém mais aos atos litúrgicos cuja celebração se reveste de maior esplendor.” (IMSSL 17) 
“A Música Sacra moderna pode também ser admitida em todos os atos litúrgicos, se corresponder realmente à dignidade, à gravidade e santidade da Liturgia e houver uma schola que a possa executar conforme as regras da arte.” (IMSSL 18)

As condições, portanto, seriam ainda aquelas individuadas pela normativa eclesiástica desde Pio X: santidade, bondade de formas e universalidade, para além das possibilidades técnico-artísticas dos intérpretes. Estas determinam a possibilidade ou não de inserção no projeto litúrgico-musical de outros repertórios além do canto gregoriano, que por sua natureza satisfaz plenamente essas condições, servindo também e até - justamente por isto - de modelo. [22]

[22] MSD 21-22.

Os textos escritos como comentário ao IMSSL não entram na argumentação, limitando-se a citar ou parafrasear os ditames da Instrução. Por exemplo, Gelineau comenta assim: “nas acções litúrgicas, [o canto gregoriano] deve ser preferido – suposta a paridade de condição – aos outros géneros de música sacra” [23]. Aqui as condições tornam-se “condição”, mas é claro que não é o gregoriano a ser condicionado, mas sim os outros géneros de música sacra, segundo o pensamento da IMSSL.

[23] J. GELINEAU, Canto e musica nel culto cristiano, LCD Torino 1963, p 327. A edição original francesa é de 1959.

Os comentadores de SC e MS, porém, interpretam o inciso “ceteris paribus” de SC 116 de variados modos, segundo a ideologia inspiradora. Os mais oficiais vão no sentido de um alargamento dos critérios que SC coloca para a admissão de outros géneros de música sacra, como faz, por exemplo, Bugnini, que, logo após haver afirmado que “o gregoriano continua a ser o canto próprio do Igreja e, portanto, ceteris paribus (sic), a ser preferido por direito nativo", assim interpreta e conclui: "note-se o inciso ceteris paribus, que estabelece o equilíbrio entre os vários géneros musicais" [24], quase contornando aquele outro tanto significativo "direito nativo” que ele mesmo atribuiu ao canto gregoriano. Num sentido restritivo do canto gregoriano, por sua vez, vão os comentadores que pertencem à área Universa Laus, lendo nas “condições exigidas” antes de mais a destinação exclusivamente assemblear que deve ter o canto litúrgico, destinação, segundo eles, dificilmente aplicável ao gregoriano e, por isso mesmo, decretando a completa marginalização se não o completo ostracismo do "canto próprio" da liturgia da própria liturgia. Por outro lado, os comentaristas pertencentes à área ceciliana não entram no tema, excepto para meter à luz a ambiguidade originário do inciso, ou para condenar a interpretação unilateral, ou para depreciar a perigosidade das consequências práticas das suas interpretações unilaterais. [25]

[24] A. BUGNINI, La musica sacra, in F. ANTONELLI- R. FALSINI (cur.), Costituzione Conciliare sulla Sacra Liturgia. Introduzione, testo latino-italiano, commento, Opera della Regalità, Roma 1964, p. 323. Mais adiante, consciente de que “se todos os géneros musicais têm doravante direito de cidadania no culto, o seu uso é regulado pelo quê?”, o principal fautor da reforma litúrgica assim conclui e responde: “Na minha opinião pelos seguintes elementos: a) pelas normas positivas da Constituição ou da legislação musical, emitidas e não superadas; b) por normas positivas dadas ou a serem dadas pela autoridade eclesiástica competente, referida no art. 22; c) pelo bom gosto e pelo bom senso” (ibidem, p. 324). Nos anos sucessivos, no que diz respeito à regulamentação dada, bom gosto e bom senso raramente foram aplicados.

[25] Uma revisão em V. DONELLA, Editoriale, in "Bollettino Ceciliano", Anno 104, N. 3, Março 2009.

Não devemos ignorar, porém, que uma pequena complicação provém ainda da Instrução Musicam Sacram de 1967, a qual no nº 50 assim se exprime: “Nas ações litúrgicas em canto, celebradas em língua latina, ao canto gregoriano, como canto próprio da liturgia romana, se reserve, a paridade de condições, o posto principal”. O aditamento "celebrado em língua latina" parece querer ulteriormente restringir o âmbito do ditame conciliar às celebrações apenas em língua latina, tendo presente que em Itália a CEI tornou, de facto, impossíveis as celebrações em língua latina quando se está na presença de fiéis, contradizendo com esta limitação até o que foi disposto pelo próprio concílio [26]. Todavia, mesmo neste documento, que nas intenções originais deveria ter respondido aos quesitos e às dificuldades entretanto surgidas, e deveria ter resolvido as dúvidas práticas sobre a aplicação da reforma litúrgica e da música sacra [27], o inciso “a paridade de condições” não chega a ser adequadamente considerado nem explicado, contribuindo deste modo para deixar a questão numa espécie de limbo linguístico e canónico.

[26] Cfr CEI, Precisazioni, n° 12. Messale Romano ed. 1983: “Nas Missas celebradas com o povo usa-se a língua italiana (...). Os Ordinários do local (...) podem estabelecer que em algumas igrejas frequentadas por fiéis de diversas nacionalidades se possa usar ou a língua própria dos presentes ou a língua latina (...). Noutros casos previstos com base numa verdadeira motivação peneirada pelo Ordinário do local, deve-se em todo o caso usar a edição típica do Missale Romanum”. Note-se o uso do indicativo “usa-se” com sabor absolutizante e exclusivo, ao invés de um “use-se”, conjuntivo de género exortativo e inclusivo.

[27] Cfr MS 2 e 3.

Do quanto dissemos e demonstrámos, parece-me poder concluir que na legislação eclesiástica a expressão “ceteris paribus”, longe de ser restritiva em relação ao gregoriano, mete ainda mais em evidência as suas preeminência e exemplaridade. Trata-se de um inciso que, mutuado de um documento precedente, mudou em parte de significado mudando de contexto e, assim fazendo, ofereceu o flanco a interpretações diversas. Todavia, sob pena de negar todo o magistério anterior, a única interpretação possível resulta ser a original, presente na Instrução pacelliana. E as condições selectivas que o inciso “ceteris paribus” pressupõe serão (re)encontradas naquelas tradicionais (santidade, bondade de formas, universalidade) que deveriam ser verificadas em cada repertório ou género musical que se queira incluir na liturgia cantada. Por outro lado, tal inciso deve ler-se sòmente no constante Magistério da Igreja e não na interpretação de indivíduos singulares, musicólogos ou liturgistas que sejam. A vontade da Igreja é extremamente clara e refere-se ao gregoriano, não só como ao seu “canto próprio”, mais ainda como oração viva para uma liturgia viva e lhe exige a sua presença não como património histórico ou historicizado, nem como peça de museu para mostrar em ocasiões particulares, mas como canto que orienta para Deus todo o “fazer” da liturgia, fazendo-lhe emergir o seu “ser”.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Repeto: crítica a livro de Göschl e De Lillo

Continuamos a tradução e republicação
dos magníficos artigos contidos no 

Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano «Dom Jean Claire» - Verona
Ano II - n° 1 - Janeiro - Abril 2020

 

Marco Repeto

Supplementum ad Graduale Romanum. Cantus codicum antiquissimiorum nondum editos continens, cura et studio Alexandri De Lillo. Neumis Laudunensibus et Sangallensibus ornatum a Joanne Berchmans Goschl, Eos – Editions of Sankt Ottilien 2019

No reflorir geral de trabalhos de editiones magis criticae do Graduale Romanum, as prensas das edições Eos - Edições de Sankt Ottilien - publicaram o Supplementum ad Graduale Romanum. Cantus codicum antiquissimorum nondum editos continens, cura et studio Alexandri De Lillo neumis Laudunensibus ornatum et sangallensibus ornatum a Johanne Berchmans Goschl, 2019. As peças apresentadas nesta publicação são o objecto da Tese de Doutoramento defendida por A. De Lillo em 22 de Fevereiro de 2019 no Pontifício Instituto de Música Sacra de Roma, sendo relator o prof. F.K. Prassl. "A Comissão, composta pelo Reitor e os Prof. N. Tangari, S. Barbagallo, S. Presciuttini, avaliou com amplo e total consenso o trabalho de Alessandro De Lillo", conforme se lê no site do Instituto. Examinemos primeiro a intenção deste volume, que é somente uma parte do trabalho de pesquisa em fase de publicação. No texto da dissertação doutoral encontraremos provavelmente a explicação de algumas quesitos. Antes de mais, a pesquisa visa trazer à luz o repertório do fundo original do Gregoriano, entendendo por original o fundo autêntico, tal como nos é transmitido pelos manuscritos presentes no Sextuplex. Em primeiro lugar, houve um reconhecimento das peças não presentes no actual Graduale Romanum (1974) direccionando o trabalho em duas direcções: a restituição melódica das peças presentes no Graduale Romanum de 1908, mas ausentes no de 1974, e a reconstrução de peças do fundo autêntico jamais publicadas em edições impressas a partir do Liber Gradualis de Dom Pothier de 1883 que nunca foram incluídas no repertório litúrgico hodierno, embora sejam atestadas nos manuscritos do Sextuplex. A exclusão das peças já publicadas deve-se essencialmente a três motivações: a supressão da festa litúrgica, a difusão local da peça, a exclusão após as recentes reformas litúrgicas. São ao todos cento e cinco as peças que não incluídas nas edições recentes, sem contar as peças que não podem ser encontradas nos manuscritos consultados ou estão presentes apenas em manuscritos adiastemáticos e, portanto, não podem ser reconstruídas. Estamos defronte de peças restituídas ou reconstruídas escolhendo os manuscritos utilizados para a publicação do Graduale Novum e os respectivos critérios adoptados para a edição desta publicação. Vem considerada normativa a lição melódica dos códices adiastemáticos, sempre colocados em relação com critérios de congruência ou então com as versões diastemáticas ou pautais. As peças não seguramente atestadas ou, enfim, não atribuíveis de modo unívoco a uma tradição, foram publicadas em várias versões melódicas para não arriscar uma reconstrução que pudesse ser arbitrária ou pelo menos não condizente com a verdade. Assim afirma o autor: “Na presença de atestações limitadas ou de peças não convincentemente atribuíveis a uma matriz melódica originária, em numerosos casos decidiu-se por documentar uma ou mais versões territoriais da mesma peça, ainda que talvez resultassem em possuir um sabor "tardio" não em linha com a nova estética gerada pela difusão das modernas versões restituídas, com o objectivo de reduzir sensivelmente a quota de arbitrariedade implícita na necessidade de efectuar escolhas; por consequência, o número global de composições inéditas reconstruídas ou já editadas ou sujeitas ao restituição melódica, presente nesta publicação, é 105." Há composições reconstruídas ou restituídas e, entre estas, peças relatadas em múltiplas versões melódicas devido à impossibilidade de uma reconstrução ou restituição unívoca devido à margem implícita de arbitrariedade. Por fim, o autor promete apresentar os aparatos críticos de referência para  cada peça individual incluída na publicação que mantém finalidades práticas de execução litúrgica. São estas as premissas para uma edição de peças que se apresenta como uma ideal prossecução da edição do Graduale Novum, seja como completamento, seja como adopção de critérios de restituição ou reconstrução.
Deveria conduzir-se-ia uma análise detalhada da presente publicação, antes de mais, para melhor compreensão dos critérios de escolha das peças. Um exemplo que talvez mereça uma certa atenção, também para o prosseguimento da pesquisa. A comunhão Nos autem gloriari nas páginas 159 – 164 do texto, relatada em seis versões diferentes, exclui outras atestações melódicas embora presentes nos manuscritos: qual o critério de escolha de algumas versões em detrimento de outras? A melodia de Nos autem na página 60 é retirada de Einsielden 121/299, que fornece só o texto musical com neumas em campo aberto da antífona e não do verseto. Este versículo é emprestado pelo Códice São Galo 381, o Versiculário, que relata os neumas alineares na dicção do modo quinto. A antífona é transcrita, portanto, em quinto modo com o bemol. O códice 339/140 de St. Gallen fornece uma versão desta communio com uma variante. Uma troca entre os sétimo e quinto modos pode ser sempre possível. Nos manuscritos do Sextuplex aparece na RBCKS como marcado, mas em contextos litúrgicos diferentes: Em K e S na Exaltatione sanctae Crucis, em C na Inventione sanctae crucis, em R e B na Feria tertia Hebdomadae Maioris. Em K a Communio tem um verso: Annunciate inter gentes, em C o verso Deus misereatur, em B o salmo é novamente Deus misereatur nostri. O texto da nossa antífona aparece, portanto, em  situações diferentes sem versetos, ou com versetos não idênticos. No Graduale Romanum de 1908 o texto já não aparece. No Antiphonale Monasticum de 1934 a peça aparece como antífona na página 1041 com tom VII C, no Liber Antiphonarius III de Solesmes de 2007 na página 211 é antífona das Primeiras Vésperas da Exaltação da Santa Cruz com tom VII C, no Antiphonale Romanum II é a antífona das Primeiras Vésperas da Exaltação da Santa Cruz com tom VII C. A Antífona em questão é classificada geralmente no sétimo modo, enquanto na nossa publicação é transcrita em quinto modo. Uma análise detalhada deveria ser conduzida também nas demais peças escolhidas para a presente publicação. Aguardamos, no entanto, o já anunciado estudo em preparação para analisar os sistemas críticos de referência de cada peça e avaliar conjuntamente o trabalho realizado pelo autor.

sábado, 13 de abril de 2024

Turco: reconstituição da antífona Immutemur habitu para 4ª feira de cinzas

Continuamos a tradução e republicação
dos magníficos artigos contidos no 

Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano «Dom Jean Claire» - Verona
Ano II - n° 1 - Janeiro - Abril 2020

 

Alberto Turco

IMMUTEMUR HABITU
antífona para a bênção e a imposição das cinzas
(GT 65)

O texto: a profecia de Joel (2, 13) é um convite à penitência para obter a “bênção” de Deus, por meio da qual se renovará a retoma do culto e a prosperidade agrícola.

A melodia: a versão melódica da vaticana foi retirada do Liber Gradualis (1883) de J. Pothier. Esta coincide com a versão do cód. Montpellier, Bíblia. de la Faculté de Médecine H. 159 (Dij) e cod. Bruxelas, B. Roy. II 3823 (Clu2).
O texto-melodia consta de três frases:

Immutémur hábitu, in cínere et cilício:
ieiunémus, et plorémus ante Dóminum:
quia multum miséricors est dimíttere peccáta nostra
Deus noster.

[Mudemos as nossas vestes pela cinza e o cilício.
Jejuemos e choremos diante do Senhor,
porque Deus é infinitamente misericordioso
e perdoa os nossos pecados.]

A grelha modal das três frases é a seguinte:


dominante

cadência provisória

cadência final

1ª frase:

SOL ou RE

↓Do ou ↓Sol

Sol ou Re (arcaico)
↓Re ou ↓La (protus à 4ª)

2ª frase:

LA

Re

La (protus na domin.)

3ª frase:

LA

La

Re (protus autêntico)

O presente contributo ocupa-se exclusivamente da restituição melódica da primeira frase, sem dúvida mais complexa que as outras duas. Por este motivo, fez-se recurso à selecção dos manuscritos mais representativos da Editio critica de Solesmes (atelier, placa 1468) e de alguns dos manuscritos assinalados por R. Fischer [1].Os manuscritos selecionados pertencem às tradições beneventana (Ben5, Cas2), aquitana (Alb, Yrx), francesa (Dij2), alemã (Klo1), lorenesa (Van2), italiana (Mod1):

Ben5

cod. Benevento, Bibl. Cap. 34, Gradual-Tropário-Prosário, séc. XI-XII

Cas2

cod. Montecassino 546, Missal de Montecassino, séc. XII primeira metade

Alb

cod. Paris, Bibl. Nat. lat. 776, Gradual-Tropário de Gaillac, séc. XI

Yrx

cod. Paris, Bibl. Nat. lat. 903, Graduale de St-Yrieix, séc. XI

Dij2

cod. Bruxelles, B. Roy. II 3824, Graduale, a. 1228-1288

Klo1

Cod. Graz, Universitäsbibl. 807, Graduale, séc. XII

Van2

cod. Verdun, Bibl. Mun. 759, Missale, séc. XIII primeira metade

Mod1

cod. Modena, Bibl. Cap. O. I. 13, Graduale de Modena/Bologna, séc. XI-XII

Tabela comparativa das versões melódicas dos manuscritos citados:

Os manuscritos beneventanos (Ben5, Cas2), com a escrita em dominante Sol, descem uma quarta, para Ré, à cadência da frase et cilício. Por sua vez, esta é precedida pelo termo grave, em Dó, da sílaba final de “cínere”, no papel de subtónica de Ré. A frase apresenta, então, a estrutura compositiva do protus à quarta (2* modo).
Os manuscritos aquitanos (Alb, Yrx) são escritos em dominante e cadência final em Ré. Descem uma quarta, para Lá, com o termo grave de cínere, como os precedentes de Benevento.
A mesma estrutura modal se dá em Dij2: dominante e cadência final da frase Sol; termo grave Ré.
Nestes últimos três manuscritos, a estrutura modal é aquela típica do modo arcaico de Ré.
Os outros manuscritos (Klo1, Van2, Mod1) diferem dos aquitanos pelo desenvolvimento no grave em Dó, ao invés de permanecer no Ré, da cadência final da frase. Trata-se de um primeira estádio do desenvolvimento modal da cadência final.

Dito isto, passemos à análise dos ganchos melódicos que ocorrem entre as notas finais de cilício e de cínere e os respectivos ataques dos neumas imediatamente a seguir.
A tradição, quase unânime entre os manuscritos, tem o intervalo de quinta entre a nota final de cilício e o neuma seguinte. Uma só excepção em Van2, na qual se verifica o intervalo directo da sexta; enquanto Mod1 evita tal intervalo, recorrendo ao emprego dp pes.
A tradição outrotanto sólida do intervalo de quinta dá-se entre o término grave de cínere e o ataque do neuma de et cilício. São excepções Klo1, com o intervalo de sexta, e Alb, com o intervalo de sétima. A estranheza destes dois intervalos directos, de sexta e de sétima, nos cantos do Gradual impõe-nos a análise mais detalhada do problema.

Na versão melódica de protus à quarta - dominante Sol e cadência final de frase ↓Ré -, os manuscritos da tradição beneventana concordam em pôr os intervalos de quinta entre o término grave Dó de cínere e entre a cadência final Ré de cilício e os respectivos ataques dos neumas sucessivos.

[2] Existe um só caso de intervalo directo de sexta no Graduale Romanum: cf. Gr. Quis sicut Dóminus... “terra” (GT 269). De um antigo Tracto das Quatro Têmporas, a presente peça foi transformada em Gradual com o emprego de fórmulas heterogéneas. Não existe, pois, caso algum de intervalo directo de sétima no repertório clássico do gregoriano. Inclusive, na sequência Veni Sancte Spiritus de Pentecostes (GT 253), o compositor evitou de propósito o intervalo de sétima, se bem que não directo, com o ataque em Lá e não em Dó, de Lava quod est sórdidum, em contraste com o mesma fórmula de Riga quod est áridum.

O intervalo da quinta confirma-se também entre a cadência de cilício e o ataque do ieiunémus na escrita em dominante e cadência final Ré: confronte-se Alb, Yrx, Klo1, Dij2. Nesta versão melódica – dominante e cadência final de frase Ré – notam-se, contudo, várias adaptações entre a cadência de cínere e o ataque de et cilício. Eis quanto se retira dos manuscritos da tabela mostrada acima:
- Alb coloca a fórmula de et cilício no mesmo âmbito melódico das respectivas em Ben5 e Cas2: intervalo de quinta modal do protus, com o termo agudo do pes quassus, sobre Lá, e a nota final ↓Ré. Neste âmbito, a partir da fórmula em questão até ao final da peça, a versão melódica de Alb é comparável àquela dos manuscritos beneventanos. O âmbito melódico que a presente fórmula vem assumir interrompe a linha melódica com o contexto compositivo precendente, causando o intervalo melódico de sétima entre o seu ataque e a nota final de cínere. Trata-se de um intervalo que não constitui um facto “compositivo”, mas diz respeito a um problema de “escrita por fragmentos” tout court [3].

[3] A «escrita por fragmentos» manifesta-se não apenas nos manuscritos diastemáticos sem pauta - por exemplo, Alb, Yrx, alguns beneventanos (cfr- cod. Benevento, Bibl. Cap. 40, Graduale do séc. XI início), etc. - mas também nos pautados, com ou sem clave, em peças centonizadas de fórmulas heterogéneas: por exemplo, a Co. Cantábo Dómino (GT 283) de protus plagal inicia com uma fórmula de Mi; a Co. Circuíbo (GT 297) de tritus plagal inicia com uma fórmula de Ré; a Co. Amen dico vobis: Quod uni (GT 79) é uma mistura de protus, tritus e, por fim, de deuterus; a Co. Beátus servus (GT 491) é uma mistura de deuterus-protus.

- Yrx modifica a versão melódico-modal da fórmula de et cilício, introduzindo um scandicus de três notas ascendentes no ataque, em et, e reduzindo a uma quarta a sua extensão melódica, a fim de obter os intervalos de quinta, antes e depois.
- Van2 e Mod1 recorrem ao emprego do scandicus de três notas ascendentes no ataque da fórmula et cilício para restabelecer o intervalo de quinta com o neuma precendente, mas, como tivemos oportunidade de ver anteriormente, só Mod1 procura evitar o intervalo da sexta com o ataque do neuma da segunda frase (ieiunémus), recorrendo à dicção melódica “re↑la” do pes.
- Klo1 ataca a fórmula em questão à distância de uma sexta da última nota do neuma precedente; depois desta, introduz uma variante melódica no ataque de ieiunémus (“sol-sol-la” em vez de “la-la-do”), a fim de obter o intervalo de quinta.
- Dij2 merece uma particular atenção. A sua versão melódico-modal remonta àquela de algumas peças, presumivelmente provenientes da tradição galicana - In. Dum médium siléntium (GT 53), In. In excélso throno (GT 257), In. Lux fulgébit (GT 44) -, em que, a partir da dominante Sol (corda estrutural), a melodia evolui tanto para o grave uma quarta, no modelo do modo de Ré (protus), quanto para o agudo uma quarta, no modelo do modo de Dó (tetrardus).

Conclusões:

1. Grelha modal dos responsum nos 14 graduais do 1.º modo:

dominante

subtónica
término grave

final

SOL

ré (protus à quarta)

ré (modo arcaico)

2. Grelha modal da primeira frase de Immutémur:

Immutémur

in hábito

et cilício


ieiunémus

dominante

subtónica
termo grave

ataque

final

ataque
2ª frase


SOL









↓dó

      lá
sol /      





[sol]


↓ ré









Immutémur

in hábito

et cilício


ieiunémus

dominante

subtónica
termo grave

acento

final

ataque
2ª frase















[b]      
       Lá


       sol
/     
[mi]          













sol






Análise estético-modal:

A escrita em dominante Sol recalca perfeitamente a grelha modal dos responsum dos graduais de 1º modo: Ben5, Cas2.
Dij2, com escrita em dominante e cadência final Sol (modalidade arcaica), constitui um caso à parte, do qual se falará a seguir.

A escita em dominante Ré tem:
- o termo grave na quarta (fórmula de protus), com excepção de Klo1, que introduz o Si-bemol (fórmula de deuterus);
- o ataque melódico em et do pes quassus + prævirgis unisonica à distância de uma quinta, com exceção de uma sexta em Klo1 e uma sétima em Alb. A dicção melódica do presente neuma é modificada para scandicus-oriscus de três notas ascendentes, a fim de obter precisamente o intervalo de quinta com o último som do neuma precendente: Yrx, Van2, Mod1. A dicção melódica dos dois sons do pes quassus é, no entanto, de um tom inteiro;
- a nota final de cilício desce uma quinta (sol↓do), com cadência redundante de tetrardus (Klo1, Van2, Mod1) ou uma quarta (sol↓re), com redundância de protus (Yrx). Alb desce uma quinta, mas a partir do acento melódico Lá, até à cadência final Ré, com a redundância de protus;
- o ataque melódico do ieiunémus (segunda frase) coloca-se à distância de uma quinta da nota final do neume precedente (Alb, Yrx, Klo1) ou à distância de uma sexta (Van2). Mod1 tem a distância de uma segunda, com a primeira nota do pes (re↑la), para evitar o ataque direto à sexta, do Dó ao Lá.

Da presente análise se percebe que a escrita em dominante Ré acusa múltiplos ajustes melódicos no ligar das fórmulas das unidades verbais. A criticidade mais estrepitosa é testemunhada por Alb, que ao escrever em dominante Ré corrigiu a posição melódica da fórmula de et cilício, para concluir em protus no Ré.

Particularidades
1. O neuma, na dicção paleográfica de pes + pes quassus uníssono, do acento melódico-verbal de “há-bitu” tem habitualmente o ataque do neuma seguinte em Lá, como nos Cânticos da Vigília pascal (cfr. GT 186), nos Tractos de 8º modo (ver GT 97), Ben5 e Cas2 colocam correctamente a primeira nota do porrectus em Lá e, com a terceira nota, sobem para Si. Logo, para o pes sangalês, é mais que confiável a dicção melódica “la-si”.
2. O equaliter entre o pes quassus da sílaba final de “hábi-tu” e o epiphonus da preposição in tem o significado, neste contexto específico, de “igual motivo melódico” e não o de uníssono entre dois ou mais sons. Portanto, os sons do epiphonus retomam os do pes quassus precedente. O significado “mesmo motivo” expressa também o equaliter entre o neuma do acento melódico-verbal e o torculus da sílaba final de “immu-témur”. Estes mesmos contextos melódicos com o emprego da letra equaliter encontram-se respectivamente no In. Resurréxi ... posu-ísti” (GT 196), entre o scandicus-quilisma e o torculus, e na Co. Signa eos... e-í-ci-ent” (GT 437), três pes de seguida com equaliter colocado sob o segundo e com efeito também para o terceiro.

Versão melódica da primeira frase no

- Graduale Triplex, pág. 65

- Graduale Novum I, pág. 56


A presente versão melódica é retirada de Alb, em escrita com dominante e cadência final em Ré. A esta estrutura modal, vêm aplicados os mesmos intervalos melódicos da versão Dij2, com o emprego injustificado da alteração sustenida. Em hábitu, o fá-sustenido não faz sentido algum, pelo facto que o contexto melódico-modal de Alb - a mesma versão melódica se encontra também em Mod1 - é diferente daquele de Dij2; em et cilício, o fá-sustenido é uma alteração de corrupção, para a modulação do contexto compositivo de protus para tetrardus.
A cadência em protus é testemunhada, em Ben5 e Cas2, pela fórmula cadencial galicana (“re-mi-mi-re”) dos tractos em Re da Quaresma e Semana Santa. Por último, perguntamo-nos como foi possível que os editores da presente edição não se tenham perguntado qual o motivo que levou a comissão da vaticana a traduzir a dicção melódica do neuma de acento de "et cilício" por "la-do-re" e não por "do-do-re"? Evidentemente para evitar o intervalo de sétima. Bastava orientar-se pela versão de Ben5 e nos critérios da composição dos modos! Frequentemente no Graduale Novum encontram-se variantes melódicas atestadas somente por Ben5. 

A versão mais fidedigna do ponto de vista melódico-modal e semiológico é testemunhada pelos manuscritos beneventanos e, em parte, pelos aquitanos. A passagem do protus à quarta (sol↓re) da primeira frase para o protus autêntico (la↓re) das outras duas frases, frequentemente presente no repertório, dá homogeneidade e musicalidade a toda a peça.

É bom chamar à atenção um dos critérios fundamentais a recordar acima de tudo:
As fontes manuscritas da primeira frase fornecem duas cadências: uma em modalidade arcaica, ou seja, no grau melódico da nota dominante; a outra em modalidade evoluída (protus à quarta). A estrutura em modalidade arcaica utiliza geralmente a escrita em dominante Ré: com esta escrita encaixa-se correctamente o incipit da segunda frase, com ataque da quinta no Lá. A estrutura em modalidade evoluída (protus à quarta), ao invés, usa a escrita em Sol, com cadência final Ré. Pois bem, a incerteza do termo grave da cadência provisória de cínere, na quarta ou na quinta, mas sobretudo a cadência final em modalidade arcaica estão na origem da confusão na escolha por parte dos manuscritos quanto ao ataque melódico - à quarta, à quinta, à sexta e até à sétima [4] - de et cilicio, para concluir a frase em Ré. A versão melódica e modal correcta do protus à quarta, mediante a escrita em dominante Sol e cadência final Ré está documentada nos manuscritos da área beneventana.
A configuração modal da primeira frase liga-se aos Graduais dos 1º e 7º modos, em dominante Ré (= Sol, em transposição; no caso do Gr. Salvum fac do 1º modo (GT 85), com a mesma estrutura modal da primeira frase de Immutemur, e no Gr. Miserere mihi, Domine do 7º modo (GT 103), com a acentuação em Dó dos Cânticos da Vigília Pascal.
Particularidades da versão melódica da primeira frase em escrita Sol ou em escrita Ré: na escrita em Sol, o pes de ornamentação que segue o neuma do acento melódico-verbal de “há-bitu” ataca em Lá, à distância de uma quarta do ápice Ré; diversamente, na escrita em Ré, o ataque do pes ocorre à distância de uma terça, em Fá, do ápice Lá, à distância de dois tons inteiros. 

[4] O intervalo de sétima está documentado em GrNo.I.56.

 



terça-feira, 9 de abril de 2024

Turco: a colocação do «quilisma» no scandicus

Continuamos a tradução e republicação
dos magníficos artigos contidos no 

Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano «Dom Jean Claire» - Verona
n° 3 - Setembro - Dezembro 2019

 

Alberto Turco

A COLOCAÇÃO DO «QUILISMA»
NO SCANDICUS

O quilisma ocupa o lugar dentro do intervalo melódico da terça. O quilisma não se dá no intervalo de quarta e, muito menos, no intervalo de quinta. Fora do intervalo de terça, os livros de canto da restauração gregoriana deram algumas soluções. Tomemos o exemplo do Resp. Ecce vicit leo...al-lelúia”.

As soluções dos livros de canto:
- o OHS (p. 583) tem a dicção melódica “la-re-mi” de um scandicus-quilisma (n. 1);
- o LR (p. 89) e o PM (p. 68) contêm a dicção melódica “la-re-mi-re” de um pes + clivis (n. 2);
- a NR (p. 435) tem a dicção melódica “la-si-re” de um scandicus-quilisma (n. 3);
- o LH (p. 512) propõe a dicção melódica “la-re-mi” de um pes + virga liquescente (n. 4). Dom E. Cardine escolheu a presente dicção melódica, na óptica de uma bem precisa tradição semiográfica.
Os referidos livros expressam, de facto, duas tradições: a tradição com o quilisma e a tradição sem quilisma.
Tomemos como exemplo o primeiro caso encontrado no GT, o Of. Ad te Dómine levávi ... “irrí-de-ant” (GT 17), em que a EC releva o problema, à luz dos manuscritos adiastemáticos.

À sílaba pós-tónica de “irrí-de-ant” são atribuídas três dicções neumáticas:

(Edição crítica) [1]

[1] Cfr. Le texte neumatique, IV, «Le Graduel Romain, Édition critique (EC)», Solesmes, 1962, pp. 82-83.

As traduções diastemáticas dos manuscritos da EC são as seguintes:

Nos manuscritos Klo1, Dij, Clu2, o scandicus-quilisma é traduzido em quatro sons conjuntos, com o som de passagem (quilisma) no âmbito do intervalo de terça. A esta solução remonta a dicção melódica de Sta1, com a grafia do quilisma em uníssono com o tractulus.
As soluções de Ben5, Van2, Den2, Rop, Alb não prevêm o emprego do quilisma. A dicção gráfica de Ben5 pretende significar um scandicus tout court. Portanto, não é correto fazer coincidir a nota de passagem do referido scandicus com o quilisma sangalês. Não esquecer que a função do quilisma está em estreita relação ou coligada à nota superior, à distância de um grau melódico conjunto!
Não se podem, portanto, misturar as tradições: a com o quilisma, e a sem o quilisma.

O quilisma vai traduzido só no âmbito de um intervalo de terça. Portanto, se se aceita a tradição com o quilisma, deve escolher-se a dicção melódica que se verifica em Klo1, Dij, Clu2 e muitos outros manuscritos. Sem o quilisma, é de seguir a mais provável tradição dos manuscritos diastemáticos. São de privilegiar da EC estes últimos, em quanto representam a tradição mais vizinha aos manuscritos adiastemáticos.

Da análise do conjunto das fontes, emergem três dicções melódicas possíveis: a primeira, com o quilisma no âmbito melódico da terça menor; a segunda, com scandicus subbipunctis; a terceira, com pes + climacus de ornamentação.

O nosso neuma representa o acento melódico “secundário”, no contexto da cadência redundante. Em quanto tal, pode ocorrer em qualquer sílaba, que preceda a redundância. Neste caso, o acento principal da redundância é constituído pela sílaba final ant de irrídeant, devido ao pronome final me: “ir-ríde-ant me”. O acento melódico secundário na sílaba precendente ao da redundância, ou seja, na sílaba de.
Portanto, a primeira dicção melódica, com o emprego do quilisma, mete em evidência a função da subtónica (Dó) do contexto compositivo, do qual surge a ornamentação do scandicus-quilisma subbipunctis.
A segunda dicção, formada por pes de acento melódico secundário, habitualmente presente nas cadências de protus plagalis (do-mi-re) + climacus de ornamentação.
A terceira dicção é representada por pes de antecipação, por graus melódicos conjuntos, do pes do acento redundante: do-ré / ré-mi, ligados entre si pela ornamentação do climacus.

FONTES

Manuscritos da Edição crítica solesmense:

Ein

cod. Einsiedeln, Stiftsbibl. 121, séc. X segunda metade, Graduale, notação sangalesa adiastemática (PM)

Klo1

cod. Graz, Universitäsbibl. 807, séc. XII, Graduale, notação lorenesa de Klosterneuburg em linha (PM)

Lan

cod. Laon, Bibl. Mun. 239, a. 930 circa, Graduale, notação lorenesa adiastemática (PM)

Van2

cod. Verdun, Bibl. Mun. 759, séc. XIII primeira metade, Missal, notação lorenesa em tetragrama (CG)

Cha1

cod. Chartres, Bibl. Mun. 47, séc. X, Graduale, notação bretã adiastemática (PM)

Rop

cod. Leningrado O v I 6, Graduale de Rouen, séc. XII, notação francesa em pauta

Alb

cod. Paris. Bibl. Nat. lat. 776, sec. XI, Gradual-Tropário, notação aquitana diastemática sem pauta (CG)

Ben1

cod. Benevento, Bibl. Cap. 33, Missal, séc. X-XI, notação beneventana adiastemática (MP)

Ben5

cod. Benevento, Bibl. Cap. 34, Gradual-Tropário-Prosário, séc. XI-XII, notação beneventana com linha (PM)

Dij

cod. Montpellier, Bibl. de la Faculté de Médecine H. 159, Graduale, notação francesa adiastemática e alfabética (PM)

Clu1

cod. Paris, Bibl. Nat. lat. 1087, Graduale de Cluny, séc. XI primeira metade, notação francesa adiastemática

Clu2

cod. Bruxelles, B. Roy. II 3823, Graduale, séc. XII início, notação aquitana em pauta

Ept

cod. Darmstadt, Hess. Landesbibl. 1946, Gradual-Sacramentario, a. 1000 circa, notação alemã adiastemática

Sta1

cod. London, Bibl. Mus. add. 18031-32, Missale de Stavelot, séc. XIII início, notação gótico-renana com pauta

Den4

cod. Paris, Bibl. Nat. lat. 9436, Missale de St-Denis, séc. XI meados, notação francesa adiastemática

Den2

cod. Paris, Bibl. Nat. lat. 1107, Graduale de St-Denis, séc. XIII segunda metade, notação quadrada em tetragarma

Livros de canto:

GT

Graduale Triplex, Solesmis, MCMLXXIX

LH

Liber Hymnarius cum Invitatoriis & aliquibus Responsoriis, «Antiphonale Romanum», Tomus alter, Solesmis, MCMLXXXIII

NR

Nocturnale Romanum (Editio Princeps), Romæ-Florentiæ-Veronæ, 2002

PM

Processionale Monasticum, Solesmis, 1983

OHS

Officium Maioris Hebdomadæ et Octavæ Paschæ, Romæ, MCMXXII

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Bellinazzo: a origem dos próprios das Missas do Natal

Continuamos a tradução e republicação
dos magníficos artigos contidos no 

Boletim informativo do centro de Canto Gregoriano «Dom Jean Claire» - Verona
n° 3 - Setembro - Dezembro 2019

 

Nicola Bellinazzo

O “PROPRIUM MISSÆ”
DO DIA DE NATAL

Premissa
A celebração do Natal do Senhor encontra a sua origem teológica e espiritual na Páscoa, onde se torna presente o mistério da passagem da morte à vida com Cristo. São Leão Magno fala do Natal como poderia ter falado da Páscoa. Sobre isso escreve: «...dia escolhido para o mistério (sacramentum) da restauração do género humano na graça» [1]. O Natal torna-se então num aspecto do único sacramentum celebrado nos seus diversos aspectos.

[1] LEÃO MAGNO, Serm., 9 (De Natale Domini): CCL 138, 139

1. Missa de Vigília (In Vigilia)
Na Missa da Vigília, os textos estão claramente orientados para a Páscoa. Nela são mencionadas diversas vezes as etapas do plano de salvação de Deus. Assim como a Páscoa, também o dia de Natal foi dotado de uma vigília, facto atestado já em meados do século VI, e, como dizíamos, constrói-se segundo o modelo da vigília pascal, com peças retiradas do Antigo Testamento no que diz respeito às leituras em particular.
No Intróito a vinda do Senhor relaciona-se com a salvação e esta com a sua glória, “glória” com significado messiânico e escatológico: Hodie scietis, quia veniet Dominus, et salvabit nos: et mane videbitis gloriam eius.
Tanto o texto do intróito como o do gradual são retirados de Êxodo 16, 6-7 e de Isaías 35,4 e fazem uma clara referência à Páscoa. Esta passagem, em que Êxodo se refere à promessa do maná, a Igreja considerou-a indicativa da promessa (vinda) do Filho de Deus.
Construído na corda de Fá (= Dó na escrita arcaica) com um pequeno acento em Sol na sílaba “e” do verbo scietis. O Sib é um ornamento do Sol. O compositor mete em evidência o Hodie inicial sublinhando o verbo scietis, trazendo-o, da corda de recitação, para o grau superior Sol. A peça desenvolve-se no grave, na subtónica Ré (= Lá ); sublinha com bivirga a sílaba tónica do verbo salvabit e da palavra gloria.

O gradual Hodie scietis tem no caput o mesmo texto do intróito; enquanto o verseto é retirado do salmo 79,2.3. Construído sobre o timbre modal dos graduais de 2º modo em A (protus à quarta), transportado para a quinta superior em clave de Dó.

O ofertório Tollite portas, versículo sétimo do salmo 23, deriva originariamente da festa de 2 de Fevereiro, Apresentação do Senhor no templo, com a qual se concluía o tempo do Natal. Mas é também o salmo do Senhor que entra em Jerusalém.
O texto: Tollite portas, principes, vestras: et elevamini, portæ æternales, et introibit Rex gloriæ.
A composição é construída na corda Ré (=Lá), com acentos melódico-verbais à 3ª (Fá=Dó), à 4ª (Sol=Ré) e, até, à quinta (Lá=Mi) em gloriæ. A simbiose do ápice musical com o textual da peça é constituída sem dúvida alguma pelos neumas e pelo iubilus conclusivo de Rex gloriæ, o «Rei da glória», protagonista absoluto desta entrada.

A communio Revelabitur, cujo texto é retirado de Is. 40,5, é escolhida para esta celebração vigiliar em referência à frase final: et videbit omnis caro salutare Dei nostri; a melodia e o texto de salutare Dei nostri provêm da communio da terceira missa In die, a primeira a ser composta.
Revelabitur gloria Domini: et videbit omnis caro salutare Dei nostri. 

A aleluia Crastina die, no Sextuplex [2], é citada somente pelo manuscrito de Senlis (segunda metade do séc. XI). Os demais manuscritos convidam o cantor a usar qualquer aleluia (quale volueris) do tempo do Advento, ou a omitir o canto. O texto é uma composição poética livre.

[2] ANTIPHONALE MISSARUM SEXTUPLEX, editado por Dom René-Jean Hesbert, Herder Roma 1935

2. Missa da Noite (In Nocte)
Dado que a celebração mais antiga do dia de Natal é a Missa In Die, as outras duas celebrações são desta uma emanação.
Os manuscritos do Sextuplex são discordantes ao atribuirem o título à Missa In nocte: alguns chamam-na de In Nocte ou In primo galli cantu; outros, Prima in gallorum cantu ou Media nocte.

A Missa In Nocte vem a ser instituída por volta do séc. V e representa a celebração estacional votiva do Natal, segundo o modelo das celebrações que se realizavam nos túmulos dos mártires. Acontecia na Basílica de Santa Maria Maior, também chamada de Basílica Sancta Maria ad præsepem, pelo facto de nela se conservar uma relíquia do berço/manjedoura.

O intróito Dominus dixit ad me: filius meus es tu, ego hodie genui te, é uma breve composição que tem como texto o sétimo verso do salmo 2. Um salmo régio que se reveste de particular importância para a leitura messiânica que lhe foi feita (vitória do Rei-Messias) e pela nova interpretação dada no Novo Testamento: a geração eterna do Verbo. Sobre este tema escolher-se-á também o gradual Tecum pricipium e a communio In splendoribus. Trata-se de uma escolha típica da historicização do repertório gregoriano.
O intróito primitivo desta missa deveria haver sido o Dum medium silentium, seguramente mais adequado à celebração nocturna do Natal: Dum medium silentium tenerent omnia, et nox in suo cursu medium iter haberet, omnipotens sermo tuus, Domine, de cælis a regalibus sedibus veniet (Sabedoria 18,14-15). Substituído pelo Dominus dixit ad me, foi recuperado para a formação do Proprium do segundo domingo depois do Natal. É uma peça da tradição galicana: composição de Ré (= Sol) com desenvolvimento melódico estendido a uma quarta tanto aguda como grave.
Se dirigirmos o olhar para o repertório de Milão, constatamos que o mesmo texto de Dominus dixit é usado como antífona após o Evangelho da missa In aurora. As duas peças equivalem-se modalmente e são comparáveis ​​(protus plagal, arcaizante à 3ª); a única diferença está no género melódico: no gregoriano género semi-ornado, no milanês silábico.

Assim, o gradual da historicização Tecum principium (terceiro verso do salmo 109) proclama a geração eterna do Verbo: Tecum principium in die virtutis tuæ: in splendoribus sanctorum, ex utero ante luciferum genui te.
A sua composição está feita sobre o timbre de protus à quarta (2* modo): a corda estrutural do caput é o Lá, com desenvolvimento da dominante em Dó; enquanto o verso está na 4ª em Ré. Também este gradual substituiu o tracto/gradual primitivo Speciosus forma, que foi recuperado pelo segundo domingo depois do Natal como Dum medium silentium.

A aleluia Dominus dixit ad me retoma o texto do Intróito (Sl 2). É construída sobre o timbre modal das aleluias de tetrardus plagal.

O ofertório Lætentur cæli está em deuterus plagal, como os ofertórios de Páscoa e Pentecostes. O texto foi extraído do Salmo 95: Lætentur cæli et exsultet terra ante faciem Domini, quoniam venit.

A communio In splendoribus sanctorum retoma o texto do salmo 109(110): In splendoribus sanctorum, ex utero ante luciferum genui te.
A estrutura melódica está encavilhada na corda de Fá, que de finalis se torna corda de recitação: modo arcaico. O compositor dá um amplo respiro a toda a peça, seja pela sua brevidade, seja pela importância de que se recobre neste contexto: o Verbo coeterno com o Pai.

3. Missa da Aurora (Mane prima)
NoAntifonale Missarum Sextuplex, a Missa da Aurora é chamada, pelos seis manuscritos, por diversos modos: Mane prima; Mane prima Statio ad Sanctam Anastasiam; In vigilia mane prima, Statio ad Hierusalem.
Até meados do século VI, o Papa celebrava esta missa diretamente na Basílica de São Pedro. Mas já a partir do final do século IV existia no Monte Palatino um Titulus Anastasiæ, uma igreja edificada na propriedade de uma mulher piedosa de nome Anastácia ou, como sustentam outros estudiosos, dedicada à ressurreição; construída no modelo da Anastasis de Jerusalém. Para o final do século V, desenvolve-se em Roma o culto a Santa Anastásia mártir. Este culto vem do Oriente, precisamente de Constantinopla, onde no dia 25 de Dezembro se celebrava a decapitação da santa mártir. A igreja assumiu o título de Santa Anastásia, e o papa, por obséquio à autoridade imperial bizantina, vinha ali celebrar a missa no dia da festa da mártir, que coincidia com o Natal. A missa, no início, tinha um formulário próprio com um seu prefácio, como nos indica o Sacramentário Gelasiano.
Da igreja de S.ª Anastásia o papa dirigia-se seguidamente para a Basílica de São Pedro para celebrar a missa do dia. Portanto, o Proprium desta missa é formado por peças recuperadas das outras duas missas no Natal. [3]

[3] Recordemos alguns costumes do Natal: só o bispo podia entoar o Gloria in excelsis Deo, privilégio que se conservou até ao século X; os sacerdotes podiam celebrar três missas, usança atribuída a Pedro, abade de Cluny.

O intróito Lux fulgebit é o mais recente dos intróitos. Provem da tradição galicana/gregoriana. O texto é um remanejamento do intróito Puer natus: Lux fulgebit hodie super nos: quia natus est nobis Dominus: et vocabitur Admirabilis, Deus, Princeps pacis, Pater futuri sæculi: cuius regni non erit finis.

No gradual Benedictus qui venit, o responso primitivo do Confitemini (salmo 117) conservou a função de resposta (caput) do novo verso 23: A Domino factus est: et est mirabile in oculis nostris, tomando porém a melodia do responsório homónimo. O presente salmo pro vem da missa In die. A salmodia mais antiga e prrópria da Páscoa e do Natal é representada pelo salmo 117, com responso, à época da forma responsorial, Hæc dies e Benedictus qui venit, respectivamente para a Páscoa e o Natal. Não se pode excluir que a escolha do responso Benedictus qui venit venha diretamente da Igreja de Jerusalém.

A aleluia Dominus regnavit é o primeiro versículo do salmo 92; é seguramente a peça originária da missa In die, como o foi para o dia de Páscoa. As fórmulas melódicas desta aleluia, em protus plagal, serviram de modelo para a composição do timbre de 2º modo. Dominus regnavit, decorem induit: induit Dominus fortitudinem, et præcinxit se virtute.

O ofertório Deus enim firmavit, do Salmo 92, o mesmo do Dominus regnavit, também se encontra como ofertório no domingo seguinte ao Natal. Poderia tratar-se do primitivo ofertório primitivo do Natal.
Deus enim firmavit orbem terræ, qui non commovebitur: parata sedes tua, Deus, ex tunc, a sæculo tu es.

A communio Exsulta filia Sion não possui texto sálmico; é retirada do livro do profeta Zacarias, no cap. 9. O mesmo texto se encontra no IV domingo do Advento segundo o Antifonal de Rheinau (séc. VIII-IX), constante do Sextuplex. Exsulta filia Sion, lauda filia Ierusalem: ecce Rex tuus venit sanctus, et Salvator mundi.

4. Missa do dia (In die)
Mais uma vez queremos reiterar que a missa primitiva do dia de Natal é a In die. Pelos manuscritos mais antigos é chamada de: In die natalis Domini, VIII Kalendas Januarias Natale Domini ad missam in die ad Sanctum Petrum, In die natalis Domini que est, VIII Kalendas Januarias, Statio ad Sanctum Petrum.

O intróito Puer natus, em tetrardus autêntico, é o primitivo canto processional de ingresso da missa de Natal, desde quando se havia uma única celebração, com a Statio em São Pedro. O texto é profético (Is 9,6) e pretende exprimir o nascimento temporal do Verbo.
Puer natus est nobis, et filius datus est nobis: cuius imperium super humerum eius: et vocabitur nomen eius, magni consilii Angelus.

O gradual Viderunt omnes repropõe como texto o salmo 97: Viderunt omnes fines terræ salutare Dei nostri: iubilate Deo omnis terra. Notum fecit Dominus salutare suum: ante conspectum gentium revelavit iustitiam suam.
O texto deste gradual substituiu o primitivo do salmo 117.
No que diz respeito à melodia, trata-se de um tritus autêntico, composição estranha aos graduais primitivos do Natal e da Páscoa.

A aleluia Dies sanctificatus propõe um texto eclesiástico. Melodicamente falando, trata-se do timbre modal de 2º modo.
Dies sanctificatus illuxit nobis: venite gentes, et adorate Dominum: quia hodie descendit lux magna super terram.

O ofertório Tui sunt cæli é retirado do Salmo 88. É um texto genérico que não tem muita ligação para o mistério que se celebra. Do ponto de vista compositivo é um deuterus plagal, como os ofertórios da Páscoa e do Pentecostes.
Tui sunt cæli, et tua est terra: orbem terrarum, et plenitudinem eius tu fundasti: iustitia et iudicium præparatio sedis tuæ.

O texto da communio Viderunt omnes fines terræ salutare Dei nostri repropõe, a par do gradual e e do verseto salmódico do Puer natus, o Salmo 97, na óptica do tema “o nascimento na história do Verbo”. A melodia, em protus autêntico, sublinha a presente temática  na acentuação das palavras ... fines terræ ... salutare.

Conclusão

Com esta breve pesquisa musical e litúrgica, quisemos afastar todas aquelas “receitas” ou considerações “romântico-evocativas” que pairam em torno da festa do Natal. Música e liturgia viajam de par e passos, completando-se, enriquecendo-se para poder exprimir, no melhor modo possível, o mistério do Verbo encarnado. A ampliação da festa do Natal, com as suas quatro celebrações, incluída também a Vigília, encontra nos textos e no canto gregoriano a sua máxima expressão. Não se pode esaurir todo o mistério da Encarnação com uma só e simples celebração e com melodias simples ou de remédio. O canto gregoriano exprime-se com melodias “únicas”, surpreendentes, com obras-primas, não só musicais mas também teológicas, sublinhando a importância das palavras ou frases que servem para celebrar dignamente o mistério.
Propomos de seguida como haveria sido o formulário da mais antiga e primitiva Missa do Natal:

In. Puer natus est
Gr. Confitemini, do salmo 117 com refrão Benedictus qui venit
Al. Dominus regnavit
De. Deus enim firmavit
Co. Viderunt omnes

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